22/06/2020

À porta, à espera [Ana Moura]


Y 24|OUTUBRO|2004
música|fado

Aconteceu é uma mais madura etapa. Mas o grande Fado ainda está à espera.

ana moura
à porta, à espera

ANA MOURA
Aconteceu
2xCD ed. e distri. Universal
6|10

Ana Moura é mais uma das novas fadistas que vieram dar um rosto e uma voz novos ao fado. Ou melhor, mais do que apenas engrossar o lote, ela é “uma”. Uma voz diferente das outras, quente e sensual (alguns furos mais grave que a da generalidade das suas colegas) que agora se apresenta no seu segundo álbum, “Aconteceu”, depois de no ano passado ter gravado “Guarda-me a Vida na Mão”. Alguém com influência no além deve tê-la ouvido e atendido ao seu pedido. “Aconteceu” tem uma mão com vários trunfos, a começar pela voz, mais trabalhada e maturada, e a terminar num reportório bem escolhido e conduzido. O CD é duplo e divide-se em dois discos, o primeiro, “À porta do fado”, preenchido por fado musicado, o segundo, “Dentro de casa”, dedicado ao fado tradicional. Ana Moura navega livremente no primeiro, sobre poemas de Sophia de Mello Breyner (“Através do teu coração”) ou Natália Correia (“Creio”) e música de Tózé Brito, Jorge Fernando, João Pedro Pais ou do “jazzman” italiano Arrigo Cappelletti, mas o seu coração dispara com o segundo, num fado da meia-noite, num fado corrido ou num fado Acácio.
            Ana Moura não é – não quer ser? – fadista de grandes arrebatamentos ou dolorosos extremos. A sua voz e o seu canto preferem o embalo doce, o sussurro ao ouvido, os tempos médios que hipnotizam e fazem suavemente sobressair o sentido das palavras. (… a poesia/Não é só caligrafia/São coisas do sentimento”) canta em “Ao poeta perguntei”, de Alberto Janes. E, no mesmo poema: “Como a expressão e os jeitos/Que pr’a cantar/Se vão dando à voz”. Percebe-se que é uma intuitiva que se entrega à emoção e ao sentimento, sem resistências, e por isso com a naturalidade e a fluência de quem canta como respira. Ou com o rasto exótico que ficou dos tempos em que cantava música pop com o grupo Sexto Sentido, a infiltrar-se por entre as sílabas e as interjeições de “Amor de uma noite”, “Creio” e “Através do meu coração”.
            No segundo CD o sentido interior muda e escurece. “Hoje tudo me entristece” mostra uma fadista a trabalhar a tragédia, mas ainda a rondar do lado de fora da dor, embora já com a imaginação e a cor do sangue. Fadista e não cantora de fados, a separação e opção são dela. “Passos na rua” dá a ver ornamentações de ave, a prometer voos mais altos. Há ainda “Dentro da tempestade” onde “há restos de verdade/A que a dor tirou sentido”, com a guitarra a golpear uma voz que se despede. “Aconteceu” mostra uma fadista a caminho. O que, para já, aconteceu, chega para nos acariciar e fazer acreditar num futuro promissor. Falta a solidão que torna único o fado de quem o canta.

            fado ou fadistas? Ana Moura nasceu em Santarém, há 24 anos. Ribatejana, como Cristina Branco. Também como Cristina Branco, a Holanda, onde se encontra em digressão, é ponto importante do seu roteiro de viagem. A transição do poprock para o fado foi rápida e passou por um convite de Maria da Fé para cantar no “Senhor Vinho”. Nessa altura o seu reportório e experiência eram curtos mas os amigos (Jorge Fernando, Manuel Martins, a própria Maria da Fé) ajudaram. Depois de em “Guarda-me a Vida na Mão” ter contado com uma composição de Pedro Ayres de Magalhães e a guitarra de Pedro Jóia, “Acontecendo” impôs-lhe a necessidade de gravar um CD inteiro só de fados tradicionais. Os fados musicados estão no outro disco porque algumas pessoas, já lhos tinham oferecido. Acabou por sair um disco duplo.
            “Em estúdio senti que era difícil escolher. Achámos engraçado separar os dois géneros”. Uma das faixas de “À porta do fado”, “Através do meu coração”, leva um violoncelo, experiência instrumental única fora das normas. “Então no fado tradicional, nem sequer com contrabaixo toco, é só guitarra portuguesa, guitarra e baixo”.
            “Novo fado” é expressão que para Ana Moura não tem razão de existir. Novos fadistas, sim. “Não faz sentido falar em ‘novo fado’. Assim como aconteceu com a geração da Amália, quando se dizia que ela também cantava novo fado, por causa dos poetas que cantou, também neste momento há letras de poetas que são intemporais, mas há outras não podem ser cantadas por esta geração. O que de novo tentamos trazer ao fado é a interpretação e uma ou outra novidade ao nível dos arranjos musicais”.
            Insiste em que um fado apenas faz sentido e pode ser cantado com o coração quando a letra é totalmente interiorizada. “Há coisas que eu sei que ainda não sinto”, reconhece com a sinceridade de quem assume que só agora a estrada se começou a revelar, “pode ser que daqui a uns anos…”. Os versos de Natália Correia, em “Creio” – “é como se fosse uma oração” – esses adora-os e canta-os como se fossem seus: “Creio em amores lunares/Com piano ao fundo/Creio nas lendas/Nas fadas, nos atlantes”. Não é oração fácil de rezar. E se ontem foi na pop que acreditava, hoje o fado apoderou-se de todo o seu espaço e roubou-lhe todo o seu tempo.
            “O fado passou a fazer parte da minha vida”. Demorou quatro anos até essa assunção tomar conta dela a cem por cento. “Mudou por completo a minha vida, eu estava a estudar durante o dia, aguentei a escola durante um ano, entretanto passei a viver mais durante a noite do que de dia e abandonei os estudos. A minha vida passou a ser literalmente fado”.
            Estranha forma de vida, dirão alguns. Numa casa de fados ou numa sala de espetáculos. “É diferente, nas casas de fado há a proximidade das pessoas, é uma coisa muito íntima, de improviso, enquanto que nas salas é um espetáculo, com um alinhamento mais ou menos feito”. “Mais ou menos” porque o humor muda e Ana Moura só canta “o que lhe apetece”. “Se me apetecer cantar outra coisa, eu canto, altero”. Em qualquer dos casos, “o fado acontece”. Como uma coincidência. Aliás, a sua vida tem sido assim, a vida e a carreira, “feitas de coincidências”.
            Como coincidentes são a voz com a imagem glamorosa do seu corpo como aparece retratado na capa e nas imagens de promoção, onde veste um decotado vestido vermelho sobre fundo verde de vegetação escura. Poderia passar por uma capa dos Roxy Music se Ana não explicasse o seu fundamento. “Gosto muito do vermelho. O vermelho e preto são as minhas cores preferidas. O sítio das fotos foi o palácio da Pena em Sintra, lugar que adoro”. Lugar ideal para se cantar o “astral mais puro”, dito nos versos de Natália Correia. O que mais irá acontecer a Ana Moura, só o fado o dirá.

