14/08/2020

Jerónimo, da tribo dos progressivos [Samuel Jerónimo]


Y 3|DEZEMBRO|2004
música|samuel jerónimo

Os sons, minimais, entranham-se. “Redra ndra Endre de Fase”, de Samuel Jerónimo, é Steve Reich em português. Ele prefere comparar-se a Keith Emerson e venera Gentle Giant.

jerónimo, da tribo dos progressivos


O computador foi a ferramenta utilizada para emular um piano e marimbas. Mais umas fatias finas de eletrónica. O resultado é “Redra Andra Endre de Fase”, três peças minimalistas, uma delas com 33 minutos, onde a imaginação e o vigor estão sempre presentes. O seu autor, Samuel Jerónimo, estudou composição e tocou numa banda rock, os Mystery of Grace. Cresceu a ouvir Debussy, travou conhecimento com a escola minimalista, de Reich e Terry Riley, mas o grande amor é o rock progressivo. “Redra...” terá mais a ver, diz o autor, com a influência dos Tangerine Dream e Emerson, Lake & Palmer do que com quaisquer escolas e erudição. Mas é nos Gentle Giant que vê a perfeição.
            Traçar a génese de um trabalho deste quilate, torna-se fundamental. É um álbum de estreia que queima de enfiada uma série de etapas. Tudo começou com guitarras para acabar em programação. “Há quatro anos andava deliciado com o álbum ‘Discipline’, dos King Crimson, com aquela interligação das guitarras. Comecei a fazer exercícios nessa onda e pedi ao meu professor um programa informático com o qual pudesse continuar a fazer esses exercícios, de forma mais elaborada. A partir daí fui desenvolvendo ideias com base no ‘multilayer’. O piano acabou por surgir como o melhor veículo para as composições”.
            O que espanta é ter criado uma unidade a partir de influências tão díspares como a música clássica, o minimalismo e o rock progressivo. Samuel diz que não foi difícil. Agiu como o empresário esclarecido. “Defini um caminho, como uma empresa escolhe uma missão entre várias hipóteses de bons negócios”. Em termos de forma, “Redra…” está próximo da escola minimalista mas o autor baralha as pistas. “Tem mais a ver com Emerson, Lake and Palmer. Há um ritmo ‘ostinato’ semelhante a um ritmo do ‘Tarkus’”. Mais inserido na estética do minimalismo está o tema “Endre de fase”, baseado no conceito de Reich, de “change as a gradual process”.
            “Fiz um estudo sobre esta teoria, mas não procurei a cópia. Em vez do processo de ‘phasing’, com duas linhas melódicas tocadas em velocidades ligeiramente desfasadas, aumentei o número de vozes, seis, todas à mesma velocidade, só que nalguns compassos introduzi uma pausa de meio tempo. E mais para a frente fui retirando notas para obter uma sensação menos maquinal. Mais ‘chance’, como diria o John Cage”.
            Há marimbas, piano e eletrónica. Tudo no computador. “Uso-o para a composição mas nunca seria capaz de dar um recital. O Ligeti também compôs uns estudos para piano e não tocava este instrumento”. Um processo de clonagem que Samuel explica por motivos, afinal, prosaicos. “Gravei assim porque me saiu mais barato. Não podia pagar ensaios a dois pianistas e três percussionistas. Sairia caríssimo um disco que não sei se tem mercado. Das duas uma, ou vai abrir portas ou nunca terá existido…”.
            “Redra…” parece obra muito pensada, mas há nela uma frescura que sugere boa dose de espontaneidade. “Foi como fazer desenhos animados. Para fazer dez segundos, demorava horas. Tinha uma ideia estrutural mas, chegado a meio, não sabia como iria ser daí para a frente. Acabei por demorar dois anos a fazê-lo. Sempre tentando aplicar o conceito de ‘mudança’. As peças que o compõem são como a trilogia do ‘Star Wars’”.
            “Redra”, “Andra”, termos estranhos. “’Redra’ significa cavar a vinha, é um termo do Norte”. Foneticamente lembra “Phaedra”, dos Tangerine Dream. Faz sentido. “O ‘Phaedra’ foi grande influência na segunda peça, o começo. ‘Andra’ é um termo nórdico que significa ‘mudança’. ‘Redra’ é arrancar as ervas daninhas para vitalizar o processo. Também me inspirei nos textos do ‘I-Ching’ sobre a mudança. A mudança introduz a atividade. ‘De fase’ leva-nos para o ‘phasing’ do Steve Reich.

