14/08/2008

Patrick Street - All In Good Time + Kevin Burke - Open House

Pop Rock

5 MAIO 1993
WORLD

A IRLANDA AO PÉ DA RUA
PATRICK STREET

All in Good Time (9)CD Special Delivery, import. VGMKEVIN BURKE
Open House (8)
CD Green Linnet, distri. Megamúsica

Irlanda e Portugal são dois países parecidos em mais do que um aspecto. Em matéria de música tradicional, contudo, é como se pertencessem a galáxias diferentes. Enquanto em Portugal se contam pelos dedos os músicos desta área activos e de boa craveira técnica, na Irlanda há-os às centenas, senão aos milhares, nestas condições. Porquê tal disparidade? Porque na Irlanda aprende-se desde pequenino a prezar o passado, a amar a música, a encorajar a sua prática, através do ensino e de muito trabalho. Em Portugal é o que se sabe – a música tradicional é considerada um género menor. Por isso, na Irlanda a tradição mantém-se viva de geração para geração, no campo e na cidade, em cada esquina e em cada rua. Por isso, em Portugal sai um disco decente de cinco em cinco anos, e na Irlanda dezenas em cada semana, passe o exagero. Em quase todas as cidades da Irlanda existe uma Patrick Street, em homenagem ao santo, St. Patrick, que converteu o país ao cristianismo. Patrick Street é igualmente o nome de um violinista que, conta a lenda, antes de morrer terá confessado o seu maior sonho: ouvir uma banda formada por Kevin Burke, Jackie Daly, Andy Irvine e Arty McGlynn. O seu sonho tornou-se realidade. Após dois álbuns de antologia com esta formação, “Patrick Steet” e “No. 2”, mais um epílogo em jeito de concessão e com tiques de supergrupo, “Irish Times”, os Patrick Street deram o assunto por encerrado. Até 1993, ano da ressurreição. Os resultados justificam a reunião deste quarteto de sonho, que conta no currículo dos seus elementos com o mestrado nas instituições Planxty (Andy, Arty), Bothy Band (Kevin) e De Dannan (Jackie, Arty). “All in Good Time” espanta pela frescura, como se a música da Irlanda acabasse de ser inventada. Depois, percebe-se a fluência imensa do discurso, uma sensação de facilidade que permite aos músicos conseguirem as maiores proezas técnicas com a agilidade de acrobatas. Ady Irvine continua mestre na arte das vocalizações “soft” que foram imagem de marca dos Planxty. “A prince among men”, “The pride of the springfield road”, “The girls along the road” e “Carrowclare” justificam por si sós a elevada qualidade de um álbum que, no capítulo instrumental, é simplesmente imaculado. Para a perfeição faltará talvez o pico de ousadia que eleva um pouco mais alto o compêndio “The Fire Aflame”. Kevin Burke, o violinista da banda, por seu lado, arriscou algumas saídas da ortodoxia neste seu terceiro álbum instrumental a solo, fora das habituais sequências de danças tradicionais. Uma das curiosidades de “Open House” é a base rítmica formada exclusivamente pelo “step dancing” de Sandy Silva. Três momentos rompem de forma maravilhosa com a continuidade da “Irish traditional music” que vem chegando às toneladas ao nosso país: “Frailach”, um diálogo feito de subtilezas e ecos mediterrânicos entre o cistre de Paul Kotapish e o clarinete de Mark Graham, uma série de “bourées” de aroma medieval apoiados no ritmo do sapateado e uma nostálgica despedida em cadência de valsa, “La partida”, de novo com o clarinete em destaque. Mark Graham, além do clarinete, instrumento solista pouco vulgar na música irlandesa, faz prodígios com a harmónica (escute-se com redobrada atenção “Crowley’s reel”), que toca com um fraseado equivalente ao do violino, nalguns temas, ou do acordeão, noutros. O violino de Kevin Burke, quase nem vale a pena dizê-lo, é um portento de sensibilidade e de técnica. A Irlanda não pára de nos espantar.