Radian - Juxtaposition + Trapist - Ballroom


29|OUTUBRO|2004 Y
discos|roteiro

RADIAN
Juxtaposition
TRAPIST
Ballroom
Thrill Jockey, distri. Ananana
7|10

Trata-se da música das máquinas. Começou com a cena industrial dos 80’s, apadrinhada pelos krautrockers Cluster, Conrad Schnitzler ou Seesselberg, mais de uma década antes. E os Kraftwerk, claro, mas esses optaram por colocar uma alma de surfista nos circuitos. Com o pós-rock, alguma daquela desumanidade regressou e os austríacos Radian, com o patrocínio dos This Heat, podem ser considerados descendentes do industrialismo na sua faceta mais esquálida. “Juxtaposition” retoma os “grooves” descarnados, as drones ferrugentas e as pulsações secas desenhadas a papel milimétrico sobre paisagens desoladas. O prazer do som sustentado por um “pacemaker” que alimenta um corpo de metal. Na mesma editora, os Trapist são trabalhadores da mesma fábrica. Usam tinta envenenada e brocas de laser nas suas esculturas de eletricidade e contraplacado. O longo tema de abertura poderia ser um “test signal” dos This Heat, até as guitarras trazerem vida aos materiais inanimados. Mas a palpabilidade dada aos timbres é manifesto, aspeto em que “Ballroom” é pródigo, na abundância de texturas suculentas dos sintetizadores analógicos. Radian e Trapist escavam um nicho entre a eletro-acústica e a eletrónica.

Alterações ao regulamento [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 23 OUTUBRO 2004

Na música livre, improvisada, vale tudo ou valem apenas os melhores? A liberdade não se diz, experimenta-se e arrisca-se. Num esgar de sofrimento ou numa saudável gargalhada.

