31/01/2019

Bólides irlandeses ultrapassaram Mercedes [Festival Intercéltico]


CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 7 ABR 2003

C r í t i c a M ú s i c a

Bólides irlandeses ultrapassaram Mercedes

XIII FESTIVAL INTERCÉLTICO
Gaiteiros de Lisboa + Four Men and a Dog
4 de Abril, sala praticamente cheia
Mercedes Péon + Altan
5 de Abril, sala cheia
PORTO Coliseu

Terminou o 13.º Festival Intercéltico do Porto. Em apoteose. É quase sempre assim, quando a Irlanda desce ao Porto, com festa rija, toda a gente a dançar e um ar de felicidade estampado nos rostos e nos corpos. Os Altan cumpriram com brilho, sábado, no Coliseu, a tarefa de que foram incumbidos, divulgando a mensagem renovada de uma Irlanda definitivamente enraizada nos hábitos culturais do Intercéltico. Grande concerto, em crescendo, sem concessões. É assim que deve ser, atrair o público até à música, levá-lo a compreendê-la, senti-la e aceitá-la, ao invés de apelar aos desejos mais básicos de quem ouve. Os Altan começaram devagar, com o canto “a capella” de Mairead Ní Mhaonaigh (na foto). Os “jigs” e “reels” apareceram naturalmente, sem tiranizar a beleza de baladas como “Roaring water” ou “A tune for Frankie” (dedicado ao malogrado flautista e fundador dos Altan, Frankie Kennedy). Aos poucos os corpos soltaram-se. Vieram as danças, a imparável vontade de participar.
            Mairead, além da voz que se conhece, mostrou ser uma exímia violinista, entrando em diálogos vertiginosos com Ciaran Tourish, sem o apoio de quaisquer percussões. A assistência mostrou estar à altura dos acontecimentos, sabendo dosear a folia com o silêncio, como quando cantou, sem uma desafinação, uma melodia a quatro tempos ensinada por Mairead. Com os Altan a Irlanda profunda esteve presente no Porto e deixou marcas.
            Na véspera foi uma outra Irlanda que passou pelo Intercéltico. Ao contrário dos Altan, os Four Men and a Dog praticam uma música mais universal e tecnicista. Ausente Gino Lupari (para grande desapontamento de muitos), trocado pelo competente e amplificado Jimmy Higgins, no “bodhran”, o quarteto selou uma atuação tecnicamente irrepreensível de onde sobressaíram as acrobacias violinísticas de Cathal Hayden e Gerry O’Connor. A forma como transformaram “Music for a Found Harmonium”, dos Penguin Cafe Orchestra, num tema com uma complexidade harmónica que o original não possui foi exemplar da atual abordagem estilística dos Four Men and a Dog, um grupo que, sem Gino Lupari, manifestamente se tornou mais musical, ganhando em rigor o que perdeu em teatralidade e “verve” humorística. Mesmo assim, um “boogie” saído da cartola mostrou que ainda anda por ali à solta um cão vadio...
            Desiludiram as duas bandas chamadas a fazer as primeiras partes. Na sexta-feira, os Gaiteiros de Lisboa esticaram demasiado a corda. Inegável continua a ser a originalidade de uma música única no panorama da “folk” europeia. Polifonias intrincadas, uma tensão instrumental feita da polaridade entre a música antiga e a modernidade mais radical, um humor inteligente e “nonsense” mordazes, a força de percussões arrancadas ao cancioneiro
português mais genuíno, tudo isto esteve presente na atuação dos Gaiteiros na noite portuense. Faltou a unidade, a sustentação prática de um edifício cuja complexidade não cessa de aumentar. Se o motor rítmico funcionou e as vozes compensaram com a beleza do labirinto um ou outro défice de colocação, o mesmo não se poderá dizer das gaitas-de-foles numa noite em que andaram manifestamente perdidas. Nem sempre é possível acompanhar a força das marés, e a onda gigante, o macaréu, dos Gaiteiros é força da Natureza, umas vezes doce, outras tempestade difícil de domar.
            Mercedes Peón, na abertura de sábado, não esteve melhor. Não que o público não tivesse gostado. Adorou. Mas porque a cantora galega lhes ofereceu prato de fácil digestão: batidas rock de baixo elétrico e bateria, cânticos fortes servidos por um vozeirão que se deve ter feito ouvir na outra margem do Douro, gaitadas meia-bola-e-força e canções dignas de uma “Operação Triunfo” não tiveram dificuldade em impor-se. Mas Mercedes foi mais veículo de carga do que automóvel de luxo. No “stand” do Intercéltico, os bólides irlandeses continuam a ser os mais viáveis.

EM RESUMO
Duas Irlandas, a profunda dos Altan e a universalista dos Four Men and a Dog, “arrasaram” o Coliseu do Porto.
Gaiteiros e Mercedes foram a arranjar para a oficina

Orquestra Victor Jara [13º Festival Intercéltico do Porto]


CULTURA
SÁBADO, 5 ABR 2003

C r í t i c a M ú s i c a

Orquestra Victor Jara

Brigada Victor Jara + Shantalla
PORTO Coliseu dos Recreios
Quinta dia 3, às 21h30
Meia sala