07/08/2008

Versifero rezental e os rechinos [Vítor Rua e os Ressoadores]

POP ROCK

29 de Março de 1995

VERSIFERO REZENTAL E OS RECHINOS*

O humor e as estratégias do acaso desempenham papéis importantes no mais recente projecto musical de Vítor Rua, os Ressoadores, dos quais acabou de ser lançado, com selo Ananana, o CD “Scratch”. Os Ressoadores são alunos de um seminário de guitarra, leccionado pelo músico dos Telectu, que no ano passado deu origem a um espectáculo ao vivo. “Desta vez, além das quinze pessoas que participaram no seminário, reuni os convidados Paulo Eno, António Duarte e Fernando Guiomar”, diz Rua, referindo-se à gravação, objectivo principal desta segunda fase do projecto.
Pouco vulgar é o mínimo que se poderá dizer dos métodos utilizados para a feitura de “Scratch”, cuja direcção estética é da inteira responsabilidade de Rua. Os títulos, por exemplo, foram escolhidos por Jorge Lima Barreto, que retirou ao acaso de um dicionário palavras com iniciais iguais às dos nomes dos vários participantes. Assim, o tema tocado por José Guilherme chama-se “Júpiter genitor” e o de Nuno Silva, “Nebelina sociauxia”. Encontram-se ainda “Facial galiambo”, “Pingo apotrópio”, “Goliardo favila” e “Oxítono hoje muvuga”, entre outras designações bizarras. “Não foi por pretensiosismo”, garante Vítor Rua, a rir.
Além dos títulos, também o próprio corpo musical surgiu a partir de procedimentos do mesmo estilo. Um dos casos mais “radicais”, segundo o guitarrista, é o tema “Geada flavo”, interpretado por Gonçalo Freitas. Dada a ausência forçada de um dos participantes – necessariamente dezoito,- um para cada faixa -, foi preciso arranjar um substituto. Vítor Rua conta que telefonou para Gonçalo Falcão, guitarrista e produtor executivo do projecto, que trabalha numa empresa de “design gráfico”, dizendo-lhe que “tinha um problema”. “Meio a sério, meio a brincar, perguntei-lhe se não haveria alguém no escritório interessado em participar. Ele levantou o telefone e gritou para trás: ‘Alguém quer entrar num disco?’ Ouviu-se uma voz ao fundo a dizer ‘sim!’. Perguntei o que é que tocava. ‘Assobios!’, respondeu a voz, ainda a pensar que era brincadeira. Assobios? Óptimo! Disse para aparecer no dia seguinte às dez da manhã para fazer a gravação!” E assim foi, com o anónimo executante a ser creditado em “Scratch” com uma “whistle guitar”… “É um dos temas que mais gosto”, concluiu Vítor Rua.
Todos estes episódios constituem, pela atitude, uma forma original de Vítor Rua manifestar a sua discordância de um certo pretensiosismo que, segundo ele, afecta o meio artístico nacional: “Há uns tempos, podia dizer-se que havia grupos de rock português maus e bons. No caso da música improvisada, ou das novas músicas, eram tão poucas as pessoas a fazerem-na – o Zíngaro, Telectu, Miso Ensemble… - que não fazia sequer sentido fazer comparações valorativas. De repente, hoje, qualquer pessoa, sobretudo se tiver um pai rico, grava um disco e, como não tem jeito, vai para a música improvisada. Como não consegue fazer três acordes, já não dá para ir para o rock. Então põe uns paus entre a guitarra, compra três discos do Derek Bailey e está a gravar, com uma teoria qualquer na capa do disco, do tipo a dizer ‘polirritmia’ ou expressões como ‘work in progress’ ou ‘politonalidade’…” Vítor Rua fez questão que “Scratch” não tivesse qualquer texto explicativo, fazendo acompanhar essa ausência de informação com uma estrutura musical onde coabitam os ressoadores, desde principiantes a professores de guitarra. “Quase como se as pessoas, nem todas, fossem um instrumento em si, que eu estivesse a tocar”, diz Rua, assumindo por inteiro a sua condição de manipulador. “A ideia foi criar para cada pessoa, ou cada situação, um eco-sistema metodológico de maneira que pouco importava o que cada um iria fazer. À partida estava tudo pré-determinado.”


* título inventado segundo a mesma lógica de “Scratch”, com as mesmas iniciais de “Vítor Rua e os Ressoadores”.