            descoberta ou nostalgia? Antes de “Redra...” e da computação o músico de Valado dos Frades já tinha composto uma peça de meia-hora para grupo rock. Foi feita para os Mystery of Grace, em 1998, “uma coisa a puxar para o rock progressivo, com baixo, teclados e bateria”. “Redra”, o tema, dura 33 minutos. Nada mau para um estreante. “Podia ser pior!”, ri-se, “tinha 43, mas reduzi, para ficar mais coeso. O Mike Oldfield fez o ‘Amarok’ com uma hora e quatro segundos” (risos).
            Oldfield, Tangerine Dream, King Crimson, Emerson, Lake and Palmer. Tantas referências ao progressivo fazem pensar. “Redra…” está a ser bem recebido pelos dois lados da barricada. “E as pessoas do rock progressivo estão a reagir bem. Numa entrevista, o Paul McCartney, sobre o ‘Mull of Kintyre’, dizia que as pessoas ou iriam achar antiquado ou então o pessoal dos Beatles iria agarrar aquilo. Foi um sucesso. No meu caso, acho que o álbum está mais voltado para o Progressivo. Fui muito influenciado pelo Keith Emerson, muito mais do que pelo Rick Wakeman, que sempre achei bombástico”.
            Mas como chegou um jovem de 25 anos ao rock progressivo dos anos 70? Samuel admite que é acusado de “revivalista”. “Como é que um puto chegou ao rock progressivo, não é?” (risos) ‘Foste à discografia do teu pai?’ (risos). Nada disso. O que gostei sempre no rock progressivo foi de haver tempo para desenvolver as coisas. Também tem a ver com uma forma de estar na vida. Depois comecei a comprar discos, procurando edições em vinilo. Da música atual gosto de Massive Attack. Não sou nostálgico. Quando compro um disco dos aos 60, 70 ou 80, para mim é descoberta. Tudo me soa a fresco. Um disco dos anos 90, dos Oasis ou do ‘grunge’, que ouvi quando andava no Ciclo e no Preparatório, isso sim, soa-me datado”.
            Os gostos dirigem-se aos Pink Floyd, King Crimson, Van Der Graaf Generator e Gentle Giant. “’Octopus’ é uma obra-prima, os Gentle Giant tratavam cada peça como uma sinfonia, a maneira como jogam com os instrumentos é inigualável, em cinco minutos metiam tudo”. Diga-se, de passagem, que Samuel já compôs uma versão de “Raconteur troubadour”, tema de “Octopus”, precisamente.
            Dos minimalistas, cita Reich, “Music for 18 Musicians”, “Different Trains”. De Terry Riley elege “In C”, “peça onde se aprende muito, nunca é tocada da mesma maneira, podemos acrescentar o nosso próprio ‘input’”. Já na música clássica, um nome salta de imediato: Claude Debussy. “Derreto-me no sofá a ouvi-lo”.
            “Redra, Andra, Endre de Fase” vai ser apresentado ao vivo. Contará em palco com músicos. “Não faz sentido estar à frente de um computador e saírem de lá sons orgânicos. Se ‘Redra…’ é um ‘statement of art’ então vamos levá-lo às últimas consequências”.
            É cedo para se avaliar o impacte de “Redra, Andra, Endre de Fase” na música portuguesa não comercial. Para já os mil exemplares editados pela Thisco vendem a bom ritmo. Para um álbum com três longas peças de uma música não imediatamente apreensível, é obra. Samuel continua otimista: “Sim, as peças são longas, mas então o Wagner não compôs ‘O Anel dos Nibelungos’”?

O estranho mundo de Spring Heel Jack


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 2 DEZ 2004

O estranho mundo de Spring Heel Jack

O acontecimento e, talvez, o choque, dá pelo nome de Spring Heel Jack, grupo que no sábado se estreia nos palcos portugueses, no Festival Jazz ao Centro, em Coimbra, na apresentação do novo álbum “The Sweetness of the Water”. O programa, de jazz contemporâneo, começa hoje com a apresentação de um quarteto liderado pelo contrabaixista Adam Lane, e inclui ainda atuações do trio do acordeonista Will Holshouser e de Bernardo Sassetti, ambas amanhã.
            A história dos Spring Heel Jack é a história de um monstro que assusta os amantes do jazz mais tradicional e intriga os consumidores de música eletrónica. O monstro é bicéfalo e é alimentado por dois músicos, John Coxon e Ashley Wales, cuja atividade prévia na música compreendia o “dub” e o “drum ‘n’ bass”, embora explorando já as suas zonas mais sombrias.
            Depois de uma fase em que exploravam já citações a Hendrix, Cage, Reich e ao “free jazz”, é no álbum “Masses”, de 2001, que a aproximação – perigosa – ao jazz e à improvisação eletroacústica se processa com maior intensidade. A par disso, Coxon e Wales convidavam para tocar com eles músicos como Matthew Shipp, Evan Parker, Tim Berne, Daniel Carter, William Parker ou Mat Maneri.
            “Amassed” (2002) reforça o escândalo e duplica as perplexidades. Com Han Bennink, Paul Rutherford, Kenny Wheeler e, de novo, Evan Parker, William Parker e Shipp, é um dos grandes discos de jazz alienígena desse ano. O efeito da audição anula e desafia catalogações e categorias estéticas. O álbum “Live” (2003) expande ainda mais as fronteiras, indo do caos à liturgia. Já este ano, “The Sweetness of the Water”, ainda com Evan Parker, a dupla rítmica John Edwards e Mark Sanders e o trompetista Wadada Leo Smith, vem revelar a faceta mais introspetiva do grupo. Smith, um veterano ideólogo de Chicago, e o sempre inovador Evan Parker, colam e descolam as suas descobertas contra um fundo de constantes metamorfoses. Mesmo sem o saxofonista, em Coimbra, o resto da formação garantirá certamente, por sua conta e risco, as mais delirantes viagens.
            Hoje, Adam Lane contará no seu quarteto com os prestigiados John Tchicai (sax tenor) e Barry Altschull (bateria) e ainda Paul Smoker (trompete). Lane assimilou as influências de Ellington, Cecil Taylor e Stockhausen e deste coletivo é de esperar surpresa e criatividade sem entraves.
            Will Holshouser, que se apresenta amanhã, toca acordeão, um instrumento que pode soar irritante se nas mãos erradas. Como Galliano ou Guy Klucevsek, porém, Holshouser usa os foles como matéria de pesquisa para uma música que abarca as vertentes folk e urbana e assimila as culturas do tango ou da klezmer. No mesmo dia, na segunda parte, o pianista português Bernardo Sassetti explorará a solo as profundezas, o céu e as paisagens que impressionisticamente pintou nos álbuns “Nocturno” e “Indigo”.