Alterações ao regulamento

Haverá uma diferença real entre o “free jazz” e a “free music”, ou são designações paralelas para uma idêntica forma de expressar a liberdade? “Free jazz” implica romper a tradição, é uma “oposição a”, o direito ao contraditório. “Free music” pode ser jazz e muito mais. Música de fusão, no sentido mais universal de incorporar várias linguagens musicais num corpo unitário. Porém, não uma fusão “exterior”, de estilos, géneros ou fórmulas, mas um enclave “interior”, cadinho espiritual onde o músico, e só ele, se entrega à captação, síntese e manifestação de realidades musicais díspares. Um grande executante de “free music” é aquele que, tecnicamente apto, possui a capacidade de escuta transcendente. Ele é a antena que recebe os sinais dos outros músicos, se for caso disso, mas também do próprio fluxo cósmico da música. E entrega-se a este fluxo, domando-o com a sua própria voz. Na “free music” cabe o que de algures vier: interferências clássicas, uma valsa, etnicidades primordiais, o rock, a arquitetura abstrata, o grito, a gargalhada, o choro. O melhor exemplo de “free music” que alguma vez presenciámos ao vivo aconteceu na primeira atuação de um coletivo liderado por Michel Portal, se não estamos em erro, nos anos 80, num pequeno cine-teatro em Sintra. O concerto começou com Portal a arrastar cadeiras pelo chão e terminou na explosão de uma supernova. E era música esse arrastar. E Portal literalmente chorou ao escutar um solo de um seu companheiro. E o sagrado, mas também a loucura, aconteceram, levando a música para uma lógica de sintonia absoluta entre a eternidade e o instante, o silêncio e o fogo, a escuta e o ato interpretativo. Tudo foi improvisado e nada foi aleatório. Tinha que ser assim, porque nas mais altas esferas é a música que toca o músico e não o contrário.
            Ao nível da receção, poderíamos ir mais longe e assertar na hipótese de que é absurdo e sempre limitativo gravar em disco um acontecimento musical ao vivo desta índole, ainda mais a improvisação, irrepetível e irreproduzível. A editora FMP (Free Music Productions) de Berlim confronta-se com esta questão, mas ultrapassa-a afirmando a necessidade do testemunho e da descoberta. As suas “Unheard music series” recuperam mundos e fundos dos anos 60, 70 e 80, quando o “free jazz” quis formatar a liberdade alcançada numa ordem superior. Não já o caos, mas o tal espaço de unidade (mas também de manobra) transcendental onde a grande música se revela.
            O alemão Peter Brötzmann é praticante desta religião. Em “Berlin Djungle”, gravado em 1984, no Festival de Jazz de Berlim, reuniu num Clarinet Project uma improvável constelação de estrelas. Nos clarinetes – seis – estavam, além do próprio Brötzmann, Tony Coe, Louis Sclavis, John Zorn, Ernst-Ludwig Petrowski e J. D. Parran. Dois trombones: Hannes Bauer e Alan Tomlinson, e um trompete, Toshinori Kondo. Mais a secção rítmica de Cecil Taylor: William Parker, no contrabaixo, Tony Oxley, na bateria. Uma única composição, “What a day”. Sobre, dentro, sob e fora dela, um amplo encontro/desencontro onde os momentos solísticos, mais melodiosos, desafiam a cacofonia do “ensemble”. Há uma procura de sobrevoo, mas a insistência no grito pressupõe angústia e alguma impotência em encontrar o plano superior. É de uma selva que realmente se trata. Já perto do final, Parker encontra o cântico dos cânticos.
            Em 2000, a FMP editou “Nipples”, uma gravação de estúdio de 1969, com o sexteto de Brötzmann (sax tenor), Evan Parker (saxes tenor e soprano), Derek Bailey (guitarra), Fred Van Hove (piano), Buschi Niebergall (contrabaixo) e Han Bennink (bateria). Dos arquivos da editora foi agora recuperado material adicional da mesma sessão, uma composição do sexteto mais duas composições de um quarteto, sem Parker nem Bailey. Em “More nipples”, o tema, Bailey impõe a sua geometria de estilhaços e Bennink é o seu inspirado parceiro, percutindo “metal on metal” ao lado dos harpejos de Van Hove. Brötzmann assina um solo explosivo, ponto de fuga incendiário na contracorrente da implosão recorrente no resto da faixa. Nos outros dois temas, com Parker e Bailey ausentes, Fred Van Hove abre claustros imensos, entrando em diálogo dialético com os delírios do saxofonista. O mesmo Van Hove entra “na zona”, em “Fat man walks”, num espiritual que obriga o próprio Brötzmann a depurar as chagas até as transformar em oração. Sofrida até às últimas consequências.
            É ainda Brötzmann que dá a cara em “Brötzmann, Van Hove, Bennink” (1973), num trio, habitual, com os outros dois. Aqui a “free music” faz jus à fusão de que falávamos no início. Fred Van Hove cria na celesta ambiências de “nursery rhyme”. Brötzmann imita um apito de chamar pássaros (como Zorn costumava fazer…) e solta onomatopeias e Van Hove toca… rock‘n’roll sobre gargarejos de gigante. Na “bricolage” percussiva, Bennink é, como de costume, brilhante. Desta vez, são miniaturas onde tudo pode acontecer, desde lições de piano a batuques e aventuras no espaço. O gozo de quem toca é imenso. O de quem ouve, também.
            Mas em 1960 a tradição ainda não era letra morta. Antes de se dedicar ao teatro, George Gruntz (piano e líder de orquestra suíço) participou em 1960 na banda sonora de um estranho projeto, “Mental Cruelty”, filme do seu compatriota Hannes Schmidhauser. Schmidhauser, ex-jogador de futebol, farto de desempenhar papéis de camponês em fitas de segunda, resolveu realizar ele próprio o seu filme, ao estilo “nouvelle vague”. Um casal apaixona-se, casa e divorcia-se. Divorciam-se alegando o quê? “Mental Cruelty”, precisamente. A música é fina e swingante, “bluesy” e dentro dos cânones da nova vaga posta em som, em tons ligeiros, mas com a inestimável participação do interessantíssimo saxofonista francês Barney Willen. Kenny Clarke mostra-se bom rapazinho na bateria e Gruntz, mais do que um pianista boppish, é aqui um pianista poppish. A música está longe de ser cruel.
            Já o mesmo não se poderá dizer da do pianista/clarinetista/trompetista holandês Kees Hazevoet e do seu quarteto, liderança partilhada com o saxofonista alto Kris Wanders. O baterista é o sul-africano Louis Moholo. Editado originalmente em pequena quantidade em capa feita à mão, “Pleasure” apresenta-se em estado de combustão permanente, mas de uma forma mais desorganizada (e desorganicizada, apesar de o holandês ter abandonado a música para se dedicar à zoologia...) e superficial do que a de Brötzmann, por exemplo. Aposta-se em criar e aliviar tensões, sem que de tal dinâmica resulte uma chave que abra outras dimensões. Música física, do corpo, suor e músculo, ganharia em olhar para cima. Assim, o horizonte é horizontal.
            Bem mais interessante é “Open” (1977) do trio Gerd Dudek (flauta, shenai, saxes soprano e tenor), Buschi Niebergall (contrabaixo) e Edward Vesala (bateria). Dudek tocou com Manfred Schoof nos anos 60, Niebergall, já falecido, alinhou ao lado de Alexander Von Schlippenbach e Brötzmann e Vesala andava pelas avenidas do “free” antes de se tornar “atmosférico” na ECM. “Open”, gravado ao vivo no Workshop Freie Musik, da Academia das Artes em Berlim, é saxofone para a frente, em longos e ditirâmbicos solos, nos quais Dudek dá ênfase à dinâmica e à cor, incorporando no discurso uma certa veia ascética. “Free” sem rodriguinhos e com ideias bem alicerçadas no que está para trás.
            Não há “para trás” em “Voila Enough”, gravações de 1979 a 1981 de um quarteto cuja lista de nomes dá desde logo indicações do que se poderá esperar. São ingleses, excêntricos e davam pelo nome de Alterations. Steve Beresford, Terry Day, Peter Cusack e David Toop. Tocam guitarras, feedback, “possible clarinet”, balões, bandolim, sintetizador de bolso, “palheta em chávena”, euphonium, caixa de música, órgão de brinquedo automático, sirene, caixa de galinha, gira-discos de brinquedo, microfones, apitos para chamar cães, trompa animal, violino africano, etc., a par de artefactos jazzísticos mais convencionais. Surpresa permanente. Como se, de súbito, fôssemos atirados para o interior de uma oficina de reparações dirigida por lunáticos. Vale tudo. Improvisa-se com tudo. A música é um jogo de obliterações e gestos surpreendentes que procuram arrancar dos objetos a sua essência musical. Os Alterations são equivalentes dos Art Ensemble of Chicago, mas o seu humor é tipicamente britânico, na pose “nonsense”, na piada lançada no momento mais sério. Poesia do ruído, citações “ragtime”, uma atitude “punk”. Mais tarde, em 1985, atolados em novas tecnologias, os Alterations fecharam as portas, quando se esgotou, dizem, a sua veia humorística. Está tudo dito. Mas muito fica para se ouvir.