O futuro sem fantasmas

POP ROCK
3 de Janeiro de 1996

Especial Balanço 95 Da Música Portuguesa

O FUTURO SEM FANTASMAS

Uma colheita de ouro, a do ano que findou, de música portuguesa com as raízes mergulhadas na tradição, só comparável à da segunda metade dos anos setenta, com a digestão consumada da ressaca da revolução de Abril.
Três grupos recolheram os louros, assinando trabalhos discográficos notáveis que fizeram a música de raiz tradicional portuguesa avançar um passo de gigante: Brigada Victor Jara, Gaiteiros de Lisboa e Realejo, por ordem cronológica de edição dos respectivos discos, “Danças e Folias”, “Invasões Bárbaras” e “Sanfonia”. Num registo menor, os Quadrilha garantiram o apoio logístico aos generais, com o seu folk rock sem pretensões de maior, em “Até o Diabo se Ria”.
O que faz dos álbuns atrás mencionados obras que vão ficar na história é o facto de cada um deles apontar um caminho no sentido da renovação do legado tradicional. Nenhum está anquilosado no passado. Logo, nenhum deles sofre de artrite, reumatismo ou esclerose. Tal não significa, porém, que se possa passar ao lado, ou, por inépcia, massacrar a música tradicional, por natureza sensível aos maus tratos. Quem conhecer os músicos que compõem tanto a Brigada como os Gaiteiros, verificará que todos eles se submeteram ao longo de anos e anos a um processo de evolução e aprendizagem que se poderá considerar alquímico. Do trabalho de recolha dos primórdios às liberdades tomadas no presente, vai uma jornada longa e, amiúde, dolorosa. Recuperar e actualizar a tradição é perpetuar essa mesma tradição. Criar novas formas a partir do barro exige o conhecimento do barro e as suas técnicas de manipulação. A alma esconde-se na pedra. A luz habita no âmago das trevas. Picasso demorou uma vida até conseguir pintar como uma criança. Umas “uillean pipes” demoram anos até ganhar vida e voz próprias. Não é quem quer, mas quem sabe, quem tem o direito – e o dever – de arrancar a erva daninha e o “folclore”, enquanto deterioração enfeudada a um qualquer poder político, que fazem definhar a verdadeira música – os seus gestos, as suas melodias, as suas cadências, os seus rituais – das comunidades rurais ainda existentes. Não é quem quer, mas quem sabe, quem tem o direito – e o dever - de inventar novas vozes, sobrepondo-se às vozes que levam de vencida e se incrustam no tempo.
A Brigada evitou as rupturas bruscas, apostando no reformismo. Os festejos, sem convulsões, do seu 20º aniversário não poderiam ter sido melhores, não só pela edição de “Danças e Folias”, como pela reedição em compacto de “Eito Fora” e “Contraluz”, culminando num concerto memorável, em Dezembro, no São Luiz. Os Gaiteiros entraram a matar, com a voracidade de predadores. “Invasões Bárbaras” é uma aposta no excesso e na diferença que não deixa ninguém indiferente e volta a agitar as águas mornas de algum contentamento, representando para os anos 90 o que o GAC representou para os 70.
Deixámos para o fim os Realejo, projecto de Fernando Meireles, que partiram de outro lugar e de um outro modo de olhar. Se o objectivo primeiro foi recuperar a dignidade e o prestígio perdido em séculos passados, da sanfona, a verdade é que o som de “Sanfonia”, até pela ênfase colocada naquele instrumento, apresenta características que o aproximam de uma certa forma de “fazer tradicional” disseminada pela Europa, algures entre a música antiga e o folk progressivo das grandes bandas, sobretudo francesas, dos anos 70 (Malicorne, Mélusine, La Grand Rouge, La Bamboche, La Marienne, Maluzerne).
Entre as várias conclusões possíveis de extrair desta trindade que em 1995 ganhou um corpo novo e um novo alento para a música portuguesa, não só tradicional, uma há que se reveste de particular importância. A dessacralização de Michel Giacometti, acompanhada por uma visão mais lúcida e, sem dúvida, mais frutuosa do seu trabalho no campo das recolhas e catalogação dos espécimes étnicos. O seu espólio deixou de ser considerado um mito e, como tal, um dogma, passando a constituir um ponto de referência e de consulta, enquanto material de trabalho prático, à disposição de todos, na condição de não terem mãozinhas de chumbo.
Foi este, aliás, um dos principais tópicos do debate sobre música tradicional e de raiz tradicional portuguesa promovido pelo pop Rock no mês de Novembro, com a presença dos convidados Tentúgal, dos Vai de Roda, Carlos Guerreiro e José Manuel David, dos Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge e José Martins (O Ó Que Som Tem). “O futuro, já!”, título que escolhemos para ilustrar o referido debate, poderia ser, de resto, o lema de uma nova atitude perante a tradição, carregada em simultâneo de sabedoria, ousadia e espírito de inovação. Neste cenário de promessas cumpridas, acompanhado da separação do trigo do joio (1995 foi um mau ano para a “MPP – música popularucha portuguesa”, ou então não se deu por ela, o que vai dar no mesmo…), ficou ainda reservado um lugar de honra para um disco de recolhas onde é possível desfrutar o canto e a música genuínos da população rural de uma localidade de Trás-os –Montes, “Idanha-a-Nova, Toques e Cantares da Vila”, considerado pelo Pop Rock um dos melhores discos de música tradicional do ano, resultado da investigação de José Alberto Sardinha.
A última boa notícia é que o ano que agora se inicia, a confirmarem-se as expectativas, vai ser pelo menos tão bom como o anterior.