Não correu de feição a estreia no palco principal do Coliseu dos Recreios da banda irlandesa Shantalla, a abrir a 13ª edição do Festival Intercéltico do Porto, perante pouco público e com o azar e o clima de crise a fazerem-se sentir. Helen Flaherty, a fotogénica cantora do grupo, não esteve presente, devido à morte do pai, sendo substituída à última hora por Niamh Parsons, que o Intercéltico já acolhera como cantora dos Arcady.
            Niamh não teve culpa. Voz e sensibilidade à altura, defendeu-se da notória falta de ensaios, optando por vocalizações “a capella”, ou com o apoio cauteloso da guitarra de Joe Hennon e as tímidas pontuações decorativas do violino de Kieran Fahy e o acordeão de Gerry Murray. Foi, porém, no desempenho instrumental que os Shantalla desiludiram, não fazendo jus às capacidades que dão a entender no belíssimo álbum “Seven Evenings, Seven Mornings”.
            Michael Horgan, que no disco faz maravilhas, aparentou ser um executante vulgar nas “uillean pipes”, embora tenha ficado a ideia de uma amplificação deficiente do instrumento. O palco enorme do Coliseu confirmou, por outro lado, estar longe de proporcionar a intimidade de um “pub”... Os músicos e as notas pareceram desligados, faltou alegria, com o público a reagir automaticamente aos apelos à dança e aos apartes que entraram na rotina, das referências ao álcool ao “peço desculpa mas o meu português é muito fraco” da praxe. Difícil filtrar o ar da tristeza do tempo...
            Na primeira parte a Brigada Victor Jara surpreendeu. Arrancada a um estado de letargia que ameaçava conduzir a banda para o estatuto de “velha glória” resignada a receber o “prémio de carreira”, a música readquiriu uma vitalidade e um sentido de urgência que o recente álbum ao vivo não fazia prever. O palco encheu-se de 19 músicos, incluindo uma secção de metais dirigidos pelo trompetista Tomás Pimentel e quatro gaiteiros galegos dirigidos por Xosé Gil Rodrigues. Muita gente numa ameaça de confusão que nunca aconteceu, graças à liderança forte do violino, cada vez mais depurado e classizante, de Manuel Rocha, e dos teclados de Ricardo Dias, a quem a Brigada Victor Jara deve muita da atual fase de renovada pujança e criatividade.
            Entre um reportório constituído por cinco originais a incluir no próximo álbum – “Dailadou”, “Caracol”, “Durme”, “Lenga lenga” e “Meninas vamos à murta” – e temas antigos como “Menino Jesus”, “Mi morena” e “Bento airoso”, submetidos a arranjos originais, destacaram-se uma épica “Cantiga bailada”, repetida no “encore”, com a Brigada transformada em orquestra de folk progressivo, e o inesquecível desempenho vocal de Catarina Moura, em “Durme”, tema da tradição sefardita a exigir concentração, afinação e emotividade sem falhas, que teve na cantora uma intérprete de exceção. A forma como resolveu a transição de tom no final de uma das frases provocou arrepios.
            O Intercéltico termina hoje com atuações da cantora galega Mercedes Péon e da superbanda irlandesa Altan.

EM RESUMO
No confronto Portugal-Irlanda, uma renovada Brigada Victor Jara derrotou os Shantalla desfalcados da sua cantora habitual

25/01/2019

Shantalla - Seven Evenings, Seven Mornings


Y 4|ABRIL|2003
roteiro|discos

SHANTALLA
Seven Evenings, Seven Mornings
Wild Boar Music, distri. MC – Mundo da Canção
9|10

A boa música tradicional irlandesa tem o poder de curar, de colorir os dias e as noites, de nos aproximar do que imaginamos ser a felicidade. Comecemos então por dizer que “Seven Evenings, Seven Mornings” nos faz sentir felizes. Logo ao primeiro tema, “John Riley”, livramo-nos das toxinas. Bastaria a voz (e o vigor do bodhran) de Helen Flaherty e a corrente de água cristalina a escorrer por um “moore” das cordas dedilhadas de Gerry Murray, para nos sentirmos mais vivos. Os arranjos estão próximos dos Planxty, fazendo lembrar a obra-prima deste grupo, “Cold Play and the Rainy Night”. Mas os Planxty não tinham uma cantora como Helen Flaherty. Voz-primavera, irlandesa dos sete costados, Helen é a estrela, o amor, a paixão, o verde, a sombra, a luz e o mistério da Irlanda profunda. Os Shantalla são ainda um coletivo portentoso de onde sobressaem os fabulosos desempenhos de Michael Horgan, nas “uillean pipes” (como não nos arrepiarmos ao escutar um lamento como “Spered hollvedel”?), flauta e “tin whistle”, e Kieran Fahy, no violino e viola de arco, sem esquecer o suporte estratégico de Joe Hennon, na guitarra, e o enriquecimento tímbrico adicional de Gerry Murray, no bouzouki, bandolim e acordeão. “Seven Evenings, Seven Mornings” está ao nível dos clássicos modernos dos Dervish e dos Altan. É tradição como a sabemos sentir nos mitos e nos sonhos.

Four Men And A Dog - Maybe Tonight


Y 4|ABRIL|2003
roteiro|discos

FOUR MEN AND A DOG
Maybe Tonight
Hook, distri. MC – Mundo da Canção
8|10

Apesar de uma capa de uma indigência confrangedora e de uma desnecessária, embora gorda de carnes, enésima versão de “Music for a found harmonium”, dos Penguin Cafe Orchestra (o tema, de tão recriado pelo atual universo folk, corre o risco de vulgarizar-se), “Maybe Tonight” convida a uma noite de farra. E por falar em gordura de carnes, Gino Lupari continua com o corpo tão cheio como o seu talento de “entertainer” e guerreiro do “bodhran”. Os Four Men and a Dog não são um grupo folk como os outros. Há quem diga que não são um grupo folk, mas uma formidável máquina de ritmos com o objetivo único de entontecer e fazer dançar mesmo a múmia mais entorpecida (se tocarem hoje no Intercéltico como tocaram numa edição anterior deste mesmo festival, decerto que haverá estragos...). “Maybe Tonight” faz passar o “caterpillar” rítmico pelos “rhythm ’n’ blues”, “boogie”, os compassos balcânicos, a “country”, o “rockabilly” e os “reels” da casa, ingredientes de um “cocktail” planetário bebido na refrega de um “pub”. Há, porém, algo de genuinamente irlandês no modo como estes quatro homens fazem a festa e neste particular os “sets” de “jigs”, polcas e “reels” são exemplares da sua fidelidade às origens. Mas “Baby loves to boogie” aí está para nos dizer que a Irlanda desta “troupe” de folgazões não se esgota na geografia de uma ilha.