Brötzmann Clarinet Project
Berlin Djungle
7 | 10

The Peter Brötzmann Sextet/Quartet
More Nipples
7 | 10

Brötzmann, Van Hove, Bennink
Brötzmann, Van Hove, Bennink
8 | 10

George Gruntz
Mental Cruelty
7 | 10

Kees Hazevoet Quartet
Pleasure
6 | 10

Dudek, Niebergall, Vesala
Open
7 | 10

Alterations
Voila Enough!
8 | 10

Todos FMP/Unheard Music Series, distri. Ananana

Tuxedomoon no Sons em Trânsito de Aveiro


CULTURA
SEXTA-FEIRA, 22 OUT 2004

Tuxedomoon no Sons em Trânsito de Aveiro

Tiveram a fama e o proveito, mas não ficaram ricos. Nenhum deles comprou casa nova, A primeira vinda a Portugal do grupo americano Tuxedomoon é o acontecimento mais importante do festival Sons em Trânsito (SET) que, de 5 a 13 de Novembro, decorrerá em Aveiro. Embora possa causar estranheza a sua inclusão num programa preenchido por artistas de “world music”, a presença, dia 7, desta banda de São Francisco que marcou os anos 80 e que, já este ano, regressou ao ativo com um novo álbum, poderá constituir um dos concertos mais excitantes do ano.
            Depois do arranque com o EP “No Tears” e de fazerem a primeira parte de um concerto dos Devo, os Tuxedomoon gravaram o álbum de estreia, “Half-Mute” (1980), ao qual se seguiu a obra-prima “Desire” (1981), dois dos trabalhos mais experimentais da banda e obras emblemáticas do início dos anos 80.
            Mais conhecidos na Europa, os Tuxedomoon mudaram-se para Roterdão, tendo a sua música refletido a partir daí essa europeização, como se pode apreciar nos álbuns “Holy Wars” e “You”. O mini-álbum “Ship of Fools”, “Divine”, para uma coreografia de Maurice Béjart, e o obscuro “Suite en Sous-Sol” são outras das obras de referência deste grupo, que já este ano gravou o álbum “Cabin in the Sky”, ao nível dos seus melhores.
            No capítulo da “world”, o Sons em Trânsito não deixa igualmente os seus créditos por mãos alheias. Janita Salomé e os Segue-me à Capela constituem a representação portuguesa que, no dia 5, abre o festival. No dia seguinte o inglês Jim Moray, a quem já chamaram o “Radiohead da folk”, procurará provar a justeza do seu disco de estreia ter sido considerado “álbum do ano” pela BBC.
            Diretamente do cadinho da música cubana, Omara Portuondo atuará no SET no dia 11. Omara é uma das presenças no catálogo de luxo “Buena Vista Social Club”. Dia 12, os espanhóis Elbicho irão mostrar que não são só os Ojos de Brujo que são capazes de dar a volta ao texto ao flamenco. A fechar estará Afel Bocoum, do Mali, intérprete do chamado “blues do deserto” e discípulo do mestre Ali Farka Touré.