Brigada Victor Jara - Contraluz

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Portugueses - Reedições

Brigada Victor Jara
Contraluz
COLUMBIA, DISTR. SONY MUSIC

Editado em 1984, “Contraluz” ganha hoje uma outra relevância, devida em grande parte ao ressurgimento actual da Brigada, materializado no recente a aplaudido “Danças e Folias”. Maior virtude do grupo tem sido desde sempre também o seu maior defeito. A facilidade com que são transformados os temas tradicionais, só possível em quem conserva atrás de si uma longa experiência, tem como reverso da medalha o facto de, por vezes, se notar uma certa ausência de tensão nos arranjos, de “sofrimento” no acto criativo, de trabalho alquímico na composição dos pormenores, nesta passagem do tradicional para o contemporâneo. Algo que sente, por exemplo, em temas como “Arriba monte”, no “”bonito” redundante e tecnicamente pouco seguro da vocalização feminina em “O cativo” ou num certo comodismo das cordas e do acordeão no tradicional açoreano que fecha, em anti-apoteose, “Contraluz”. O que não chega verdadeiramente a ensombrar um disco repleto de boas ideias, como a de sequenciar vários pregões populares, conferindo-lhes uma tonalidade surreal, ou a inclusão de reverberações gregorianas em “Ea, judios”, entre outros achados do estilo Em dez anos, a Brigada saiu da contraluz para a luz. (7)

Clau De Lluna - Fica-Li Noia!

Pop Rock

22 de Março de 1995
álbuns world

CLAU DE LLUNA
Fica-Li Noia! (9)
Sonifolk, distri. MC – Mundo da Canção

Belo trabalho deste grupo da Catalunha cujas promessas não terão sido inteiramente cumpridas no anterior “Cercle de Gal-la”. A música de dança constitui a principal base de trabalho deste sexteto, desde o par de contradanças do século XVIII que abre o disco até às típicas “sardanas” e “jotas” catalãs (incluindo uma “Xota Arabia”), passando por uma canção de Páscoa que se transforma numa mazurca “Tex-mex” (!). Os Clau de Lluna, descontando este ligeiro desvio, raramente se afastam de uma postura ortodoxa. “El pobre banya” recua até às sonoridades renascentistas num excitante enlace da sanfona com a gaita-de-foles. Esta investigação, mas funda no tempo, é aliás a característica que distingue “Fica-Li Noia!” do seu antecessor, com vários temas a deixarem um travo a música antiga como acontece também no título-tema, carregado de sugestões picarescas, ou em “Ball de l’espolsada”. Um dos mais belos momentos do disco pertence a “Vals de sant Marti”, onde os desempenhos do violino, da flauta e do oboé atingem níveis de depuração e ligação notáveis. Destaque ainda para uma polifonia da região de La Garrotxa que introduz o tema final “Aquesta Primavera”, com passagem para uma dança esfuziante da sanfona, do violino e do baixo eléctrico, seguida de uma voz bem enraizada na terra, orando sobre o som de um berimbau, guizos, balidos e pássaros de uma pastagem das montanhas, para por fim a sanfona e a gaita entoarem os derradeiros cânticos em louvor da vida. Indispensável.