Se um grupo irlandês agrada a muita gente... [Festival Intercéltico]


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 3 ABR 2003

Se um grupo irlandês agrada a muita gente…

FESTIVAL INTERCÉLTICO

Shantalla, Four Men and a Dog e Altan. Dose tripla de música irlandesa no Intercéltico. O Festival começa hoje no Porto e estende-se a Lisboa, Montemor-o-Novo e Arcos de Valdevez


Ex-líbris da cidade do Porto, o Festival Intercéltico desce, nesta sua 13ª edição, até ao Sul do país. Ao Alentejo, imagine-se, terra de mouros para quem as polifonias do cante ou o rasgar de uma viola campaniça falam mais alto ao coração do que o gemido de florestas distantes do fole de umas "uillean pipes" irlandesas. Desta vez não será apenas o Coliseu do Porto a acolher a festa e a beleza de uma música que insiste em demarcar-se da voragem consumista. Lisboa, Montemor-o-Novo e Arcos de Valdevez entraram no mapa.
            Hoje mesmo, o melómano folk poderá escolher entre ficar na capital para ouvir, no Coliseu dos Recreios, os grupos irlandeses Altan e Four Men and a Dog, ou assistir ao Intercéltico na sua sede própria desde o primeiro dia e receber no Coliseu portuense a Brigada Victor Jara e os também irlandeses Shantalla. Irlanda que, como se vê, se faz representar em força no Intercéltico deste ano, de novo sob a alçada do MC - Mundo da Canção.
            Shantalla, Four Men and a Dog e Altan (estreia absoluta no Intercéltico, embora já tivessem actuado num dos Encontros Musicais da Tradição Europeia) são os ilustres representantes de uma linhagem de presenças intercélticas que inclui os De Danann, The Chieftains, Déanta, Dervish, Arcady, Patrick Street, Solas e Lúnasa. Mas três bandas irlandesas no mesmo Intercéltico, eis a grande novidade. Espera-se algo de especial.
            Os Shantalla, que hoje partilham o palco com a Brigada Victor Jara, deixaram gratas recordações a quem os viu e ouviu há três anos, entre copos e conversas, no café-concerto do Teatro Rivoli. Cresceram entretanto. Tanto, que hoje nada devem às grandes bandas clássicas irlandesas da atualidade. O novo álbum, "Seven Evenings, Seven Mornings", é a prova viva de que a música dos Shantalla tem tudo para nos transportar até ao céu do "puirt a beul" vocal ou ao círculo "diabólico" dos "jigs" e dos "reels". Com ou sem "whiskey", ou um "pint" de Guinness, a ajudar. Helen Flaherty é a voz iluminada de um colectivo onde pontifica o talento instrumental de Kieran Fahy, no violino e viola de arco, Michael Horgan, nas "uillean pipes", flauta e "tin whistle", Joe Hennon, na guitarra, e Gerry Murray, no acordeão, bouzouki, bandolim, "whistles" e percussão.

Gino, o grande
Amanhã, depois dos Gaiteiros de Lisboa, em processo de apuramento dos muitos confrontos e maravilhas presentes no seu novo álbum, "Macaréu", será a vez dos Four Men and a Dog tentarem repetir, ou ultrapassar, a loucura que na sua apresentação no Intercéltico de 1995 quase fez estourar de folia a vetusta sala do Coliseu do Porto. Sob a liderança, vocal e visual, do anafado Gino Lupari, gigantesco na presença física, na "verve" humorística e no ritmo imprimido ao "bodhran", os quatro homens e um cão apresentam-se como arautos de um ecletismo levado ao extremo, com uma música que assimila, espalha, integra, recria e transfigura não só as modalidades tradicionais irlandesas como o "boogie", os "blues", o "rockabilly", a "salsa", a "country", o "rap", o "rhythm'n'blues" e, no novo álbum, "Maybe Tonight", a música tradicional russa e (mais) uma versão de "Music for a found harmonium", dos Penguin Cafe Orchestra.
            Sábado, no fecho do festival, estarão presentes os Altan, dos casos mais emocionantes de ascensão no panorama da nova folk europeia, após o trauma causado nos anos 80 pela morte de um dos seus elementos fundadores, o flautista Frankie Kennedy. Tal não impediu a progressão deste grupo com origem em Donegal que, de álbum para álbum - entre a sua discografia contam-se pérolas como "Horse with a Heart", "Harvest Storm", "Island Angel", "Blackwater", "Another Sky" e "The Blue Idol" -, tem conquistado um número cada vez maior de admiradores. Mairead Ni Nhaonaigh é a voz que promete pôr mais do que um coração de rastos.
            Mas não só da Irlanda, em termos de presenças internacionais, se faz o Intercéltico. A anteceder o concerto dos Altan, a cantora galega Mercedes Péon levará ao Coliseu do Porto o espanto, a beleza convulsiva e alguma inquietação. Cabeça rapada, como Sinéad O'Connor, a voz localizada naquele registo, misto de devoção e luciferismo, de cantoras malditas como Meira Asher e Diamanda Galas, Mercedes percorre as gamas mais obscuras da folk galega, de muiñeiras e "alalas" modificadas por uma visão que mergulha no seu núcleo mágico e transfigurador. "Isué", o seu álbum de apresentação, tem tanto de novo como de atraente. De iconoclastia como de provocação. Logo veremos se, como se diz, as raparigas boas vão para o céu e as más para todo o lado.

O sentido da vida, segundo os Sparks


CULTURA
SEXTA-FEIRA, 28 MAR 2003

C r í t i c a M ú s i c a

O sentido da vida, segundo os Sparks

Sparks
LISBOA Grande Auditório CCB
26 de Março, 21h
Sala praticamente cheia

“Lil’ Beethoven”, uma mini-ópera gelada que desmonta os lugares-comuns da sociedade e do “show business” contemporâneo, foi apresentado anteontem no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para uma plateia praticamente cheia e deslumbrada pela estranheza do novo álbum dos Sparks. Montra de manequins e projeções de vídeo, habitado por estranhos personagens como o pianista de braços ridiculamente longos que Ron Mael protagonizou em “How Do I Get to Carnegie Hall?”, numa referência inicial ao universo dos Monty Python (houve quem descortinasse Samuel Beckett neste teatro do absurdo), citada de “The Meaning of Life”. “Lil’Beethoven” pode ser visto, aliás, como uma outra leitura, tão retorcida e não menos cáustica do que a do mítico grupo cómico inglês, do sentido da vida. Ron Mael, embora já sem o bigode à Hitler que o popularizou nos anos 70 e 80, continua a ter o ar de empregado de escritório engravatado que está ali por engano mas que em “Ugly Boys with Beautiful Girls” passeou pelo palco, com ar imbecil, de braço dado com uma morena escultural.
            Musicalmente esta primeira parte seguiu à risca o alinhamento de “Lil’ Beethoven”, com utilização de sons pré-gravados e a presença adicional de uma baterista e de Dean Menta, ex-Faith No More, na guitarra. “My Baby’s Taking Me Home”, um dos temas melodicamente viciantes do álbum, com Russell a repetir a mesma frase até à exaustão e Ron a recitar um “poema” indescritível sem desmanchar o ar de autista compenetrado, deixou o público num estado intermédio entre o choque e o deslumbramento.
            Numa segunda parte preenchida com temas de álbuns como “Indiscreet” e “Propaganda”, os Sparks entraram na onda de parolice “electro” que voltou a estar em voga. O conceptualismo de “Lil’ Beethoven” deu lugar ao exagero assumidamente gratuito e a tiques que foram dos Yello aos Soft Cell, passando pelos Simple Minds e Pet Shop Boys. Russell não resistiu a fazer de “bicha” louca, mas mesmo no meio deste serão pela Feira Popular coube uma vez mais ao irmão Ron o papel de rei das farturas, no momento mais genial e hilariante da noite. Foi assim, embora as palavras descrevam mal o absurdo da situação: Russell apresenta o irmão como principal artífice do conceito Sparks. A música
pára, as luzes apagam-se deixando apenas um holofote apontado à figura solitária de Ron Mael. Este aproxima-se timidamente da boca de cena e, após alguns segundos de hesitação, olhando o vazio com expressão esgazeada, desata a fazer um desengonçado sapateado. Muitos dos espetadores no CCB ter-se-ão nesse instante recordado de um dos momentos mais cómicos da história da Humanidade, aquele em que John Cleese faz o seu número de “passos disparatados” noutro “sketch” dos Monty Python.
            No final, com “encore”, o público aplaudiu de pé, rendendo-se à desfaçatez com que os Sparks, ao fim de 30 anos, continuam a ridicularizar os lugares-comuns da música pop.

