22/06/2020

Alterações ao regulamento [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 23 OUTUBRO 2004

Na música livre, improvisada, vale tudo ou valem apenas os melhores? A liberdade não se diz, experimenta-se e arrisca-se. Num esgar de sofrimento ou numa saudável gargalhada.

Alterações ao regulamento

Haverá uma diferença real entre o “free jazz” e a “free music”, ou são designações paralelas para uma idêntica forma de expressar a liberdade? “Free jazz” implica romper a tradição, é uma “oposição a”, o direito ao contraditório. “Free music” pode ser jazz e muito mais. Música de fusão, no sentido mais universal de incorporar várias linguagens musicais num corpo unitário. Porém, não uma fusão “exterior”, de estilos, géneros ou fórmulas, mas um enclave “interior”, cadinho espiritual onde o músico, e só ele, se entrega à captação, síntese e manifestação de realidades musicais díspares. Um grande executante de “free music” é aquele que, tecnicamente apto, possui a capacidade de escuta transcendente. Ele é a antena que recebe os sinais dos outros músicos, se for caso disso, mas também do próprio fluxo cósmico da música. E entrega-se a este fluxo, domando-o com a sua própria voz. Na “free music” cabe o que de algures vier: interferências clássicas, uma valsa, etnicidades primordiais, o rock, a arquitetura abstrata, o grito, a gargalhada, o choro. O melhor exemplo de “free music” que alguma vez presenciámos ao vivo aconteceu na primeira atuação de um coletivo liderado por Michel Portal, se não estamos em erro, nos anos 80, num pequeno cine-teatro em Sintra. O concerto começou com Portal a arrastar cadeiras pelo chão e terminou na explosão de uma supernova. E era música esse arrastar. E Portal literalmente chorou ao escutar um solo de um seu companheiro. E o sagrado, mas também a loucura, aconteceram, levando a música para uma lógica de sintonia absoluta entre a eternidade e o instante, o silêncio e o fogo, a escuta e o ato interpretativo. Tudo foi improvisado e nada foi aleatório. Tinha que ser assim, porque nas mais altas esferas é a música que toca o músico e não o contrário.
            Ao nível da receção, poderíamos ir mais longe e assertar na hipótese de que é absurdo e sempre limitativo gravar em disco um acontecimento musical ao vivo desta índole, ainda mais a improvisação, irrepetível e irreproduzível. A editora FMP (Free Music Productions) de Berlim confronta-se com esta questão, mas ultrapassa-a afirmando a necessidade do testemunho e da descoberta. As suas “Unheard music series” recuperam mundos e fundos dos anos 60, 70 e 80, quando o “free jazz” quis formatar a liberdade alcançada numa ordem superior. Não já o caos, mas o tal espaço de unidade (mas também de manobra) transcendental onde a grande música se revela.
            O alemão Peter Brötzmann é praticante desta religião. Em “Berlin Djungle”, gravado em 1984, no Festival de Jazz de Berlim, reuniu num Clarinet Project uma improvável constelação de estrelas. Nos clarinetes – seis – estavam, além do próprio Brötzmann, Tony Coe, Louis Sclavis, John Zorn, Ernst-Ludwig Petrowski e J. D. Parran. Dois trombones: Hannes Bauer e Alan Tomlinson, e um trompete, Toshinori Kondo. Mais a secção rítmica de Cecil Taylor: William Parker, no contrabaixo, Tony Oxley, na bateria. Uma única composição, “What a day”. Sobre, dentro, sob e fora dela, um amplo encontro/desencontro onde os momentos solísticos, mais melodiosos, desafiam a cacofonia do “ensemble”. Há uma procura de sobrevoo, mas a insistência no grito pressupõe angústia e alguma impotência em encontrar o plano superior. É de uma selva que realmente se trata. Já perto do final, Parker encontra o cântico dos cânticos.
            Em 2000, a FMP editou “Nipples”, uma gravação de estúdio de 1969, com o sexteto de Brötzmann (sax tenor), Evan Parker (saxes tenor e soprano), Derek Bailey (guitarra), Fred Van Hove (piano), Buschi Niebergall (contrabaixo) e Han Bennink (bateria). Dos arquivos da editora foi agora recuperado material adicional da mesma sessão, uma composição do sexteto mais duas composições de um quarteto, sem Parker nem Bailey. Em “More nipples”, o tema, Bailey impõe a sua geometria de estilhaços e Bennink é o seu inspirado parceiro, percutindo “metal on metal” ao lado dos harpejos de Van Hove. Brötzmann assina um solo explosivo, ponto de fuga incendiário na contracorrente da implosão recorrente no resto da faixa. Nos outros dois temas, com Parker e Bailey ausentes, Fred Van Hove abre claustros imensos, entrando em diálogo dialético com os delírios do saxofonista. O mesmo Van Hove entra “na zona”, em “Fat man walks”, num espiritual que obriga o próprio Brötzmann a depurar as chagas até as transformar em oração. Sofrida até às últimas consequências.