Rosa Zaragoza - L'Esperit d'Al-Andalus

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Álbuns world

Rosa Zaragoza
L’Esperit d’Al-Andalus
SAGA, DISTRI, MC-MUNDO DA CANÇÃO

Continuação de um trabalho sistemático de estudo e divulgação das raízes judaica, muçulmana e cristã da cultura espanhola. “L’Esperit d’Al-Andalus”, gravado ao vivo em Albarracín, por ocasião dos II Encontros do Ciclo “La Cultura Hispano-Judia Y Segóvia”, aprofunda alguns dos tópicos anteriormente abordados em “Cancons de Noces del Jueus Catalans”, dispensando, no entanto, alguns aspectos mais “ligeiros” dos arranjos e da interpretação. O formato de canção dá lugar à vertente ascética das três religiões que na Antiguidade partilhavam pacificamente um mesmo espaço geográfico e psíquico, em Espanha, estabelecendo a desejável ligação entre Oriente e Ocidente. Rosa Zaragoza explora por esse motivo os registos “funcionais” da voz, enquanto instrumento iniciático. Em “Envio uns aludo” e “La hora de la siesta”, inspiradas no gnosticismo “sufi”, a repetição salmódica, por vozes masculinas, dos vários nomes de Deus enunciados no Alcorão, funciona como oração/técnica de transmutação da “tensão nervosa” em “atenção espiritual”, para atingir o estado de transe e de “activação dos centros de energia criadora”. Os mesmos a que a religião hindu chama “chakras”, accionados pelo eixo/via/espada de Kundalini. Os apreciadores de música antiga encontrarão um motivo adicional de interesse na interpretação da “Sibila”, onde a cantora catalã preferiu a versão de Maria del Mar Bonet ao arquétipo consagrado por Monserrat Figueras com os Hesperyon XX. (8)

Márta Sebestyén - Kismet

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Álbuns world

Márta Sebestyén
Kismet
HANNIBAL, DISTRI. MVM

No passado Márta “My dear” Sebestyen habituou-nos a que a identificássemos com os Muzsikas, doutores que não gostam de brincar com as coisas antigas. Ou com os Ökros Ensemble, que ainda gostam menos. Mas a “voz “ da Hungria já nos tinha avisado de que a sua inquietação teria que levá-la inevitavelmente para outro tipo de paragens, menos condicionadas pelos dogmas. “Apocrypha”, conjunto de versões de temas tradicionais reinseridos num contexto de pop electrónica, e a participação no pesadelo industrial dos Towering Inferno constituíram dois avisos sérios. “Kismet”, sem chegar a tais extremos, fica-se por uma passagem dos olhos e do canto, por vezes algo estremunhados, pelas vizinhanças da Europa e pela Índia. Márta Sebestyen resolveu experimentar-se nas tradições irlandesa, grega, bósnia, indiana, búlgara e romena. Acolhemos de braços abertos uma Márta convincentemente irlandesa, em “Leaving Derry quaye”, e a maneira airosa como dessa canção, que lhe foi transmitida por Dolores Keane, saltou para um tradicional grego. Sente-se, porém, a ausência de terreno sólido. A ponte que permitiu a abolição das fronteiras revela-se frágil a uma percepção mais profunda, ou simplesmente atenta. “Kismet” dá, em grande parte dos temas, a sensação de um disco de variedades, onde a voz, por si só, não chega para disfarçar, pelo menos para já, uma abordagem superficial e não poucas vezes musicalmente pobre das diversas tradições nele perspectivadas. Embrulhado numa apresentação politicamente correcta e de inegável bom gosto, “Kismet” deverá trazer um grupo novo de adeptos para a cantora húngara, mesmo que o preço a pagar seja o de ser arrumado ao lado de senhoras como Talitha McKenzie, Loreena McKennit ou Sheila Sandra. (7)

Estado de fusão ou as virtudes do martelo

Pop Rock

31 de Janeiro de 1996

Estado de fusão ou as virtudes do martelo

“Se houve alguma tendência este ano que me irritou, foi a de transformar os mais diversos estilos de música étnica num papa doce e sintética. Um número infindável de patetices cheias de ‘samples’ ‘étnicos’, textos balofos e autoconvencidos, ‘muzak’ vegetariano, abafadas por caixas de ritmo. Acreditem nas minhas palavras, em cada minuto que passa, pinga um compacto no capacho de entrada com o rótulo ‘Celtic tribal trance’. Garanto-vos que vou pegar num martelo muito grande e desfazer cada um desses objectos degenerados em fragmentos pequininos…”
Ian Anderson, director da revista “Folkroots”, no seu editorial de Dezembro do ano passado.