Filipa Pais - A Volta Do Mundo


28|MARÇO|2003 Y
discos|roteiro

FILIPA PAIS
A Porta do Mundo
Ed. e distri. Vachier & Associados
7|10

Pertence a uma geração intermédia da música popular portuguesa que assimilou José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto e Vitorino mas que nem sempre soube encontrar o lugar certo de resistência à voragem do tempo. “A Porta do Mundo” poderá facultar-lhe a chave que falta para lhe abrir as portas do sucesso. Depois de um par de temas com algo de Mafalda Veiga enfiado nas notas, “A Porta do Mundo” provoca o primeiro sobressalto com o tradicional “Não se me dá que vindimem”. A partir daqui é impossível escapar ao fascínio. Sente-se uma nostalgia indefinível nesta música que junta a solenidade da música de câmara com a pureza da música tradicional, como numa “Estrada do Sul” onde o Alentejo se ilumina banhado por uma outra lua extravagante. “Zacaria”, com assinatura de João Paulo Esteves da Silva, junta o tipo de expressividade de Amélia Muge com uma toada medieval. Duas grandes e tristes canções, “A porta do mundo” e “Quem sonha quem”, antecedem um pacote de “50.000 caixas de charutos”, de Ricardo Dias (brilhante no acordeão) a provar que a voz de Filipa Pais pode ir tão longe quanto quiser. A seguir a um tema de Vitorino e a uma “Cantiga de amigo” com a varinha mágica de José Afonso, “Em todas as ruas te encontro” oferece, a fechar, a auspiciosa estreia de Filipa como compositora. “Este é o meu lugar. Vou ficar”, canta ela em “E se”. “A Porta do Mundo” parece dar-lhe razão.

Ani DiFranco - Evolve


28|MARÇO|2003 Y
discos|roteiro

ANI DI FRANCO
Evolve
Righteous Babe, distri. Megamúsica
8|10

Verifica-se na extensa discografia a solo de Ani Di Franco um desequilíbrio axial que, se por um lado, tende a traduzir-se numa sobrecarga de produtividade e em padrões de qualidade variáveis, a distingue, por outro, da concorrência. Ani Di Franco não é nem a “singer songwriter” ideologicamente empenhada nem a biógrafa sentimental, embora estas duas facetas se cruzem e, por vezes, se digladiem, na sua escrita musical, convocando estilos vocais e instrumentais díspares. “Evolve” contraria esta tendência. É um álbum que tira o máximo partido da banda que nos últimos tempos a tem acompanhado nos concertos ao vivo. Predominam as sonoridades jazzísticas, o swing a cavalo em vagas de sopros, um balanço menos tenso do habitual em discos anteriores. Ani percute as teclas do jazz, as feridas mas também as flores e frutos latinos (“Here for now”), mantendo um equilíbrio e um nível de composição e interpretação de extrema sofisticação, como se a rebelde de outrora tivesse cedido o lugar a uma diva toda ela classe, segundo um processo de transformação semelhante ao de Suzanne Vega. O lado mais cru e confessional encontramo-lo em “Serpentine” e aí Ani despe o “vison” para se confrontar com a sua imagem no espelho, mas também com a “mafia da indústria musical”, em dez minutos de golpes de guitarra, declamação e exorcismo que – confessa – a levaram às lágrimas.

16/01/2019

O monstro que saiu dos Pink Floyd


Y 28|MARÇO|2003
pink floyd|música

O lado escuro da Lua deixou de ser negro para passar a ser azul. “Dark Side of the Moon”, no original de 1973, e a presente reedição em Super Áudio CD, são como a noite e o dia. Um som perfeito para uma música que alguns teimam em não aceitar como tal. De que lado da Lua está a razão, afinal?

O monstro que saiu dos
PINK FLOYD


Se, no imaginário da música popular do último século, os Beatles foram condecorados com a insígnia mais nobre da pop e os Rolling Stones se assumem de bom grado como a mais perene das maldições rock, pertence aos Pink Floyd o estatuto de representantes oficiais de todas as outras músicas situadas no território indefinido onde as mais variadas tendências, cores, estilos e estratégias servem para, precisamente, retirar ao termo “música popular” o adjetivo “popular”. “Dark Side of the Moon”, editado pela primeira vez em 1973, tem suscitado desde sempre um sem-número de divergências, não sendo possível chegar-se a uma unanimidade quanto à sua dimensão e importância reais, quer no interior da discografia dos Floyd quer relativamente ao papel desempenhado por esta obra no desenvolvimento do rock progressivo dos anos 70.
            A extrema exposição a que, logo nesse ano e até hoje, foi sujeito faz deste disco um objeto apetecível mas também uma presa fácil para os que têm o hábito de colecionar ódios de estimação. Como “Sgt. Pepper’s” dos Beatles, ”Dark Side of the Moon” começa por ser um triunfo da produção. Um disco fechado em si mesmo que parece existir suspenso num universo autónomo, quer em relação à fase anterior, psicadélica e “space rock”, do grupo, personificado pelos álbuns “The Piper at the Gates of Dawn” (ainda com Syd Barrett), “A Saucerful of Secrets”, “Ummagumma”, “Atom Heart Mother” e ”Meddle”, quer enquanto anúncio da fase mais pop que haveria de seguir-se com “Wish you Were Here”, “Animals” e “The Wall”. O impacte das canções esfuma-se perante a opulência dos efeitos — que vão do barulho de passos a um despertador, de uma caixa registadora a vozes perdidas –, a grandiloquência dos coros e solos de saxofone perigosamente colados à estética MOR (“middle of the road”).
            Se a totalidade dos álbuns atrás referidos valem por uma música aberta que não se esgota nos meios de produção utilizados, “Dark Side of the Moon”, pelo contrário, soa como cristalização. O que para alguns é perfeição tem, para outros, a configuração da morte, mumificação de uma linguagem tornada autofágica, como a serpente que a si própria se completa e se devora. Claro que não é possível comparar as pequenas e iluminadas “comptines” alucinadas de Syd Barrett, como “Arnold Layne” ou “See Emily play”, ou navegações galácticas como “Set the controls for the heart of the sun”, com as melodias, tão exatas como redundantes, de “Dark Side of the Moon”. São naturezas diferentes e isso será o que mais chocará os admiradores dos Pink Floyd até ao aparecimento do “monstro”. O que, em contrapartida, levou a música do grupo a um outro tipo de auditores, mais vasto, e, como consequência, a ser abocanhada pela hidra do “mainstream”.