02/06/2020

Joni Mitchell - Shadows and Light


Y 22|OUTUBRO|2004
roteiro|discos

|DVD

JONI MITCHELL
Shadows and Light
Warner Vision

7|10

Joni Mitchell foi uma revolucionária dos sentimentos contidos entre o amor e a perda, evoluindo no sentido de um aprofundamento das formas musicais do canto e da emoção – das baladas folk de “Ladies of the Canyon”, “Blue” e “For the Roses” ao jazz de “Mingus”, do experimentalismo de “The Hissing of Summer Lawns” aos ventos gelados de “Hejira”, da eletrónica falhada (o seu único passo em falso) de “Chalk Mark in a Rain Storm” ao mergulho final num classicismo de luxo dos derradeiros “Turbulent Indigo”, “Taming the Tiger”, “Both Sides now” e “Travelogue”. Depois, desiludida com a indústria, abandonou a música. Primeiro a estrada, depois o estúdio. “Shadows and Light” apanha-a no último ano da década de 70, ao vivo no Santa Barbara County Bowl, num concerto com um naipe de músicos de primeira água ligados ao jazz: Pat Metheny, Lyle Mays, Jaco Pastorius, Michael Brecker e Don Alias, mais o grupo vocal The Persuasions. O DVD não inclui a totalidade das canções do álbum do mesmo nome editado em 1979, oferecendo como extra apenas um diário de fotos da digressão. Joni aparece vestida de senhora já na meia-idade, armada com guitarra acústica e aquela voz que hoje faz escola na nova geração de “singer songwriters”. O alinhamento inclui clássicos como “In France they kiss on main street”, “Coyote” e “Amelia”, do período mais aventureiro da autora (de “The Hisssing…”, “Hejira” e “Mingus”), a par de “standards” como “Goodbye pork pie hat”, e dois momentos reservados aos solos de Jaco Pastorius, no baixo elétrico, e Metheny, na guitarra. Pouco compreensível é a introdução, com imagens de James Dean em “Fúria de Viver”, de Kazan. Pelo meio há excertos de clips também pouco espetaculares. A cantora surge disfarçada de corvo (como na contracapa de “Hejira”) a patinar sobre o gelo, no meio de “Black crow” e, em “Coyote, há imagens – surpresa! – de um coiote. O que significa que este é um DVD mais para se ouvir, nos prazeres da alta definição do 5.1 Dolby Digital Surround, do que para se ver.

Jean-Michel Jarre - Aero


22|OUTUBRO|2004 Y
discos|roteiro

JEAN-MICHEL JARRE
Aero
CD + DVD
Warner Bros., distri. Warner Music
7|10

Reavaliado como pioneiro da “house”, Jarre tanto é capaz de pôr a sua parafernália de sintetizadores ao serviço de uma eletrónica de “jingles” publicitários, como de se alargar em obras conceptuais (os 50 minutos de “ambient” subaquática de “Waiting for Cousteau” rivalizam com o próprio Eno) que alargam as fronteiras dessa mesma eletrónica. “Aero” apresenta a novidade de ser o primeiro álbum inteiramente idealizado e gravado no sistema 5.1 Surround, que Jarre considera tão revolucionário como a transição do mono para stereo. Da edição faz parte um segundo CD, áudio, mais curto. O DVD, composto por inéditos e regravações de temas antigos de “Oxygène”, “Equinoxe”, “Zoolook” (com Laurie Anderson), “Magnetic Fields” e “Rendez-Vous”, é um portento de arquitetura sonora, aproveitando o espaço tridimensional como meio ideal para esta música revelar todas as suas virtualidades. Mesmo os temas mais “programáticos” parecem ganhar uma dimensão etérea, enquanto as novas “Scenes” e fragmentos de “Aero” vão buscar alento ao psicadelismo (o fósforo a raspar na lixa, como em “Alan’s psychedelic breakfast”, dos Pink Floyd) e a toda uma gama de efeitos cromáticos. Como suporte visual, um plano fixo dos olhos da atriz Anne Parillaud, filmados em alta definição. Perfeito “muzak”.

DAT Politics - Go Pets


Y 22|OUTUBRO|2004
roteiro|discos

DAT POLITICS
Go Pets
Chicks on Speed, distri. Ananana
7|10

De terroristas sónicos os DAT Politics passaram a fabricantes de brinquedos. O tempo da agressão sonora acabou. Hoje o trio francês põe os seus “laptops” ao serviço de uma pop eletrónica fortemente macerada pela ironia onde os truques de prestidigitação e uma originalidade difícil de encontrar noutros grupos das chamadas “funny electronics” continuam a marcar pontos. “Suportem a boa música! Comprem este disco!!!” é a exclamação que inseriram numa capa que é toda ele um manifesto de intenções, com um dragão verde de peluche e os três franceses vestidos com trajes coloridos a espremer laranjas ou ao balcão de uma pastelaria. “Go Pets” é uma girândola de vozes, manipuladas ou não, programações digitais sempre interessantes e artefactos tão rudimentares como uma guitarra ou um banjo. Música de corda, a pilhas ou ligada à corrente, consegue ser tão inclassificável quanto a indescritível panóplia de efeitos e ligações perigosas de uma faixa como “No fairytale” o permite. Os DAT Politics são os Yello do novo milénio, com as suas brincadeiras nalguns casos proibidas. Apesar do arco-íris, eles avisam: “Isto não é um conto de fadas”.

Espíritos e estrelas [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 16 OUTUBRO 2004

Há estrelas do espírito, da “FC” e do espectáculo. Três saxofonistas são quem brilha com maior fulgor.