Festival Jazz ao Centro
COIMBRA Teatro Académico Gil Vicente. Tel. 239855636. Bilhetes: 12 euros. Bilhete para os três dias: 25 euros.
ADAM LANE QUARTET. Hoje, às 21h30
WILL HOLSHOUSER TRIO / BERNARDO SASSETTI SOLO. Dia 3, às 21h30
SPRING HEEL JACK. Dia 4, às 21h30

Sal em jazz de água doce [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 27 NOVEMBRO 2004

Os Spring Heel Jack voltam a surpreender, com um álbum mais introspectivo que os seus estrondosos antecessores. Na Suécia reza-se. Os Bad Plus divertem-se. Em Portugal a improvisação dá as mãos a Zeca Afonso.

Sal em jazz de água doce

Há discos que estão nas margens do jazz. Discos que empurram o jazz para fora das margens. A música dos Spring Heel Jack, desde que a dupla John Coxon e Ashley Wales decidiu desviar-se dos caminhos do drum ‘n’ bass e enveredar por uma abordagem jazzística radical, tem suscitado uma série de perplexidades, a menor das quais não será a dificuldade em traçar a sua genealogia e fazer a sua catalogação. Depois de “Amassed” e do álbum ao vivo, “The Sweetness of the Water” prossegue a saga de conciliar a eletrónica e o “sampling” com alguns dos melhores improvisadores da cena jazzística atual. Do “Live” para o novo álbum apenas ficou Evan Parker, juntando-se-lhe o trompetista, membro do AACM e da Creative Construction Company, com Anthony Braxton e Leroy Jenkins, Wadada Leo Smith, e uma secção rítmica formada por John Edwards (contrabaixo) e Mark Sanders (bateria) cuja colaboração já havia dado frutos em “Nisus Duets”.
            “The Sweetness of the Water” começa com aquecimento improvisacional, em dois quadros abstratos, “Track four” e “Quintet”. No primeiro desenrolam-se ângulos cortantes de guitarra elétrica por Coxon, taquicardias rítmicas e o desempenho atmosférico de Leo Smith no trompete, num tema onde a “gaiola de elevador” faz figura de instrumento musical. Parker deambula por ali, em “Quintet”, mostrando-se tão à vontade no contexto do circo eletrónico como no seu próprio Electro-acoustic Ensemble.
            Mas o primeiro grande momento acontece em “Lata”. Sobre um fundo eletrónico que sugere o balanço romântico-psicótico de “Chree”, dos Suicide, Evan Parker procede à dilaceração do tempo, com cada frase, por mais livre que seja, a encaixar-se de modo mágico na pulsação maquinal. “Duo” é um subtil trabalho de fi ligrana de Sanders, na bateria, com Coxon adicionando-lhe efeitos e “noise” a la Sonny Sharrock.
            “Track one” é outros dos temas belíssimos de “The Sweetness of Water”, ilustrando o lado mais meditativo do grupo, com simulacros de gongo, Wadada a pairar no topo do mundo e um Parker ternamente melódico no tenor. Eno encontra os Art Ensemble of Chicago num templo tibetano. As improvisações coletivas de “Inlet” e “Track two” reforçam o facto de este ser o álbum mais introspetivo dos Spring Heel Jack, o último tema a explorar as goelas do piano e um Smith perfeitamente extasiado.
            “Autumn” termina “The Sweetness of the Water” na mesma nota épica de “Live”, com eletrónica espacial/cósmica a servir de campo de manobras à oratória de trompete de Leo Smith, numa fusão de jazz astral com a selva digital de Jon Hassel. Os Spring Heel Jack voltaram a arriscar, já não com o ímpeto iconoclasta dos dois trabalhos anteriores, mas com a devoção de verdadeiros musonautas agora infiltrados nos meandros do silêncio.
            Outro álbum devocional que se afasta dos cânones do jazz tradicional é “In Winds, in Light” do contrabaixista sueco Anders Jormin, fundador, nos anos 70, dos progressivos Rena Rama e autor de uma discografia onde contou com “sidemen” como Arve Henriksen, Mats Gustafsson e Marc Ducret.
            O álbum é um ciclo de música sacra e tem como parceiros de Jormin a cantora folk Lena Willemark, Marilyn Crispell (piano), Karin Nelson (órgão de igreja) e Raymond Strid (percussão). Tudo se subordina à elevação e à espiritualidade, o que não quer dizer que tudo se reduza à oração. Em “Choral”, o órgão de igreja vai da beatitude de um Messiaen a explosões na cúpula de catedral, numa demencial fuga de Bach com Lena Willemark a abandonar o registo recitativo para se entregar a cânticos de extrema visceralidade. O curto intervalo de contrabaixo solo em “In Winds” prepara o terreno para novas litanias de demanda do desconhecido (o título original desta obra era “Além”) e um dos traços mais interessantes é o contraponto entre a faceta folk (por mais que ela a tente disfarçar) da cantora e o piano espartano de Marilyn Crispell, magnífico em “Flying”, luxuriante queda de água de notas contrapostas à solenidade do órgão de igreja.
            “In Winds, in Light” ficaria talvez melhor nas “new series” da editora. Enquanto “Jazz” é, tal como “Lux Aeterna”, de Terje Rypdal, um objeto adjacente, estranho a quaisquer noções tradicionais deste tipo de música. Todavia belo.
            Para recarregar as baterias de músculo e suor, há bom remédio. Basta tomar uma dose de “Give” dos The Bad Plus, o “power trio” de piano/baixo/bateria que em “These are the Vistas” já havia dado nas vistas.
            Os Bad Plus tentam tocar jazz mas a métrica e a rítmica, com a bateria a espancar os tempos fortes, tombam mais para o lado do rock. Há influências de “gospel”, música latina, “honky tonk”, Ethan Iverson, no piano, faz de Monk e soletra a primeira letra do seu abecedário e, para desassossegar ainda mais, não faltam versões de “Street woman”, de Ornette Coleman, “Velouria”, dos Pixies, e “Iron man” dos… Black Sabbath. Para um aficionado de jazz-jazz, será talvez forçar a nota em demasia. O que para os The Bad Plus é indiferente. Acima de tudo, eles divertem-se.
            Em Portugal, o jazz também vai longe. Por vezes onde menos se espera. O contrabaixista José Eduardo, por exemplo, “foi-se” à música de José Afonso e o que poderia ser trabalho redundante acaba por ser mais uma dedicatória que honra a obra do cantautor, abordando-a sob a dupla perspetiva de “consciência” e “património”.
            Por outras palavras, o que o trio José Eduardo, Jesus Santadreu (sax tenor) e Bruno Pedroso (bateria) procuram traduzir é a música (ou a música das músicas) que está para além delas (as palavras), acabando “A Jazzar” por ser, neste aspeto, um disco revolucionário. Nunca “Grândola, vila morena” imaginou poder ser dita através de um lancinante solo de saxofone, em versão pautada por alguma ironia, nem que o que fazia falta a “O que faz falta” fosse um longo solilóquio de contrabaixo. Santadreu está igualmente bem e forte em “Coro da Primavera”, qual Sonny Rollins voltado mais para a frente. “A Jazzar no Zeca” é mais um filme do que um retrato, inscrevendo-se nessa “música imaginária” tão cara ao contrabaixista. Zeca nunca imaginaria…
            Editado mais recentemente pela Clean Feed, o novo trabalho dos Lisbon Improvisation Players (LIP) chama-se “Motion” e tem como intervenientes Rodrigo Amado (saxes barítono e tenor), Steve Adams (saxes sopranino e tenor), Ken Filiano (contrabaixo) e Acácio Salero (bateria). Na música improvisada tem-se em conta a ligação, os elos, o saber ouvir e o saber interrogar o desconhecido. Não basta tocar por tocar, é necessário guiar (ou ser guiado) com um propósito em mente.
            Os LIP têm um corpo sólido e um discurso eloquente. O modo como os saxofones de Amado e Adams se dão as mãos para seguir juntos nas descobertas (“Motion”, “All the things we are”, “Wrist action” nunca são caminhada solitária) é um dos pontos a favor deste “Movimento”, que parte do “free” à descoberta de uma outra ordem, ainda que esta já tenha sido encontrada (uma ordem, ou a sua subversão…) por gente como Peter Brötzmann, influência detetável. A combinação saxofonística de “Wrist action” é para ser devorada, tal a suculência do som e a sucessão de soluções de pergunta/resposta encontradas.
            “Shipping news” completa em arco o ambiente inquisitivo do tema inicial “Perpetual explorers”, com Salero a fazer detonar o tempo e Filiano a arrumá-lo. A exploração continua. Faltam, porventura, portas de saída a este jazz que não receia ser solidário.
            No limite mais afastado do “mainstream”, “Quartets”, de Manuel Mota, procura apanhar os estilhaços de uma música que se pulveriza em gestos onde o silêncio se inscreve numa quadrícula. Mota, como Derek Bailey ou o Fred Frith mais sarcástico (de “Guitar Solos”), arranca da sua guitarra elétrica ruídos e eletricidade pura. Tem a seu lado Fala Mariam, no trombone, companheira habitual de Sei Miguel, Margarida Garcia, no baixo, e, num interessante complemento tímbrico que no entanto se esgota quando cessa o efeito surpresa, César Burago, no carrilhão.
            Os temas não se diferenciam o sufi ciente uns dos outros para manter acesa a atenção e a insistência na contenção levada ao extremo acaba por se tornar cansativa. “Downstairs” parece ter sido cortado aos bocados e “Good eve” condescende com o ambiental. “Menos é mais” ou há algo mais escondido nesta música que o ouvido não apanha?