O editorial de Ian Anderson, uma das figuras mais prestigiadas da cena folk internacional, do qual transcrevemos a parte final, saiu no mesmo número que um artigo intitulado “Celtic muzak”, assinado por Colin Irwin, outra das lendas da escrita folk, desde os anos 70 quando ainda integrava a equipa do “Melody Maker”. Colin Irwin tomou como ponto de partida a edição recente do álbum “Riverdance”, de Bill Whelan, já recenseado nestas páginas. Um dos bons exemplos de fusão sobre elementos “célticos”, representativo de uma das tend~encias actuais mais fortes, no mercado deste género de música. “Riverdance” foi apresentado no Festival da Eurovisão de 1981, na Irlanda, com pompa e circunstância, constituindo a prova real das potencialidades, enquanto objecto rendível, deste tipo de música na balança das exportações.
Enquanto obra de arte, “Riverdance” tem as suas virtudes e os seus defeitos, sendo que a principal das primeiras se traduz sinteticamente na velha, mas sempre actual, questão, j+a por nós várias vezes abordada, de, seja qual for o trabalho cirúrgico levado a cabo, não perder de vista as origens.
O problema que levou Ian Anderson a pegar no martelo só se colocou a partir do momento em que a folk saiu do gueto onde esteve confinada durante anos, para ganhar peso na indústria discográfica. Se a revolução dos anos 70, personificda por grupos como os Bothy Band, Planxty ou De Danann, foi em primeiro lugar de ordem artística, arrancando a folk do regionalismo de grupos como os Dubliners ou os primeiros Chieftains, para o estatuto de fenómeno urbano, de características universais com repercussões não só nas Ilhas Britânicas como no resto da Europa, a revolução encetada ao longo da presente década deve ser lida a outro nível.
Começa por ser uma evolução natural. Se “da Irlanda para a Europa” era o mote dos anos 70, nos anos 90 é “da Europa para o mundo”. Ao longo deste processo, as questões de produção e de distribuição ganharam preponderância sobre as estéticas.
Sabe-se como estas coisas funcionam. É difícil, à indústria, controlar uma música que desconhece e que, ainda por cima, na origem, corresponde a manifestações de minorias, étnicas, culturais e políticas. A estratégia está então em submetê-la ao crivo da mediatização, vesti-la, adaptá-la a esquemas e fórmulas de produção massificantes e, desta forma, passíveis de ser controladas por fora. Normalizar, adaptar, em última análise, vulgarizar. Dois tipos de músicos vão na onda. Os que não fazem a mínima ideia dos materiais de base com que trabalham e apenas pretendem apanhar o comboio, e os que, com conhecimento de causa e responsabilidades, decidiram entregar a alma ao diabo.
É sob esta luz que se deve avaliar a vaga actual de “fusões”, que começam na embalagem e no “marketing” e terminam, regra geral, na descaracterização e no esvaziamento prematuro até serem devoradas pela vaga seguinte.
A questão do purismo contra o modernismo é uma falsa questão. O Grupo de Cantares do Manhouce não é melhor nem pior do que os Gaiteiros de Lisboa. As Irmãs Goadec não são melhores nem piores do que os Hedningarna. A pureza absoluta de uns não se opõe ao radicalismo formal dos outros. Estão do mesmo lado da barricada. É que, também já o escrevemos, tudo parte do mesmo. Perdida a essência, perde-se a bússola. Encontrado o norte, é permitida a heresia que força as portas do futuro.
Alguém capaz de compreender onde está o nó do problema perceberá de imediato o que distingue um bom disco de fusão dos Hedningarna ou dos Barabàn de um mau disco de fusão dos Deep Forest ou dos Enigma.
É aqui que entra o “celtismo” e todos os crimes que em seu nome têm sido cometidos – com o mercado a saltar de contente com as façanhas dos seus acólitos mais queridos e a indiferença e alguma revolta dos que recusam ceder. A Europa, ávida de avós que dêem sentido ao seu vazio, agarrou-se com unhas e dentes à “inocência” dos sons étnicos. Os oportunistas, caridosos, dão-lhe o placebo em pastilhas coloridas. Quando regressarem os sintomas, já o comboio andará por outras estações. Felizmente, o martelo de Ian Anderson estará sempre disponível.
Nestas páginas traçamos a divisória, no actual estado de coisas (estado de sítio), entre fusões e confusões, em vários territórios da Europa onde a folk fervilha.