Espíritos e estrelas

“Não é uma batalha nem uma competição, é sobre a alegria de tocarmos juntos”, diz Brecker, um dos três espíritos em ação. Os estilos são diferentes mas amigos, encaixando-se entre si de forma brilhante. Brecker, no tenor e kaval (flauta de madeira búlgara), ouve-se no canal direito. Liebman, no tenor e soprano e flauta indiana, sai pelo centro. À esquerda toca Lovano, no tenor, clarinete alto, tarogato (instrumento de sopro húngaro) e fl auta africana. Na secção rítmica estão Phil Markowitz (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Billy Hart (bateria). Um sétimo espírito paira sobre o coletivo: John Coltrane. De Trane são interpretados “India” e “Peace on Earth”, sendo o primeiro destes temas fulcral na economia deste “Gathering of Spirits”, com a sua entrada exótica de flautas e um espetacular “duelo” harmónico entre os saxofonistas, Lovano evoca as conversas de Coltrane com Pharoah Sanders levadas a cabo em “Om”. É como uma construção de cores e luzes. Markowitz pinta uma tela de piano fosforescente em “Tricycle”, composição de Liebman. Hart, considerado voz do drama, sabe criar tensão e estruturas capazes de levar os saxofonistas a registos excitantes. Na arte combinatória deste “Summit” de sensibilidades e forças que se equilibram e encontram no máximo múltiplo comum (será ainda Coltrane?) da criatividade, a soma é um paraíso e uma selva. Estrelado e luxuriante. Um grande disco de grande jazz.
            Quem gosta muito de viajar entre as estrelas é Chick Corea, teclista que nunca escondeu o gosto pelos universos do fantástico e da fantasia. Agora, ele e a sua Elektric Band apontaram a nave para os confins da galáxia, servindo-se para isso das instruções de “To the Stars”, uma novela de L. Ron Hubbard. No livro são abordadas questões da física da relatividade de Einstein, como a dilatação do tempo. “To the Stars”, o disco, viaja através do jazz rock e, apesar de alguns clichés a que é difícil escapar num género estafado como este, é um dos mais conseguidos álbuns da Elektric Band. Claro que pode não ser evidente a relação entre viagens pelo espaço à velocidade da luz e a música cubana, como acontece em “Mistress Luck – the Party”, mas o que pode parecer absurdo acaba por soar divertido. Há momentos, porém, de pura abstração eletrónica, muito “space rock”, quase “Kosmisch muzik”, ou muzak cósmico, como os vários segmentos de “Port view”. “The long passage”, por exemplo, tem tudo o que o típico jazz-rock costuma exibir: fulgor “flashy”, batida forte, energia elétrica e floreados de estilo. Num ou noutro momento, por entre as frases feitas e os rodriguinhos técnicos, até passa algum jazz menos condicionado, como em “Jocelyn – The commander”. Seja como for, este ensaio de música temperada por ficção científica cairá direitinho no goto dos que se pelam pelos Weather Report mais comerciais ou por anteriores trabalhos de Corea nesta área, como “Hymn of the Seventh Galaxy”.
            Mas o piano vinga-se nas mãos de um dos seus mestres, McCoy Tyner, figura histórica. Curiosamente, vemo-lo igualmente às voltas com a música cubana, em “Angelina”, um dos temas do seu novo disco, “Illuminations”. De Tyner, já se sabe, tira-se sempre algo de bom, neste caso, mais que não seja, a judiciosa escolha dos músicos que o acompanham, Gary Bartz (saxofones), Terence Blanchard (trompete), Christian McBride (contrabaixo) e Lewis Nash (bateria). Este não será o Tyner contemplativo e sideral que tocou com Coltrane, mas o brilho fulgurante de uma mão direita que não cessa de ornamentar mantém-se. É jazz bem dentro da tradição, mesmo que Bartz o tente empurrar para fora dos limites. Nada de novo por estas paragens senão a confirmação de um estatuto há muito adquirido...
            Combinação inusitada é aquela que nos é oferecida por Benny Green e Russell Malone, respetivamente no piano e na guitarra. Jim Hall e Bill Evans poderiam servir de modelo. Mas não. O suporte começa por ser o “blues”, mas o tom geral é de descontração, como um “divertissement” a dois, simples e feliz. Green e Malone iniciaram a sua cumplicidade no discipulado de Ray Brown. Green tocou com Brown, Art Blakey e Diana Krall. É um pianista leve e ágil, sem angústia. Malone, antigo companheiro de Jimmy Smith e membro da orquestra de Harry Connick Jr., move-se num quadrado compreendido por Grant Green, Kenny Burrell, Django Reinhardt e Pat Martino. Dos diálogos entre ambos ressalta o prazer do salto, da nota picotada, de um balanço ligeiramente “retro” onde a ligeireza de uma canção como “You are the sunshine of my life” contracena com a distante melancolia de “Flowers for Emmett Lill”. Bom astral.
            Não se lhes peça, porém, o que se percebe, logo às primeiras notas, ter o trio Geri Allen (piano), Dave Holland (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria), vindos os três de uma participação no álbum “Feed the Fire”, de Betty Carter: paixão. Inspirada por Herbie Hancock, Geri mostra-se inventiva, progressiva e impulsiva no forte encadeado harmónico dos temas. O ataque é soberbo, por vezes violento e, aparentemente, pouco feminino, em que as notas são percutidas sem piedade, como flores esmagadas num desejo de entrega. Porque “The Life of a Song” é, nas palavras da pianista, “Give and take and give”. Ouça-se “Lush life” e a sua investida perante a vida, as teclas agudas marteladas até se lhes extrair a última gota de sangue e sumo. “In appreciation: A celebration song”, pelo contrário, tem o toque caloroso da “soul” da Tamla Motown e a devoção de um “gospel”. Dave Holland e DeJohnette são os parceiros a grande altura, a cidade de múltiplas avenidas ao longo das quais o piano inventa os seus “blues” e os seus vermelhos. Jazz a correr sempre em frente, sem contemplações. Nem medo de olhar e parar para se enternecer num “Inconditional love”.
            Eletrónico, urbano, diluviano. Assim se traça a introdução da mais recente aventura de um saxofonista querido do “Show business”, Courtney Pine – “Devotion”. Promete ser interessante. Mas depois entra na fogueira do “rhythm ‘n’ blues” e dá mostras de querer viajar por muitos sítios. É fusão, é confusão. De “R&B” com reggae, no título-tema, de variedades com canção “soul”, em “Bless the weather”, de “hip hop” com ritmos das Caraíbas, em “Interlude: The saxophone song”, de pop com música indiana em “Translusance”. Mas também há funk e África em “Osibisa”, mais cheiro a “R&B” comercial e, acima de tudo, há o desejo de ir a todas. Como disco de jazz, é para esquecer. Como entretenimento, pode funcionar. Se Pine continua a ser um bom saxofonista? Nem dá para perceber.