Spring Heel Jack
The Sweetness of the Water
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
8 | 10

Anders Jormin
In Winds, in Light
ECM, distri. Dargil
7 | 10

The Bad Plus Give
Columbia, distri. Sony Music
6 | 10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Zeca
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Lisbon Improvisation Players
Motion
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Manuel Mota
Quartets
Ed. e distri. Headlights
5 | 10

Samuel Jerónimo - Redra Andra Endre De Fase


Y 26|NOVEMBRO|2004
discos|roteiro

SAMUEL JERÓNIMO
Redra Andra Endre de Fase
Ed. e distri. Thisco
8|10

A surpresa vem de onde menos se espera. “Redra...” é uma pedrada no charco no panorama da eletrónica portuguesa. O seu autor, 25 anos, admirador de Fripp, Steve Hackett, Steve Howe, Berg, Debussy, Schönberg, Reich e Terry Riley, assinara antes peças de guitarra, uma “suite” de 36 min. para grupo rock e um ensaio de “Redra” incluído na compilação da This.Co. “Thisobidience: These Guys Gone out!”. O álbum de estreia é um “tour de force” de música minimal onde se combinam equações de piano, marimbas inspiradas nas orquestras gamelão, eletrónica pontilhística e tratamento de computador. Das três composições, “Redra” desenvolve-se ao longo de 33 minutos de amor à causa “música minimal repetitiva” (MMR), sem soçobrar nos “clichés”. A influência de Reich é inquestionável mas também se detetam sinais de “A Walk in the Woods” de Mikel Rouse. Jerónimo “ataca” o piano com o vigor de um Keith Emerson da MMR e põe as marimbas a fazer sessão de hipnose. Atrás das melodias principais, os duplos harmónicos criam uma rede de melodias secundárias que se substituem umas às outras num efeito de eternidade suspensa. É um objeto único e fascinante.