            o mesmo e o outro. “Dark Side of the Moon”, apesar de poder orgulhar-se de ser um dos discos mais vendidos de todos os tempos (25 milhões de cópias, um número assombroso que não pára de crescer) e de ter permanecido durante uma década, sem interrupções, no Top da “Billboard”, continua, porém, a provocar tanto adesões entusiastas como a mais profunda das aversões. A verdade é que, ame-se ou odeie-se, não há ninguém que não tenha entranhadas nos ouvidos as melodias de canções como “Time”, “Money” ou “Us and them”, o que, temos que admitir, também contribuirá para que, de tempos a tempos, alguém sinta vontade de partir o disco em pedaços (as edições em vinilo) ou, no caso dos CD, o submeter a um banho de ácido sulfúrico concentrado.
            Numa última tentativa de restituir ao dito cujo uma frescura que parecia definitivamente perdida, eis que a reedição em formato de Super Áudio CD “híbrido”, ou seja, passível de ser tocado tanto num leitor de CD específico como
num convencional, vem de novo recordar-nos que “Dark Side of the Moon” nunca esteve, afinal, longe de nós.
            É o mesmo e outro disco, aquele que chega às bancas na próxima 2ª feira. A capa, apesar de levar a assinatura de Storm Thorgerson, o mesmo que, integrado no projeto Hipgnosis, desenhou a original, sofreu alterações de pormenor. O prisma que refrata a luz branca no espectro do arco-íris tornou-se mais branda, abandonando o negro do fundo. A noite tornou-se, mais do que penumbra, azul do dia, traindo a essência noturna que o próprio título do álbum contém. Mas o mais importante é que esta música, que pensávamos não ter já reservada qualquer surpresa para oferecer, soará agora como nunca soou antes, numa gloriosa submissão à audiofilia que finalmente justificará o esforço de produção posto na edição original de 1973. “Dark Side of the Moon” será, afinal, uma potência disponível até ao infinito, matéria de atualização dos permanentes avanços da tecnologia, um livro em branco através do qual sucessivas gerações encontrarão algo de feérico mas que pouco ou nada terá já a ver com o contexto histórico que esteve na sua origem. Mas talvez faça sentido: “Dark Side of the Moon” nunca teve verdadeiras sombras.

De ambos os lados da lua [Pink Floyd]


Y 28|MARÇO|2003
música|pink floyd

O melhor ou o mais irritante álbum dos Pink Floyd, hoje, como há 30 anos, continua a dividir as opiniões.