Michael Brecker, Dave Liebman, Joe Lovano
Saxophone Summit: Gathering of Spirits
Telarc
8 | 10

Chick Corea Elektric Band
To the Stars
Stretch
6 | 10

McCoy Tyner
Illuminations
Telarc
6 | 10

Benny Green & Russell Malone
Bluebird
Telarc
6 | 10

Geri Allen, Dave Holland, Jack DeJohnette
The Life of a Song
Telarc
7 | 10

Courtney Pine
Devotion
Telarc
5 | 10

Todos distri. Andante

Adiafa armam baile no Alentejo com novo disco


CULTURA
DOMINGO, 10 OUT 2004

Adiafa armam baile no Alentejo com novo disco


“Tá o Balho Armado”, segundo álbum, dos Adiafa, foi apresentado ao vivo em Beja, com os convidados Rui Veloso, Paulo de Carvalho e Gaiteiros de Lisboa

Tiveram a fama e o proveito, mas não ficaram ricos. Nenhum deles comprou casa nova, garantem. Apesar disso tornaram-se durante meses verdadeiras celebridades da música popular portuguesa. “As meninas da Ribeira do Sado” foi a canção que andou nas bocas de Portugal de Norte a Sul e levou os alentejanos Adiafa ao sucesso, aos “tops” e, o álbum de onde foi tirada, a disco de platina, com mais de 40 mil vendidos.
            Agora, com o segundo CD lançado no mercado, “Tá o Balho Armado”, os Adiafa procuram, no mínimo, manter a força da onda, ainda que, desta vez, não se vislumbrem outras “meninas” no horizonte.
            A apresentação oficial do disco foi na sexta-feira, no Pavilhão Polivalente de Exposições de Beja. Com um concerto onde estiveram praticamente todos os convidados do álbum, incluindo Rui Veloso, Paulo de Carvalho e os Gaiteiros de Lisboa, com as canções que interpretam no disco, respetivamente “Feira de Castro”, “Saias” e “Sambombita”.
            Um concerto equilibrado, apesar do som deficiente, com constante troca de músicos em palco e muita descontração, ao ponto de num dos lados do palco estar uma mesa posta com comes e bebes para receber os músicos após cada intervenção.
            Foram apresentadas todas as faixas de “Tá o Balho Armado”, mais um tema extra para os convidados especiais. Os Gaiteiros, com o seu “O menino está na neve”, do álbum “Invasões Bárbaras”, Paulo de Carvalho com uma vocalização “a capella”, Rui Veloso com “O primeiro beijo”. José Salgueiro, dos Gaiteiros, ajudou à bateria numa série de canções. Joaquim Simões, no fagote, Augusto Graça, na flauta, Pedro Mestre, na viola campaniça, os Alentejanos, em “cante” vocal, e o grupo de bombos e percussões Bardoada, participaram também no concerto e na adiafa (festa) improvisada. No final apoteótico todos, incluindo uma matrafona elevada no ar, cantaram em coro “As meninas da Ribeira do Sado”. Os Adiafa não se vão livrar delas tão cedo.
            “Tá o Balho Armado” é um disco feito com mais tempo e meios técnicos do que o seu antecessor. Apresenta duas partes distintas. A primeira, mais popular e acessível, é mais cantarolável e dançável. Começa, como o álbum de estreia, com umas meninas, mas desta vez sem carrapatos atrás das orelhas, “Meninas façam arquinho”, cuja introdução falada conta com o desempenho de João Canto e Castro a imitar o professor José Hermano Saraiva.
            Segue com uma alentejanizada “Mula da cooperativa”, de Max, homem de outras adiafas. Mas a aposta forte, que irá ser editada em “single”, para suceder às “Meninas da Ribeira do Sado”, é “Ó Ana, ó Ana, ó Ana…”, com as suas sugestões de rimas marotas (“Semeei no meu quintal/Uns quantos dentinhos de alho/Saltou-me o cabo do sacho/E bateu-me no…”). Na segunda metade de “Tá o Balho Armado”, as polifonias vocais tornam-se mais solenes e a música aproxima-se do mais fundo da tradição alentejana. “Sambombita”, moda de Barrancos, pelos Gaiteiros de Lisboa, é arrasadora e surpreendente é a toada hipnótica e arabizante de “Afã”.
            Falta esperar pelos resultados, que é como quem diz, pelo número de vendas. O sucesso do primeiro disco fez aumentar as expectativas e a responsabilidade. “Fazer o segundo disco não custou”, diz Luís Espinho, uma das vozes dos Adiafa, “Agora o impacto, o ‘feedback’ deste segundo trabalho só por muita sorte é que conseguirá atingir o nível do primeiro, que foi realmente um fenómeno.”
            Comparando os dois discos, Espinho explica que “em termos de tempo” que tiveram para o fazer, este foi “incomensuravelmente maior” e que o novo estúdio “está muito mais bem apetrechado”. “Fizemos aquilo que queríamos, a diferença está em que o novo disco terá um som um pouco mais urbano, embora baseado na mesma traça, na música de recolha”.
            Ultrapassada está a morte de um dos elementos fundadores do grupo, Emídio Zarcos, cuja memória os Adiafa não se dispensam de homenagear. O grupo, porém, continuou na estrada. “Se nós nos ressentíssemos, o Zarcos de certeza zangava-se, esteja ele onde estiver. Olhámos uns para os outros, doridos, mas decidimos continuar. O trabalho por vezes faz esquecer as tristezas.” Porque, afinal, os Adiafa são “um estado de alma”, uma mesa posta para a festa onde constantemente “uns saem e outros entram”.