COM FUSOS E FUNDOS

Portugal

Não estamos mal. Ou estamos melhor. Né Ladeiras, Brigada Victor Jara e Gaiteiros de Lisboa, mesmo os Romanças, mostraram nos últimos tempos como se funde sem derreter o coração. “Traz os Montes”, “Danças e Folias” e “Invasões Bárbaras” aprenderam a lição antiga dada pela Banda do Casaco. Do lado da chacha, temos ou tivemos os Navegante, Maio Moço, coisas assim.

Espanha

Principalmente a Galiza, aqui mesmo ao lado. Já andou desnorteada, entre o que poderia ter sido, mas não foi, a música dos Armeguin (perdida na “new age”), Matto Congrio (perdida no “reggae”), Brath (perdida numa bateria rock) e Emilio Cão (perdida em fungadelas e numa produção mais berrante que uma gravata). Uxia, surpresa ou não, acendeu uma lanterna e “esta vivindo no ceo”. Os Na Lua ficaram para trás. Perto do Mediterrâneo, não há quem bata os Radio Tarifa.

Ilhas Britânicas

Têm gente para tudo e ainda sobra. Na Irlanda, Shaun Davey ameaça regularmente com as suas sinfonias. Na Escócia, a William Jackson, na mesma moeda, falta sobretudo pulmão. Heréticos de há muito são, em Inglaterra, Ashley Hutchungs e a Albion Band. Ou Andrew Cronshaw. Hoje o primeiro continua a dar cartas. Arriscaram muito os Blowzabella. Aos irlandeses (e aqui, cuidado, há que distinguir entre “fusão” e releituras actualizadas da tradição, que é o que fazem ou fizeram os maiores: Planxty, Bothy Band, De Danann, Déanta ou Dervish…), perde-se-lhes a conta. “Fundem” bem Bill Whelan, Four Men & A Dog e Sharon Shannon. “Fundem” mal os Nightnoise (dos manos Ní Dhomnaill, quem diria?), numa “new age” com flores, os Orion, Rare Air (não são bem irlandeses), Celtic Thunder, os actuais Capercaillie, os actuais Clannad, a actual (choque!) Dolores Keane e o Davy Spillane de sempre, a não ser quando tocou música búlgara com Andy Irvine, em “East Wind”. Na Escócia, palmas para Savourna Stevenson e para os House Band. Menos para os Ceolbeg. Na Inglaterra, assobios de vergonha para os actuais fantasmas, Fairport Convention, Pentangle e Steeleye Span, a catarem no caixote dos restos.

França

Na Bretanha gostam muito de “jazz”. Que o digam os Bleizi Ruz, Dédale, Obsession, Ti Jaz ou Une Anche Passe. Os Gwendal também gostavam, mas a partir de “Glen River” foram trucidados por uma caixa-de-ritmos. Erik Marchand faz maravilhas com a música indiana, os Barzaz com a “new age” e os Kemia com um piano romântico. Mais para sul, continuam inclassificáveis os Verd e Blu. Gabriel Yacoub, recuperado do monumental espalhanço “Elemental Level of Faith”, voltou a erguer-se no belíssimo “Bel” e num “Quattre” esotérico. Levam com o martelo Deep Forest, le Gop, Groupe sans Gain, e, com toda a força possível, Alan Stivell e Dan Ar Brás, os dois maiores vendidos à “música gorda”, mais o seu filhote legítimo, o recente “supergrupo” Kadwaladyr, de “The Last Hero”.

Itália

Bons ventos, soprados pelos Ciapa Rusa, Barabàn, Elenna Ledda (Sardenha) e Riccardo Tesi. Não se conhecem maus exemplos. Eros Ramazzoti?

Hungria e Bulgária

No passado, Kolinda e Vizönto. Hoje, Zsaratnók e Vasmalom. Uma grande senhora, a mais tradicional (com os Ökros Ensemble) e a mais moderna, no electrónico “Apocrypha”. Sem contar que esteve no meio dos Towering Inferno, na ópera de pesadelo “Kaddish”. Um grande senhor, búlgaro: Ivo papasov, mestre dos sopros e do “swing” em 13/8. Há uns detestáveis Slobo Horo. Às vozes que falam com Deus e a todos os pecados cometidos em seu nome, vamos perdoar-lhes.

Escandinávia

Podem fazer tudo, que tudo lhes sai bem. Compensam o frio acendendo fogueiras que queimam até à ponta do continente. O filão dos filões. Hedningarna, Garmarna, Hoven Droven, Ottopasuuna, Filarfolket, Den Fule, Värttina, Mari Boine Persen, Mari Kalaniemi, Lena Willemark.