Miles de passagem [Miles Davis]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 20 NOVEMBRO 2004

Miles Davis dissecado ao pormenor em sete discos que abrangem dois anos de carreira, 1963 e 1964. Kind of Blue já ficara para trás. E.S.P. e Miles Smiles vinham a caminho.

Miles de passagem


Facto número um: o objeto. Mais uma antologia da Columbia correspondente a um período específico do músico, embalada de forma apelativa num grosso volume com a capa forrada a tecido e lombada em metal. Número de discos: sete. Convenientemente limpos de impurezas e remasterizados. Informação adjacente: profusa. Em forma de anotação que é quase um livro, com as suas 92 páginas divididas em cinco capítulos, “Introduction”, “Track listing”, “Discography”, “The complete 1963-64 Columbia recordings” e “Credits”. Tudo contado ao pormenor, faixa a faixa, segundo a segundo, para que fiquemos a saber que na faixa “x”, ao segundo “y”, ao meio-tom tocado pelo trompetista correspondeu uma inclinação do bocal do saxofonista de 2,5 graus, com emissão de um sol e um fá sustenido. Título da obra: “Seven Steps — The Complete Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964”.
            Músico principal – como é que adivinharam? –, Miles Davis. Captado em pormenor e visto à lupa nos anos de 1963 e 1964, maioritariamente ao vivo em locais como o Festival Mondial de Jazz Antibes, em França, o Philharmonic Hall de Nova Iorque, o Kohseinenkin Hall de Tóquio, Japão, e o Berlin Philharmonie, em Berlim, mas também em gravações nos estúdios da Columbia e sessões de rádio.
            Formações: George Coleman (sax tenor), Victor Feldman (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Frank Butler (bateria); Coleman, Carter, Herbie Hancock (piano) e Tony Williams (bateria); Hancock, Carter, Williams e Sam Rivers (sax tenor); Hancock, Carter, Williams e Wayne Shorter (sax tenor).
            O material aqui incluído, além dos ocasionais “takes” inéditos, está disperso pela discografia oficial do trompetista durante este período: “Seven Steps to Heaven”, “Quiet Nights”, “Miles Davis in Europe”, “My Funny Valentine”, “Four & More”, “Miles in Tokyo”, “Miles in Berlin”, “Directions” e “Miles Davis – Heard ‘Round the World”.
            Historicamente os anos de 1963 e 1964 correspondem a um período de transição, como muitos outros na carreira do músico. “Kind of Blue” já ficara para trás quatro anos. “E. S. P.” e “Miles Smiles” apareceriam, respetivamente, em 1965 e 1966.
            Miles era já nesta altura uma estrela que vestia roupa de marca e guiava um Ferrari. Mas era também vítima de maleitas que o atormentavam e, por vezes, impediam de tocar com maior regularidade. A uma personalidade musical inquieta juntava-se uma saúde frágil. Como alguém escreveu, o modo como tocava trompete foi um “flirt” com a morte. Não vamos tão longe, como Jean Wagner, que associou a essência mais profunda do “cool” a esta mesma morte. Preferimos notar a angústia existencial. Por detrás de cada nota que Miles emitia no trompete erguia-se o seu duplo, uma sombra de silêncio. Miles tocou sempre debruçado sobre o silêncio, não como espaço de apaziguamento, mas um silêncio tenso. Por vezes ameaçador. Mesmo quando, já em plena fase elétrica e do “jazz rock”, os sons que o rodeavam eram atordoadores, o trompetista se voltou sobre si mesmo, para uma caverna imensa que ia escavando cada vez mais fundo.
            George Coleman fora recomendado a Miles por John Coltrane. Melodista nato e bom improvisador, faltava no entanto a este saxofonista a energia e espiritualidade de Coltrane. Coleman abandonou o grupo precisamente quando a música arrancou de novo para um período de maior experimentação. Depois da interessante experiência com Sam Rivers, Wayne Shorter seria o homem indicado para ocupar o lugar de tenorista. Carter viera por sugestão de Paul Chambers, baixista de “Kind of Blue”, e Frank Butler foi rapidamente substituído pelo então jovem prodígio da bateria Tony Williams, com especial autorização de Jackie McLean. Victor Feldman, pianista e multinstrumentista que Miles citara como exemplo do bom jazz que se fazia fora dos Estados Unidos (o trompetista teve sempre um fraquinho pelos músicos ingleses), explorou bem o terreno antes da entrada em cena de Herbie Hancock, contribuindo, inclusive, com dois originais para o reportório do grupo, “Joshua” e “Seven steps to heaven”.
            Uma das mais interessantes verificações que a presente antologia proporciona, para além das comparações de ordem técnica que é possível estabelecer entre as várias interpretações de um mesmo tema, é a mudança radical que Sam Rivers provocou com a sua entrada para o grupo. Coleman, como já dissemos, era um perfeccionista avesso a riscos. Para ele arriscar e quebrar barreiras implicava poder cometer erros e isso era algo que não fazia parte do seu vocabulário (Tony Williams chegou a irritar-se com tamanho perfeccionismo…).
            Sam Rivers, pelo contrário, era um iconoclasta, mais próximo do “rhythm ‘n’ blues” do que dos floreados do “bop”. Compare-se a fluência elegante de Coleman com as abstrações harmónicas e os timbres guturais de Rivers num tema como “So what” (de “Kind of Blue”) e vejam-se as abissais diferenças. Para Carter, Hancock e Williams era a oportunidade de avançar e experimentar. Para Miles quase motivo para se divertir. Depois da experiência Sam Rivers, Wayne Shorter, mais “boppish”, devolveu ao quinteto um “swing” mais tradicional, aplanando os abismos que Rivers abrira. O mesmo “So what” perde violência, mas ganha coesão. O quinteto renova-se em unidade e sentido e a secção rítmica funciona como uma máquina que Rivers, mesmo involuntariamente, fazia dispersar. Hancock e Miles, na sua veia mais lírica, fazem dupla mágica na introdução de “Stella by starlight”.
            À laia de síntese, é forçoso reconhecer que 1963 e 1964 não terão sido anos “vintage” na carreira do trompetista, apanhando-o numa fase revisionista de temas antigos do seu reportório. E, se as inovações escasseiam desta vez, é preciso dizer que, no caso do trompetista, estas começaram sempre por ser interiores. Miles Davis cumpria-se a si próprio enquanto não (re)começava tudo de início. Tudo, não – era apenas a sua dor que encontrava novas formas de expressão.