            É ainda Brötzmann que dá a cara em “Brötzmann, Van Hove, Bennink” (1973), num trio, habitual, com os outros dois. Aqui a “free music” faz jus à fusão de que falávamos no início. Fred Van Hove cria na celesta ambiências de “nursery rhyme”. Brötzmann imita um apito de chamar pássaros (como Zorn costumava fazer…) e solta onomatopeias e Van Hove toca… rock‘n’roll sobre gargarejos de gigante. Na “bricolage” percussiva, Bennink é, como de costume, brilhante. Desta vez, são miniaturas onde tudo pode acontecer, desde lições de piano a batuques e aventuras no espaço. O gozo de quem toca é imenso. O de quem ouve, também.
            Mas em 1960 a tradição ainda não era letra morta. Antes de se dedicar ao teatro, George Gruntz (piano e líder de orquestra suíço) participou em 1960 na banda sonora de um estranho projeto, “Mental Cruelty”, filme do seu compatriota Hannes Schmidhauser. Schmidhauser, ex-jogador de futebol, farto de desempenhar papéis de camponês em fitas de segunda, resolveu realizar ele próprio o seu filme, ao estilo “nouvelle vague”. Um casal apaixona-se, casa e divorcia-se. Divorciam-se alegando o quê? “Mental Cruelty”, precisamente. A música é fina e swingante, “bluesy” e dentro dos cânones da nova vaga posta em som, em tons ligeiros, mas com a inestimável participação do interessantíssimo saxofonista francês Barney Willen. Kenny Clarke mostra-se bom rapazinho na bateria e Gruntz, mais do que um pianista boppish, é aqui um pianista poppish. A música está longe de ser cruel.
            Já o mesmo não se poderá dizer da do pianista/clarinetista/trompetista holandês Kees Hazevoet e do seu quarteto, liderança partilhada com o saxofonista alto Kris Wanders. O baterista é o sul-africano Louis Moholo. Editado originalmente em pequena quantidade em capa feita à mão, “Pleasure” apresenta-se em estado de combustão permanente, mas de uma forma mais desorganizada (e desorganicizada, apesar de o holandês ter abandonado a música para se dedicar à zoologia...) e superficial do que a de Brötzmann, por exemplo. Aposta-se em criar e aliviar tensões, sem que de tal dinâmica resulte uma chave que abra outras dimensões. Música física, do corpo, suor e músculo, ganharia em olhar para cima. Assim, o horizonte é horizontal.
            Bem mais interessante é “Open” (1977) do trio Gerd Dudek (flauta, shenai, saxes soprano e tenor), Buschi Niebergall (contrabaixo) e Edward Vesala (bateria). Dudek tocou com Manfred Schoof nos anos 60, Niebergall, já falecido, alinhou ao lado de Alexander Von Schlippenbach e Brötzmann e Vesala andava pelas avenidas do “free” antes de se tornar “atmosférico” na ECM. “Open”, gravado ao vivo no Workshop Freie Musik, da Academia das Artes em Berlim, é saxofone para a frente, em longos e ditirâmbicos solos, nos quais Dudek dá ênfase à dinâmica e à cor, incorporando no discurso uma certa veia ascética. “Free” sem rodriguinhos e com ideias bem alicerçadas no que está para trás.
            Não há “para trás” em “Voila Enough”, gravações de 1979 a 1981 de um quarteto cuja lista de nomes dá desde logo indicações do que se poderá esperar. São ingleses, excêntricos e davam pelo nome de Alterations. Steve Beresford, Terry Day, Peter Cusack e David Toop. Tocam guitarras, feedback, “possible clarinet”, balões, bandolim, sintetizador de bolso, “palheta em chávena”, euphonium, caixa de música, órgão de brinquedo automático, sirene, caixa de galinha, gira-discos de brinquedo, microfones, apitos para chamar cães, trompa animal, violino africano, etc., a par de artefactos jazzísticos mais convencionais. Surpresa permanente. Como se, de súbito, fôssemos atirados para o interior de uma oficina de reparações dirigida por lunáticos. Vale tudo. Improvisa-se com tudo. A música é um jogo de obliterações e gestos surpreendentes que procuram arrancar dos objetos a sua essência musical. Os Alterations são equivalentes dos Art Ensemble of Chicago, mas o seu humor é tipicamente britânico, na pose “nonsense”, na piada lançada no momento mais sério. Poesia do ruído, citações “ragtime”, uma atitude “punk”. Mais tarde, em 1985, atolados em novas tecnologias, os Alterations fecharam as portas, quando se esgotou, dizem, a sua veia humorística. Está tudo dito. Mas muito fica para se ouvir.

Brötzmann Clarinet Project
Berlin Djungle
7 | 10

The Peter Brötzmann Sextet/Quartet
More Nipples
7 | 10

Brötzmann, Van Hove, Bennink
Brötzmann, Van Hove, Bennink
8 | 10

George Gruntz
Mental Cruelty
7 | 10

Kees Hazevoet Quartet
Pleasure
6 | 10

Dudek, Niebergall, Vesala
Open
7 | 10

Alterations
Voila Enough!
8 | 10

Todos FMP/Unheard Music Series, distri. Ananana

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