Serenos como o azul do céu [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 9 OUTUBRO 2004

Serenos como o azul do céu

Garbarek faz-nos sonhar. Há um ‘jazz’ escandinavo cuja preocupação é levar-nos para um lugar de paz.

A capa é bonita. A música bonita é. Posto isto, quem quiser “blues” faça o favor de passar à frente. Ficou alguém? À espera de “swing”? Também podem tirar os cavalinhos da chuva. Neste disco também não há. O disco chama-se “In Praise of Dreams” e é o novo do saxofonista norueguês Jan Garbarek. Já antes tinha falado de sonhos, em “Legend of the Seven Dreams”, por sinal um dos seus melhores dos anos 80. Mas então se não tem “blues” nem “swing”, o que é que tem? Bom, é jazz europeu, não é jazz negro americano e Garbarek há muito que nos habituou a servir gelados de frutas, doces e fresquinhos. “In Praise of Learning”, se virmos bem, até terá muito pouco de jazz, tendo a ver sobretudo com a tradição clássica europeia (os dois discos que gravou com os Hilliard Ensemble fizeram mossa) e com a folk nórdica. Bem entendido, o timbre do tenor de Garbarek é inconfundível, às vezes nem sequer parecendo tratar-se de um saxofone mas de uma gaita-de-foles. Mais suave. Em Garbarek tudo é suave. E, neste álbum, embora ele diga que não, muito eletrónico. Além dos saxofones tenor e soprano, o norueguês encarrega-se dos samplers, sintetizadores e programações. Poderia resultar em algo parecido com o que John Surman fez na sua fase mais eletrónica e minimalista para a ECM, mas não resultou. O que em Surman é sequencial e parte integrante de uma música hipnótica, quase dervíshica, em Garbarek soa na maior parte dos casos como acompanhamento automático e plastificado, fazendo lembrar os “pre sets” rítmicos de um órgão farsola. Toda a primeira metade do disco padece deste mal e até pode acontecer que os ouvintes com mais má vontade não consigam passar da primeira faixa, “new age” a fingir de jazz com som puríssimo para valorizar as aparelhagens. O título tema, logo a seguir, é medievalesco e melodicamente apelativo até dizer chega. O “problema” está em que, se ouvido duas ou três vezes, se cola ao ouvido e já não sai de lá. Algo parecido com o que o compositor já nos tinha oferecido em “Rosensfole”, com a cantora Agnes Buen Garnas ou com o ascético “The Sky of MInd”, de Ray Linch. O programa segue com sequenciações de baixo eletrónico ou a imitar tambores tribais e modalismos vários, incluindo as escalas árabes de “Cloud of unknowing”, faixa de transição para a última e bem mais interessante fase final do disco. Quando a eletrónica baixa de facto o tom e se aproxima dos tais trabalhos de John Surman. O plástico derrete e começam a fazer-se ouvir sinos de cristal e as cintilações de um espanta-espíritos. “Iceburn” é uma pequena maravilha e “Conversation with a stone” tem o balanço íntimo de Stephan Micus e um soprano de feira fantasmagórica como a dos Tuxedomoon, de “Desire”. Além dos saxofones e da eletrónica, o jogo de cores beneficia do mais do que adequado e complementar desempenho de Kim Kashkashian, na viola de arco, enquanto Manu Katché se remete a um discretíssimo papel na bateria. Em última análise, “In Praise of Learning” cumpre aquele que terá sido o seu principal objetivo: fazer sonhar num céu sem nuvens.
            Mais azul celeste, mais jazz escandinavo, mais eletrónica e paisagens amplas para contemplar em estado de serenidade. Oferecidos por Tobias Sjögren, guitarrista, elétrico e acústico com a preocupação exclusiva de nos acariciar. A guitarra, bem como os restantes instrumentos solistas, em particular o piano, o clarinete e o saxofone, aconchegam-se invariavelmente sobre um colchão de sintetizadores, umas vezes “new age”, outras impressionistas. A voz de “Svenska skogar” faz lembrar Robert Wyatt e, pensando bem, o disco tem tudo para ser do agrado dos apreciadores de rock progressivo, estilo plenamente assumido em “Mänen ur molnen”. Nos pontos de “clímax”, a música ganha uma sumptuosidade cinematográfica, a contrastar com o tom introspetivo da guitarra. Claro, há coisas a evitar, como os coros de “Förväntan”, mas fazem sentido na lógica global de “Tobias Sjögren”. Mas não sejamos cruéis. Ouvido no estado de espírito adequado, esta é uma música de propriedades curativas capaz de nos levar para longe do ruído da realidade. Música limpa.
            “Norrland”, de Jonas Knutsson e Johan Norberg, com a sua capa com lago, montanhas, céu e vegetação, mais parece ser um disco de “folk” do que de jazz. Jonas é um saxofonista discípulo de Garbarek que em “Norrland” se faz acompanhar por um único comparsa, Johan, na guitarra e no “kantele” (saltério escandinavo de grandes dimensões). Poderia ser um disco de Jan Garbarek, com as suas melodias inspiradas em motivos tradicionais. Por outras palavras, mais música bonita para escutar com a pré-disposição certa. Três discos agradáveis, contemplativos, para os quais o jazz é, mais do que uma ferramenta ou um ideal, um pretexto.

Jan Garbarek
In Praise of Dreams
ECM
7 | 10

Tobias Sjögren
Tobias Sjögren
Q-Rious
6 | 10

Jonas Knutsson & Johan Norberg
Norrland
Act
6 | 10

Todos distri. Dargil