de ambos os lados da lua


            
É a obra-prima dos Pink Floyd. Dizem uns. É uma desilusão, o álbum dos efeitos gratuitos, dizem outros. Poucos discos terão causado tanta discórdia no seio dos apreciadores do Rock Progressivo como esta “monstruosidade” de efeitos especiais e produção “over the top”, que ainda hoje divide as opiniões.
            Eduardo Mota, 45 anos, professor, “melómano militante”, sócio fundador da Associação Cultural “Portugal Progressivo”, criador dos portais das bandas Amazing Blondel e Gryphon, e de outros como os de Maddy Prior e Van der Graaf Generator, e ainda o generalista Portugal Progressivo, e Álvaro Silveira, 38 anos, economista, “maluco por música, especialmente progressiva” estão de acordo que os Pink Floyd foram uma das bandas mais importantes do Progressivo. Mas, quando toca a “Dark Side of the Moon”, posicionam-se em lados contrários da barricada.
            Álvaro chegou ao Progressivo quando já se agitavam as bandeiras negras do “punk”. “Quem iniciava a sua adolescência na segunda metade dos anos 70 tinha duas alternativas. Ou alinhava com o processo revolucionário em curso que chegava de Londres e pendurava alfinetes na roupa e na face, gritando ‘no future’, ou assumia a nostalgia de um passado imediato e embarcava no mundo do progressivo e do sinfónico.” Optou pela segunda hipótese, juntando-se a uma tertúlia de amigos para quem os Yes, os Led Zeppelin ou os Genesis representavam o “crème de la crème” do Progressivo. “Havia uma coisa que nos unia, o ‘The Dark Side of the Moon’. Era o disco que tinha mais audições. Individuais e coletivas. Só para ouvir ou também para dançar. Para confirmar um detalhe ou como evento conceptual. Com ou sem apoio de substâncias proibidas. Com namoradas ou sem elas. Em casa ou no liceu. Qual ‘The Lamb Lies Down on Broadway’, qual ‘Close to the Edge’, qual ‘Houses of the Holly’, ‘The Dark Side’ era o denominador comum.”
            Já Eduardo Mota, dez anos mais velho, contextualiza de outra forma o seu contacto com o pomo da discórdia. “Chegado de véspera ao admirável universo sonoro do Rock Progressivo, num momento em que procurava consolidar os meus valores musicais, o disco dos Pink Floyd, para além de desiludir, veio confundir a seleção em curso. Para um lado ficavam Beatles, Stones, Deep Purple, Grand Funk, Black Sabbath e quejandos, os rejeitados. Para o outro, os fascinantes Gentle Giant, Van der Graaf Generator, Genesis, Yes, Tangerine Dream, Renaissance, Soft Machine, Caravan e os... Pink Floyd.” “Dark Side of the Moon”, contudo, provocou-lhe uma profunda deceção. Os Pink Floyd, que antes “surpreendiam com álbuns arrojados como ‘Atom Heart Mother’, ‘Meddle’ ou ‘Ummagumma’”, os mesmos “que meia dúzia de anos antes, em pleno psicadelismo, ousavam assinar ‘Astronomy Domine’, uma peça premonitória do próprio Progressivo”, eram agora os Pink Floyd que “não ousavam nada, apenas alindavam”. “Não aprofundavam, preferiam simplificar. Não surpreendiam, preocupavam-se em agradar. Não experimentavam, optavam por investir com retorno mais que garantido.” Eduardo não lhes perdoou. “Não comprei o disco. Nem desejei que alguém mo oferecesse numa ocasião festiva. Irritei-me até, sempre que o ouvia passar na telefonia, na discoteca, no intervalo de uma sessão cinematográfica, ou ao ser ‘tocado’ num baile provinciano pelo ‘jazz’ de serviço.”
            Álvaro Silveira não poderia estar mais em desacordo: “Dark Side of the Moon”, na altura, “era o supra-sumo da música”. “Cada faixa tinha o seu detalhe que nos fazia delirar, permitindo que o classificássemos como algo que naquela idade nos parecia altamente de vanguarda. Eram os relógios de ‘Time’, a caixa registadora de ‘Money’, o riso louco de ‘Brain Damage’, o solo vocal de ‘The great gig in the sky’...”. Recorda ainda que “esses eram os tempos em que as danças se faziam ao som do ‘Money’ e os slows ao som de ‘The great gig in the sky’ (e de ‘Carpet crawl’ dos Genesis e ‘Child in time’ dos Deep Purple)”.
            “Depois havia aquela capa com a luz a multiplicar-se nas cores do arco-íris e que era a embalagem perfeita do psicadelismo cósmico”, acrescenta. A mesma capa a que, quase 30 anos depois, nem mesmo Eduardo Mota conseguiu resistir, acabando por adquirir “um LP miniatura japonês que reproduzia fielmente a capa, ‘poster’ e autocolantes da edição original, tudo na escala reduzida de um CD”. “Um encantador objeto de coleção. Mais para guardar que para ouvir.”
            Hoje, Álvaro Silveira, apesar de manter intacto o seu fascínio pelo disco, reflete de outro modo: “Há quem associe o ‘Dark Side...’ ao fim do período de ouro dos Pink Floyd. Penso que há um exagero. ‘Dark Side’ é o disco mais importante de toda a obra dos Pink Floyd, por inúmeras razões. É a síntese na modernidade dos vários caminhos experimentados na primeira metade da sua discografia. É o abrir para a nova sonoridade que irá estender-se pela grande produção que é ‘Wish you Were Here’. Em termos musicais foi a catarse da herança Syd Barrett e a passagem de testemunho a Roger Waters como o novo timoneiro. Sem ceder ao facilitismo comercial, trouxe os Pink Floyd para o grande palco universal. Ao fim de tantos anos continua a ser referência histórica e estética.” E personaliza: “’Dark Side of the Moon’ já me acompanhou nas descidas aceleradas das pistas de esqui da serra Nevada. Nas estradas poeirentas e desérticas de Marrocos. No calor das praias das Caraíbas. Nas tempestades tropicais africanas.” Porque, explica: “Dark Side of the Moon” é “uma das poucas obras que, ao fim de 30 anos, continuam a exigir uma meia dúzia anual de audições e que fazem parte da nossa lista de discos para levar para a tal ilha deserta.” Eduardo Mota encolhe os ombros. Afinal, será apenas o álbum que “ostenta o título de ‘o mais vendido de todo o Progressivo’”.

Com a felicidade estampada nos 'blues' [Jazz]


22 MARÇO 2003
JAZZ
DISCOS

O jazz tanto pode ser um bunker de metal como um canteiro de flores. Sei Miguel e Jacinta exemplificam, em Portugal, estes dois extremos do jazz. A sabedoria louca de um contrasta com a felicidade aos caracóis da outra.

Com a felicidade estampada nos ‘blues’