Miles Davis
The Complete Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964
Columbia, distri. Sony Music
7 | 10

Steeleye Span - They Call Her Babylon


Y 19|NOVEMBRO|2004
discos|roteiro

STEELEYE SPAN
They Call her babylon
Park, distri. Megamúsica
7|10

Nunca nada está perdido para os Streeleye Span, a banda de folk rock inglesa que tem sete vidas como um gato. Sobrevivendo às modas, às investidas da “world” e a sucessivas alterações na formação, o grupo regressa com uma vitalidade digna de registo. O equilíbrio entre as vertente “folk” e rock nem sempre é o mais adequado, nalguns casos fazendo-se valer uma veia “hard rock” progressiva que ora recorda os Jethro Tull ora os Gentle Giant. Mas para aqueles a quem a profusão de guitarras elétricas e bateria não constituem obstáculo, “They Called Her Babylon” oferece “riffs” e refrões irresistíveis. Houve já quem, talvez apressadamente, considerasse este álbum um dos clássicos do grupo. Na verdade, se há temas em que os Steeleye Span tocam o esplendor de outros tempos esses devem-se às vocalizações de Maddy Prior. Clássicas são, sem dúvida, as suas interpretações em “Van Diemen’s land”, “Heir of Linne” e “Child Owlet”, esta última de antologia. Num álbum marcado pela temática religiosa, soa débil a execução no violino de Peter Knight em “Si begh si mohr”, de Turlough O’ Carolan, longe de fazer esquecer a inultrapassável versão dos Chieftains.

Kathryn Tickell Band - Air Dancing


Y 19|NOVEMBRO|2004
roteiro|discos

KATHRYN TICKELL BAND
Air Dancing
Park, distri. Megamúsica
8|10

O modo como Kathryn Tickell faz soar as Northumbrian pipes é de natureza quase sexual. O prazer que a música proporciona permanece como algo de palpável. É o som, é o estilo e a natureza táctil das ornamentações, já para não falar na figura da senhora, que induzem ao pecado. “April” recebe-se como um beijo. “Small & wild”, com as “pipes” a roçarem-se-nos na pele, é menos inocente. Os “sets” instrumentais, sejam composições próprias, de Alistair Anderson, Rory Campbell, ou tradicionais, sucedem-se como danças de um salão de delícias proibidas. “The long grass” é conversa a três entre a gaita-de-foles, o violino e a “box” de Julian Sutton, “o Picasso do melodeon”, que volta a brilhar no compasso balcânico de “Winding sideways”. Outros momentos a reter são “Air moving”, uma composição de parceria com o saxofonista Andy Sheppard, “Music for a new crossing”, e a música para casamento, “Steve and Jenny”, outra execução tocante nas “pipes”. Kathryn exibe-se ao mais alto nível numa bizarra execução no violino, em “Peter man”. As percussões e “ruídos” de Donald Hay conferem um toque contemporâneo a um disco que apenas quebra nuns longos seis minutos de valsas destinadas a chamar a atenção para o filho de Kathryn, Peter Tickell.

