22/10/2011

"Eu", portuguesa, me confesso [Isabel Silvestre]

Sons

10 de Março 2000

Isabel Silvestre lança segundo álbum a solo

“Eu”, portuguesa, me confesso

“Eu”, portuguesa, me confesso. Poderia ser o dístico afixado no novo álbum a solo de Isabel Silvestre. Depois da canção popular, em “A Portuguesa”, a cantora do Grupo de Cantares de Manhouce regressa com um álbum de originais. Música que os seus pais cantavam à lareira. Chamado “Eu”. Um eu de todos.


Produzido por João Gil e Mário Delgado, “Eu” reúne 12 temas tradicionais portugueses com a participação de Mário Delgado, João Nuno Represas e, num dos temas, Rão Kyao. Isabel Silvestre falou ao PÚBLICO sobre este seu novo trabalho onde o “eu”, afinal, se dissolve numa entidade colectiva.
PÚBLICO – Depois da canção popular, a tradição. Faz sentido. Foi uma decisão sua?
ISABEL SILVESTRE – Nasceu de conversas com o João e com o Mário. Ao fim e ao cabo foi uma escolha de toda a gente envolvida. Mas fui eu que trouxe os temas de Manhouce. Alguns dos temas já tinham sido cantados pelo Grupo de Cantares, mas as versões para este disco são diferentes.
P. – “Eu” é um título bastante personalizado, quase orgulhoso. O que quis dizer com ele?
R. – É um bocado complicado. Não sou bem eu, nós somos todos um produto de nós todos, da sociedade em que vivemos, daquilo que nos ensinaram, da casa onde nascemos, dos brinquedos que tivemos. Ninguém é “eu”. Este “Eu” é a minha terra, a minha música, as minhas raízes. No meio disto tudo também lá estou eu.
P. – “Eu” é um filme de todas essas memórias?
R. – Sim. De toda a música que canto, e sobretudo daquela que se cantava ainda antes de eu ter nascido, a música de Manhouce. Sem querer e sem saber estamos a cantar dentro do próprio ambiente em que nos foram ensinadas essas músicas. Estamos nas festas, nas desfolhadas, nas romarias, onde as ouvimos. Essas músicas são mais eu.
P. – Músicas que os seus pais cantavam em casa?
R. – Sim, à lareira, nas noites de Inverno. Tive a sorte de nascer e de fazer parte de uma família grande em que havia tias solteiras que nos criaram como filhos. E a mãe, claro, que gostava muito de cantar e cantava muito bem. O Grupo de Cantares praticamente é tudo família. Nesta música está a família, a casa, o afecto.
P. – Hoje, em Manhouce, ainda se cantam estas canções à lareira? Ou vê-se televisão?
R. – Sem dúvida nenhuma. A televisão e, ainda antes, a rádio e os discos distraem as pessoas. Antes o povo tinha necessidade de fazer a sua própria música. Como é que eles a faziam? Indo às romarias, inclusive recebendo influências da música de outras regiões. Em Manhouce, por exemplo, ia-se muitas vezes à romaria da Senhora da Saúde, estavam ao pé da gente da beira-mar. Traziam músicas de lá. Não quer dizer que as copiassem, ouviam-nas numa noite, não as captavam na sua totalidade nem na sua verdade, então davam-lhe a sua própria volta, vestiam-na com a roupagem de Manhouce. Lavavam-nas nas águas de Manhouce.

Do litoral para Manhouce

P. – Os mais novos de Manhouce ainda cantam música tradicional?

R. – Tenho sobrinhos-netos que me chamam mãe. Ensino esta rapaziada na escola a cantar a três vozes. Há gente no Grupo de Cantares que já é filha de gente que me passou pelas mãos, a quem pus o bichinho da música. E, além do Grupo de Cantares, há um grupo de danças com quarenta e tal elementos. Neste momento estamos a revitalizar a serra no aspecto turístico, fazem-se encontros com música e danças. A maneira de cantar e de dançar em Manhouce vai continuar viva nos próximos tempos.
P. – Por muito tempo?
R. – Sim, os pequeninos já estão a entrar dentro da nossa música. Felizmente que em Manhouce, apesar de já ter estradas, luz e telefone, isso tudo que eu não tinha, há um gosto pela própria terra e pelas coisas que a valorizam. Além das quarenta e tal pessoas que estão no grupo de danças há mais vinte e tal que estão no grupo de cantares. Numa aldeia pequena como Manhouce já são à volta de sessenta pessoas voltadas para a música. Forçosamente têm que incutir esse mesmo gosto nos filhos e nos netos.
P. – O Grupo de Cantares de Manhouce já rompeu as fronteiras da sua região. A Isabel Silvestre grava na capital com músicos urbanos. Continuam a encará-la da mesma forma, na aldeia? A popularidade alterou a sua maneira de viver?
R. – Sou a mesma pessoa. Falo com os outros da mesma maneira. Continua a fazer tudo da mesma maneira. Por isso as outras pessoas também me tratam da mesma maneira. Claro que sentem e gostam do que o grupo faz. Sobretudo quando vão à cidade e dizem que são de Manhouce e as pessoas sabem logo que são da terra do Grupo de Cantares. E perguntam se conhece a D. Isabel. Eu sinto orgulho naquilo que faço, mas também sinto que gostaria de fazer muito mais.
P. – Sente-se tão à vontade a cantar em estúdio, sobre música já gravada, como aconteceu em “Eu”, como com o Grupo de Cantares?
R. – Quando se fala de música tradicional, pensa-se sempre, ou há pessoas que pensam, numa música menor. Eu penso que a música tradicional, sendo cantada com arranjos de qualidade, fica com um enquadramento perfeito. Não quero dizer que me sinta tão à vontade como no Grupo de Cantares…
P. – Dos doze temas que fazem parte de “Eu”, sente particular afinidade por algum deles?
R. – Talvez “Senhora do Livramento”, por causa, na altura, da morte de Amália e por ser um tema que ela própria cantou. Conheci a Amália, marcou-me muito. Estive em casa dela, cantámos em casa dela, há fotos dela a cantar ao nosso lado, com o xaile e o lenço. Era uma pessoa extraordinária, de uma simplicidade e sinceridade… A gente estava ao pé daquela mulher e havia sempre coisas que vinham ter connosco.
P. – Disse há pouco que gostaria de fazer mais. Tem ideia de quê?
R. – Em conversa no estúdio, durante a gravação deste disco, pôs-se a hipótese de eu fazer para o ano um disco de temas tradicionais religiosos. Há coisas lindíssimas na minha região, e não só…
P. – É uma pessoa muito religiosa?
R. – Sou! Embora não seja – como é que hei-de dizer? – aquela pessoa certinha que vai à missa…
P. – As pessoas continuam à espera de um grande espectáculo seu aqui em Lisboa.
R. – Olhe, na altura de “A Portuguesa” esteve previsto um espectáculo no Centro Cultural de Belém, mas depois, não sei porquê, passou a Expo, ficou tudo muito complicado, as pessoas dispersaram-se… pode ser que aconteça agora.

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