Jazz além. Mas além de que lugar? Segundo as coordenadas de Sei Miguel, ir pelo jazz é arriscar-se numa aventura interior sem retorno, de transmutação, transcendência e transferência da personalidade para uma máscara de enigmas. “Ra Clock” é, na forma, uma homenagem a Sun Ra, que o trompetista português considera como avatar da música contemporânea, nomeadamente através da suite com o mesmo título, espécie de livro de horas que ilustra o percurso musical e espiritual do autor de “It’s after the End of the World”. Disco diluviano, no sentido de precipitação e revelação, transporta consigo os mesmos estigmas e a imagética mitológicos que ilustravam a obra do teclista americano, na reapropriação de uma ancestralidade por onde passa, afinal, a decifração do labirinto tecido em “Astérion” ou do microclima de 33 segundos intitulado “Isobel”.
            Não há madeiras, apenas metal: trompete de bolso, trombone, guitarra, gongos, piano, percussões e água elementar. E, em “Astérion”, uma “drone” de órgão Hammond a calcar a pedra e o cristal. Pressente-se aqui algo carregado com a mesma energia mágica das florestas virtuais do quarto mundo de Jon Hassell, os mesmos rituais de utilização dos sonhos como via de acesso ao interdito. E o espectro de Miles a espreitar nesta transmigração.
            “Ra clock”, da “viagem da alma até ao planeta Terra” até ao “caminho de regresso para as estrelas”, instala-se no âmago desse tal “além” situado entre as cinzas do jazz e a música concreta, com citações, pelo meio, às sonoridades siderais de Sun Ra. Um disco difícil, como são todos os de Sei Miguel, exercício de sublimação da loucura em discurso do método.
            Nos antípodas de “Ra Clock” está o novo e triplo álbum dos Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua. A dupla, que, curiosamente, nos últimos anos cultivou processos vários de clonagem e mimetismo de géneros musicais que iam da eletrónica lúdica à eletroacústica, retoma em “Quartetos” a estética do “free jazz” e da livre improvisação que marcaram os primeiros anos do coletivo.
            Com Lima Barreto ao piano (incluindo o preparado), Vítor Rua na guitarra de 18 cordas e eletrónica, e Tom Chant no saxofone soprano, cada um dos três CD conta com um convidado de peso, na bateria: Sunny Murray, protótipo da bateria “free”, no primeiro, Eddie Prévost, elemento da mítica formação AMM, no segundo, Gerry Hemingway, “avant-gardista” e “sideman” de Anthony Braxton e Marilyn Crispell, entre outros, no terceiro.
            Nada de novo nem de particularmente excitante acontece nesta ressurreição do espírito libertário dos anos 60, um “tour de force” que, para além de mostrar Lima Barreto em arroubos de lirismo pianístico (no intervalo dos omnipresentes “clusters”), tem como principais focos de interesse as conversas travadas entre o saxofone de Chant e as percussões livres de Murray, Prévost e Hemingway. Chant que, no disco 3, chora encostado ao piano, com Hemingway a desmultiplicar-se nos efeitos percussivos, naquele que será um dos momentos mais conseguidos de “Quartetos”.
            Mas o “free” era uma guerra. A luta pela liberdade em nome de uma causa. É difícil descortinar nestes “Quartetos” mais do que cicloturismo ao redor do parque dos clichés em que certa música improvisada é fértil. No jazz grande, o gesto vale enquanto manifestação ou manifesto de uma necessidade ou motivação profunda. “Quartetos” é grande na luta contra o tempo, esperando que o milagre aconteça.
            Comparada com as de Sei Miguel e dos Telectu, a música de Jacinta é um refresco. A nova “coqueluche” do canto jazzístico português, senhora de uma voz grave e com razoável controlo de modulações, presta no seu álbum de estreia — impressa na subsidiária nacional do prestigiado selo Blue Note — homenagem à
rainha dos “blues”, Bessie Smith.
            “A Tribute to Bessie Smith”, com produção de Laurent Filipe, mostra uma voz empenhada em revitalizar e recriar com sucesso (“Outro segredo de Jacinta: ser intérprete, logo autora”, escreve José Duarte nas notas de apresentação) o “jazz” na sua costela mais emotiva — com um ou outro sopro “lounge”, uma corrida pelo rhythm’n’blues e a assunção dos “blues”, mesmo, numa balada tão tocante como “Baby won’t you please come home”. Conta com notáveis participações instrumentais, nomeadamente de Mário Santos, nos saxofones e clarinete baixo, Greg Moore, no trombone, e de um Rodrigo Gonçalves capaz de percorrer ao piano uma gama larga de subtilezas e contrastes.
            A “A Tribute to Bessie Smith” só faltará o drama que apenas a vida concede ou retira a cada um. Mas como desejar um fado e um fardo assim a quem, como Jacinta, coloriu desta maneira o jazz feito em Portugal, com a felicidade do seu sorriso e uma alma aos caracóis?
            De volta ao jazz mais urbano depara-se-nos “Fast Living”, com assinatura do guitarrista Pedro Madaleno (também nos sintetizadores), em quarteto com Ruben Alves (piano e teclados), Yuri Daniel (baixo acústico e elétrico) e Dejan Terzic (bateria).  Não será por aqui que se encontrarão motivos que permitam descortinar novos sons e novas terras para o jazz, mas o que o guitarrista e os seus companheiros fazem fazem-no bem. Trata-se de “jazz rock”, inspirado nos mestres americanos como Weather Report ou Return to Forever, mas também na abordagem mais “snob” e progressiva da corrente inglesa de Canterbury personificada por grupos como os Soft Machine, Hatfield and the North ou National Health (temas como “Alien visitor” ou “What intelligent thing?” são bem ilustrativos desta tendência).
            Já em “Spirit of the world” e “Late night in Hamburg” o estilo guitarrístico de Madaleno lembra o do holandês Jan Akkerman, dos Focus, enquanto “Different places to go” denota a influência de John Scofield. Mesmo não estando isento da “comercialite” fácil, que é pecado em que amiúde incorre o “jazz rock”, “Fast Living” pertence àquela categoria de discos que não magoa nem maltrata o jazz, mais preocupado em distrair e provocar boas vibrações do que em deitar as garras de fora.

Sei Miguel
Ra Clock
Ed. e distri. Headlights
8 | 10

Telectu
Quartetos
3xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

Jacinta
A Tribute to Bessie Smith
Blue Note, distri. EMI-VC
7 | 10

Pedro Madaleno
Fast Living
Edição de autor
6 | 10

09/01/2019

Uma noite na ópera [Sparks]


Y 21|MARÇO|2003
música|sparks


“Lil’ Beethoven”, a mais genial das óperas bufas dos Sparks, vai ser tocada ao vivo em Lisboa, dia 26, no CCB. Escandaleira em perspetiva.