04/08/2020

Boa noite de jazz inglês com Kenny Wheeler


CULTURA
DOMINGO, 14 NOV 2004

Crítica Música

Boa noite de jazz inglês com Kenny Wheeler

Kenny Wheeler com “big band”
LISBOA Culturgest
Dia 12
Sala a dois terços

Kenny Wheeler é canadiano, mas o jazz inglês é o seu “habitat” natural. Sexta-feira, na Culturgest, numa das extensões a Sul do Guimarães Jazz (onde tinha tocado na véspera), o trompetista dirigiu a “big band” que em anteriores ocasiões teve a chefiá-la Michael Gibbs, Maria Schneider, Bob Mintzer e Gianluigi Trovesi.
Wheeler deu-lhe a típica coloração do jazz inglês que no passado assumiu foros de pioneirismo. É um jazz caracterizado pela disciplina, mas não dirigido com mão de ferro, e por notas de melancolia que, no caso de Wheeler, ganharam pinceladas peculiares.
No início, a música de Wheeler teve o formato de septeto, com a pianista Nathalie Loriers a criar o ambiente e o trompetista a passeá-lo com os seus timbres de veludo. Atrás deles a bateria entretinha-se em jogos de miniatura com a percussão, e Bernardo Moreira soltava com segurança e boa articulação as notas graves do contrabaixo. Nguyen Lê, o guitarrista, esteve também em ação neste início do concerto, desta vez muito mais discreto do que no ano passado com Trovesi.
Foram-se as explosões eletrónicas de Jimi Hendrix para ficar um discurso mais contido, reminiscente do suave torpor de John Scofield. Julian Argüelles mostrou no sax tenor o significado do termo “secura”. Tudo pausado e um pouco triste. Depois juntou-se-lhes a convidada Norma Winstone. Não é a melhor cantora do mundo, mas vale a pena escutá-la num álbum como “Edge of Time” (e não “I’m the One” como anteriormente escrevemos, mil perdões, esse é de Annette Peacock...) e a voz começou por mostrar-se ainda mais fria do que o habitual. Norma cultiva a articulação e uma certa luminosidade velada em detrimento da expressividade emocional.
A espiritualidade e a força do blues são conceitos que lhe são alheios e tudo se passa ao nível de tessituras milimetricamente urdidas no cérebro. A emoção vem com as palavras, e nas impercetíveis modulações, bem como dos tons escolhidos pelo compositor. Foi bonito ouvi-la cantar “Everybody’s song but my own”, mas tanta tristeza tinha que acabar. Mesmo que para isso fosse necessário esquecer as indicações dadas por Wheeler. O homem pode ter pulmão para soprar com brilho no trompete, mas a falar pareceu estar prestes a ir desta para melhor.
Finalmente os restantes elementos da orquestra apareceram e a música aqueceu. As cores espalharam-se pela sala e sucederam-se curtos solos de quase todos. Mais tenores, alto, flauta e trombones vieram à boca de cena fazer as suas intervenções, mas foram todas solos de pouca dura.
A peça de resistência foi uma longa “suite” na qual Wheeler mostrou a gama completa das suas virtudes e influências como compositor. Norma, a voz já mais lubrificada e a soltar-se com agilidade no “scat”, cantou “a capella” em modo quase oriental e a fazer lembrar a sua participação nos Azimuth, houve uma secção “free” que não deixou de evocar o trabalho do trompetista com a Globe Unity Orchestra e, num dos melhores momentos da noite, os cinco saxofonistas entregaram-se a uma construção contrapontística matemática digna de Anthony Braxton, outro dos companheiros de estrada de Wheeler.
A preencher esses picos o som do coletivo esteve pujante, em crescendo, e dominado pelo tal balanço inglês que tem pouco a ver com o “swing” das grandes formações de músicos negros. Kenny Wheeler desenhou o concerto como um sólido edifício, dos alicerces até à cúpula, num todo coeso mas que só na parte final chegou a ser entusiasmante. Todavia, o público não pediu “encore”.

EM RESUMO
O bom jazz inglês em formato grande teve em Kenny Wheeler um bom maestro e compositor.
A voz de Norma Winstone, mais do que um sentimento, foi uma ideia

Como um ferro em brasa [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 13 NOVEMBRO 2004

Se na semana passada falámos da ECM, editora do espaço e do silêncio, o jazz desta semana enferma da falta deles. Tem outros atributos que à energia pertencem: o fogo, o calor, a electricidade.