Uma noite na ópera

A pergunta é: pode a pop ser arte e entretenimento ao mesmo tempo? Ou, dito de outra maneira, exercício perene de criatividade tanto como objeto de consumo e de prazer imediato? Para o grupo americano Sparks, 33 anos no ativo, a resposta é de uma simplicidade desarmante: a pop pode e deve ser ao mesmo tempo uma provocação, uma rutura com o gosto dominante, uma invenção e um pátio de recreio.
Depois de nos anos 70 terem sido cómoda e apressadamente arrumados no pesiché barroco do glam rock, prosseguindo pelos 80 com aproximações bizarras à pop eletrónica e à dance music nascida do disco, segundo as profecias do robô das pistas de dança de discoteca, Giorgio Moroder, e pelos 90 com uma insistência em produções contra a corrente, a banda dos irmãos Russell e Ron Mael, respetivamente responsáveis pela música e pelas letras do grupo que viu nascer a luz do dia em 1970 na Califórnia do Sul, acaba de espantar o mundo com a obra maior da sua carreira: o álbum “Lil’ Beethoven”, premiado com a pontuação máxima pelo Y e aclamado pela crítica no resto do mundo. É o disco que vêm apresentar a Lisboa, CCB, dia 26, Às 21h. Escandaleira em perspetiva.
“Lil’ Beethoven” amplia o que nos clássicos álbuns dos anos 70, “Kimono My House”, “Propaganda” e “Indiscreet”, causaram um misto de repulsa, paixão e admiração, consoante a disponibilidade de cada um para aceitar os excessos, mas também as inovações estilísticas constantes que o grupo cunhou neste três discos. Para os irmãos Mael a pop, ontem como hoje, é um circo romano onde as feras e as convenções se digladiam. “Lil’ Beethoven” vai um pouco mais longe. A desmesura e o lado operático de algumas vocalizações continuam presentes mas o que mais distingue este objeto com conta, peso e medida (ainda que de acordo com escalas não oficiais) é a espantosa capacidade de gerar a cada segundo melodias viciantes e de as colorir com uma produção simultaneamente ultramoderna e enfarpelada com a peruca e o fato de fantasia de Luís XV, enquanto outras vozes não se coíbem de convocar, na comparação, monstros sagrados como os Beatles e os Beach Boys.
Mas “Lil’ Beethoven”, a par do verniz de classicismo que enforma temas como “The rhythm thief”, opereta a deitar a língua de fora às modas atuais que derrama o crude do sarcasmo nas areias hedónicas de Ibiza, dispõe as melodias em blocos sonoros que se distribuem pela música minimal e o rock & roll, a canção suburbana e o puro abstracionismo eletrónico. As letras de Russell Mael reduzem-se, por seu lado, a “slogans” repetidos até à exaustão até, num súbito golpe de rins, revelarem novos e inesperados ângulos poéticos. Russell ri-se do efeito, para alguns exasperante, provocado por esta tática e explica que se trata tão-só de uma forma de fazer tropeçar os auditores, empurrando-os para um lado da história somente para no momento seguinte os fazer cair no outro, iludindo num instante o que era aceite como certo nos versos anteriores.
Surpreendente é que nenhuma destas operações soa pretensiosa, antes convida a assobiar as melodias e a bater o pé no compasso de ritmos insidiosos. Particular em que “My baby’s taking me home” – Steve Reich intoxicado e aos soluços a escrever cartas de amor à namorada tão ridículas como as de Fernando Pessoa mas capazes de pôr uma pessoa a chorar, inclusive de riso – se revela absolutamente imbatível. Russell e Ron Mael são os Irmãos Marx na ópera mas, ao contrário dos iconoclastas da comédia americana dos anos 30, não destroem os cenários. Até porque, vendo bem as coisas, a sua música é toda ela um imenso cenário, gigantesco painel de ilusões.

            génios da propaganda. A história dos Sparks acompanha a evolução da pop nas últimas três décadas. Recuando aos primórdios da sua fundação torna-se fácil perceber qual a escola primária onde os irmãos aprenderam a conjugar melodia, energia e excentricidade, ao tomarem como professores os The Kinks, os Pink Floyd de Syd Barrett e os norte-americanos de “psychadelic garage”, The Seeds. Ligações com o psicadelismo que, na sequência de um primeiro álbum produzido por Todd Rundgren (um dos génios ignorados da pop mais hollywoodesca e esquizofrénica feita na América, autor de trabalhos inesquecíveis como “A Wizard, a True Star” e “Initiation”) se mantiveram até ao segundo álbum, “A Woofer in Tweeter’s Clothing” que tinha a participação de James Lowe, dos Electric Prunes.
Em 1974 e 1975, os Sparks assinaram os três álbuns que ficaram como imagem de marca, os atrás citados “Kimono My House” (do qual foi retirado o hit “This town ain’t big enough for both of us”), “Propaganda” e “Indiscreet”, este último já em plena fase de associação do grupo ao exibicionismo do “glam rock”, com produção de Tony Visconti, que já trabalhara com Marc Bolan e David Bowie. Mas “Indiscreet” é muito mais que trejeitos e androginia. Sob as camadas cerradas de “make up” agita-se um magma de melodias e contramelodias, hinos e aberrações, cânticos e onomatopeias que contrariam a noção de espetáculo gratuito do “glam rock”.
            O final dos anos 70 passa com “Introducing Sparks”, de 1977, e enquanto o punk fazia os seus estragos os Sparks recebiam encómios e eram comparados a um cruzamento dos Beach Boys com Randy Newman. Nova viragem nos anos 80. A tecnologia eletrónica apontava as baterias às discotecas e às bolas de luzes. O disco sound fazia a sua entrada triunfante, assumindo-se por sua vez como uma provocação kitsch e “middle class” ao niilismo do punk. Impressionados com a reviravolta provocada por “I feel love”, o hit-pimba de Donna Summer que alguns erigem como o maior golpe de génio do produtor Giorgio Moroder (espécie de Clemente do electropop em oposição ao distanciamento erudito dos Kraftwerk), os Sparks enveredam pelo “synth pop” em “Number One in Heaven”, fechando a década com “Terminal Jive”.
Nos anos 80 e 90 andaram um pouco perdidos. Passaram de moda e a ser encarados como múmias transvertidas de um género decadente. Mesmo assim ainda houve quem notasse as profundas dissidências e contravenções à pop dominante contidas no álbum de 1986, “Music that you Can Dance to”. Em compensação, exploraram o lado mais cinematográfico da sua música – algo que remontava aos anos 70 e a uma colaboração com Jacques Tati, além da participação de uma série de vídeos inovadores – adaptando para uma versão “music hall” a “manga” japonesa “Mai, the Psychic Girl”, conquistando deste modo mais um fã, o realizador Tim Burton.
Em 1993, os escoceses Finitribe (há admiradores dos Sparks espalhados pelas áreas mais insuspeitas, como os Sonic Youth) convidaram o grupo para a sua editora, daí resultando o single “National Crime Awareness Week”, cuja vocalização, em tom declamado, sobre fundo eletrónico, refletia a admiração de Ton Mael pelos rappers Public Enemy. O álbum de 1994, “Gratuitous Sax and Senseless Violins” (por esta altura já toda a gente deve ter reparado no tom de farsa da maior parte dos títulos…) alertou ainda alguns ouvidos mas a impressão geral era a de que os Sparks estavam deslocados na pop, prolongando a existência de dinossáurios através de sucessivas mutações que poucos reconheciam como obedecendo afinal à lei inexorável da evolução das espécies. Ainda que em 1998, “Plagiarism” fosse uma auto-homenagem (re)composta com base em velhos êxitos que contou com as colaborações dos Erasure, Jimmy Somerville e Faith No More. O 18º e penúltimo álbum, “Balls” e o DVD “Live in London” prepararam o terreno onde haveria de cair a bomba.
“Lil’ Beethoven” sintetiza tudo o que de excitante, decadente, pomposo, inspirado, pirotécnico e genuinamente original contém a música dos Sparks. Que é a única maneira que Ron e Russell Mael conhecem de a fazer. E a única maneira que temos para a ouvir. Maior espetáculo do mundo, o circo dos Sparks está montado na sala de espelhos do Palácio de Versalhes.