Como um ferro em brasa

No ano do seu 50º aniversário, John Zorn continua a expandir os limites da sua música no contexto de um jazz mais do que liberal e da assunção das suas origens judaicas, com os Electric Masada, num novo álbum esotericamente intitulado 50 elevado à quarta potência. Desta vez em octeto, com Marc Ribot (guitarra), Ikue Mori (“laptop”), Joey Baron (bateria) e Cyro Baptista (percussão), entre outros, Zorn envereda por um estilo de fusão que tanto recolhe elementos da música klezmer como radica no “free” de Ornette Coleman ou nas experiências de Miles Davis no “jazz rock”. “Idalah-abal” roça o progressivo e a guitarra de Ribot leva o tema para as proximidades de um “hard rock” de contornos épicos. Sobre a massa instrumental, Zorn espreme o seu saxofone alto até o fazer gritar de dor. É o Zorn mais “funky” que se pode conceber. Também o mais acessível e próximo de uma sensibilidade rock. Os 15 minutos de um dos temas mete na caldeira o “jazz rock”, melodias “yiddish”, saxofone a soprar bom “free”, piano elétrico e vozes alienígenas filtradas por computador, tudo muito “In a Silent Way” mas com “silent” substituído por “highly energetic”.
            Outro exemplar de jazz fusionista é o curioso “Rhythmatism” do baterista Steve Reid, gravado em 1975. Pouco sensível às liberdades “free”, Reid revela antes as suas raízes “soul” e o que ficou do convívio com Martha Reeves and the Vandellas, Dionne Warwick e James Brown. Reid também tocou com Miles Davis, Gary Bartz, Freddie Hubbard, Sam Rivers e Archie Shepp. E, bem impressas as marcas, Fela Kuti. É “soul jazz” onde o mais importante é a manutenção do “groove” em longas “jams” a permitir solos fluentes que nunca ferem o ritmo base. Entre os sopradores encontramos Arthur Blythe, no sax alto, que em “Rocks (for Cannonbal)” aproveita bem o tempo de antena num solo circular, tão Cannonbaliano como Coltraniano, mas sempre plenamente integrado no espírito. “Rhythmatism” agradará tanto aos apreciadores de Pharoah Sanders como aos de Sly Stone ou do Herbie Hancock “funky”. É jazz bem balançado (simplista, em “Center of the Earth”), mas sem grandes motivos de descoberta. O “groove” é tudo.
            Na mesma editora, Universal Sound, o trompetista Marcus Belgrave também persegue o “groove”, mas aqui o campo de manobra é mais vasto e vertical. Belgrave tocou com Mingus, McCoy Tyner, Clifford Brown (a sua grande influência) e Sun Ra. Em “Gemini” (1974), típico objecto do jazz dos anos 70, inspirado nas características do signo astrológico de Gémeos, a primeira lição a tirar vem precisamente de Sun Ra, numa “Space odyssey” que vive da manipulação cósmica de um sintetizador Moog. Apesar de a música, também neste caso, não primar pela ousadia rítmica (o “jazz rock” não passou impunemente por esta década…) e ceder pontualmente à facilidade do “funk”, o trompetista consegue ser sufi cientemente imaginativo e fazer bom uso dos próprios “clichés”. O tempo médio do “bluesy” e ambiental de “Odoms cave”, com uma intervenção de Phillip Ranelin no trombone “muted”, estabelece um interessante contraste com o resto do álbum.
            E já que falámos de Sun Ra e de John Zorn, eles fazem parte do imaginário de um dos atuais reis do jazz de Chicago, de seu nome Ken Vandermark. “Elements of Style… Exercises in Surprise” (belo título!) é a mais recente proposta do seu quinteto (Job Bishop, no trombone, Tim Daisy, na bateria, Kent Kessler, no baixo, Dave Kempis, no saxofone) e vem cheia de dedicatórias, como a John Gilmore (“sideman” de Sun Ra), Jean-Michel Basquiat, Glenn Gould e… Zu (já lá iremos). Vandermark volta a exibir as suas singularidades, angulosidades e visceralidade, sem se esquecer de trazer o “swing” na bagagem. Um arquiteto para quem o discurso livre não dispensa o extremo cuidado posto na organização e definição do “corpo”. O fluxo de ideias que é todo um contrapoder à lógica expressionista de muito do jazz negro faz pausa no extático “Intagliamento”, trabalho de tempos e lugares todo ele entregue à secção rítmica. A ausência do piano torna ainda mais carnal esta música que talvez corra apenas o risco de se deixar enredar no seu próprio, e novo, academismo. Dito de outra forma, o “som Vandermark” tornou-se o somatório de certezas e poucas ou nenhumas dúvidas. “Gylenne”, uma marcha, e os 20 minutos, bons para comparar com o andamento dos Electric Masada (quem se aventura mais, Zorn, o furacão do instante, ou Vandermark, o conceptual instantâneo?), de “Six of one”, chegam a pedir autorização à tradição para se afastarem dela. O futuro-presente dos Vandermark 5 tem história.
            Tudo se torna mais claro e as águas separam-se em “Radiale”, ainda com Vandermark como principal protagonista. O disco divide-se em duas partes distintas. Na primeira o norte-americano junta-se ao trio italiano Zu, em quatro originais que contemplam a veia mais gritante de Zorn, com o mesmo tipo de energia concentracionária e a mesma densidade de ação. Vandermark encontra em Luca T. Mai (sax barítono) uma alma gémea e, como consequência, a música por nenhum instante deixa de estar em brasa. Na segunda parte o quarteto recebe Hamid Drake (bateria) e Nate McBride (baixo) e transforma-se em Spaceways Inc, numa homenagem óbvia ao maestro de Saturno que, no final, se concretiza numa versão de “We travel the spaceways/Space is the place”. Dos restantes temas, dois têm a assinatura de George Clinton e um a dos Art Ensemble of Chicago. Se a música não perde a sua dimensão selvática, sai, porém, ainda mais reforçada a sua espessura. Duas baterias e dois baixos, mais dois saxofonistas incandescentes, são fogo posto a cada instante e apenas no tema de Sun Ra é autorizada a entrada do silêncio. Os Material e os Massacre não andavam longe destas paragens, apenas lhes faltava a autoridade de um saxofonista que sabe onde termina a loucura e começa a ordem.
            Herb Robertson, um dos inovadores do trompete das últimas décadas, às vezes parece não saber. “Certifi ed”, de 1991, outra das recuperações da sua discografia na JMT, irritantemente embalada na habitual caixa gorda com rótulo a martelo, é certamente um dos seus discos menos acessíveis e dependentes da livre improvisação. Por vezes tão esotérica que chega a ser árida. Felizmente, à terceira faixa, dizem-nos “Don’t be afraid we’re not like the others”. A secção rítmica formada por Ed Schuller e Phil Haynes permite então estruturas mais diversificadas, mas Robertson continua o mesmo homem que gosta de tocar desenfreadamente e de desestruturar o compasso. Onomatopeias, gritos, curtas sequências microtonais, induzem novos métodos de improvisação, com a inclusão de sons concretos e timbres acusmáticos na ironicamente intitulada “Seeking seeds in the blues bazar”, 17 minutos de jazz eletro-acústico que, como as “Ghostsongs” seguintes, lembram vagamente algumas estratégias dos Art Ensemble of Chicago recuperando como instrumentos musicais toda a espécie de objetos sonoros. A anedota conta que Herb Robertson se interessou pela atonalidade ao ouvir o pai assobiar canções da rádio completamente desafinado. Certo, “Certified” arranha igualmente o ouvido, nem sempre pelas razões certas.

Electric Masada
50.4
Tzadik. Distri. Ananana
8 | 10

Steve Reid
Rhytmatism
Universal Sound, distri. Sabotage
7 | 10

Marcus Belgrave
Gemini
Universal Sound, distri. Sabotage
8 | 10

The Vandermark Five
Elements of Style… Exercises in Surprise
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10

Zu/Spaceways Inc.
Radiale
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10

Herb Robertson
Certified
Winter & Winter, distri. Ananana
6 | 10