04/08/2020

Como um ferro em brasa [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 13 NOVEMBRO 2004

Se na semana passada falámos da ECM, editora do espaço e do silêncio, o jazz desta semana enferma da falta deles. Tem outros atributos que à energia pertencem: o fogo, o calor, a electricidade.

Como um ferro em brasa

No ano do seu 50º aniversário, John Zorn continua a expandir os limites da sua música no contexto de um jazz mais do que liberal e da assunção das suas origens judaicas, com os Electric Masada, num novo álbum esotericamente intitulado 50 elevado à quarta potência. Desta vez em octeto, com Marc Ribot (guitarra), Ikue Mori (“laptop”), Joey Baron (bateria) e Cyro Baptista (percussão), entre outros, Zorn envereda por um estilo de fusão que tanto recolhe elementos da música klezmer como radica no “free” de Ornette Coleman ou nas experiências de Miles Davis no “jazz rock”. “Idalah-abal” roça o progressivo e a guitarra de Ribot leva o tema para as proximidades de um “hard rock” de contornos épicos. Sobre a massa instrumental, Zorn espreme o seu saxofone alto até o fazer gritar de dor. É o Zorn mais “funky” que se pode conceber. Também o mais acessível e próximo de uma sensibilidade rock. Os 15 minutos de um dos temas mete na caldeira o “jazz rock”, melodias “yiddish”, saxofone a soprar bom “free”, piano elétrico e vozes alienígenas filtradas por computador, tudo muito “In a Silent Way” mas com “silent” substituído por “highly energetic”.
            Outro exemplar de jazz fusionista é o curioso “Rhythmatism” do baterista Steve Reid, gravado em 1975. Pouco sensível às liberdades “free”, Reid revela antes as suas raízes “soul” e o que ficou do convívio com Martha Reeves and the Vandellas, Dionne Warwick e James Brown. Reid também tocou com Miles Davis, Gary Bartz, Freddie Hubbard, Sam Rivers e Archie Shepp. E, bem impressas as marcas, Fela Kuti. É “soul jazz” onde o mais importante é a manutenção do “groove” em longas “jams” a permitir solos fluentes que nunca ferem o ritmo base. Entre os sopradores encontramos Arthur Blythe, no sax alto, que em “Rocks (for Cannonbal)” aproveita bem o tempo de antena num solo circular, tão Cannonbaliano como Coltraniano, mas sempre plenamente integrado no espírito. “Rhythmatism” agradará tanto aos apreciadores de Pharoah Sanders como aos de Sly Stone ou do Herbie Hancock “funky”. É jazz bem balançado (simplista, em “Center of the Earth”), mas sem grandes motivos de descoberta. O “groove” é tudo.
            Na mesma editora, Universal Sound, o trompetista Marcus Belgrave também persegue o “groove”, mas aqui o campo de manobra é mais vasto e vertical. Belgrave tocou com Mingus, McCoy Tyner, Clifford Brown (a sua grande influência) e Sun Ra. Em “Gemini” (1974), típico objecto do jazz dos anos 70, inspirado nas características do signo astrológico de Gémeos, a primeira lição a tirar vem precisamente de Sun Ra, numa “Space odyssey” que vive da manipulação cósmica de um sintetizador Moog. Apesar de a música, também neste caso, não primar pela ousadia rítmica (o “jazz rock” não passou impunemente por esta década…) e ceder pontualmente à facilidade do “funk”, o trompetista consegue ser sufi cientemente imaginativo e fazer bom uso dos próprios “clichés”. O tempo médio do “bluesy” e ambiental de “Odoms cave”, com uma intervenção de Phillip Ranelin no trombone “muted”, estabelece um interessante contraste com o resto do álbum.
            E já que falámos de Sun Ra e de John Zorn, eles fazem parte do imaginário de um dos atuais reis do jazz de Chicago, de seu nome Ken Vandermark. “Elements of Style… Exercises in Surprise” (belo título!) é a mais recente proposta do seu quinteto (Job Bishop, no trombone, Tim Daisy, na bateria, Kent Kessler, no baixo, Dave Kempis, no saxofone) e vem cheia de dedicatórias, como a John Gilmore (“sideman” de Sun Ra), Jean-Michel Basquiat, Glenn Gould e… Zu (já lá iremos). Vandermark volta a exibir as suas singularidades, angulosidades e visceralidade, sem se esquecer de trazer o “swing” na bagagem. Um arquiteto para quem o discurso livre não dispensa o extremo cuidado posto na organização e definição do “corpo”. O fluxo de ideias que é todo um contrapoder à lógica expressionista de muito do jazz negro faz pausa no extático “Intagliamento”, trabalho de tempos e lugares todo ele entregue à secção rítmica. A ausência do piano torna ainda mais carnal esta música que talvez corra apenas o risco de se deixar enredar no seu próprio, e novo, academismo. Dito de outra forma, o “som Vandermark” tornou-se o somatório de certezas e poucas ou nenhumas dúvidas. “Gylenne”, uma marcha, e os 20 minutos, bons para comparar com o andamento dos Electric Masada (quem se aventura mais, Zorn, o furacão do instante, ou Vandermark, o conceptual instantâneo?), de “Six of one”, chegam a pedir autorização à tradição para se afastarem dela. O futuro-presente dos Vandermark 5 tem história.
            Tudo se torna mais claro e as águas separam-se em “Radiale”, ainda com Vandermark como principal protagonista. O disco divide-se em duas partes distintas. Na primeira o norte-americano junta-se ao trio italiano Zu, em quatro originais que contemplam a veia mais gritante de Zorn, com o mesmo tipo de energia concentracionária e a mesma densidade de ação. Vandermark encontra em Luca T. Mai (sax barítono) uma alma gémea e, como consequência, a música por nenhum instante deixa de estar em brasa. Na segunda parte o quarteto recebe Hamid Drake (bateria) e Nate McBride (baixo) e transforma-se em Spaceways Inc, numa homenagem óbvia ao maestro de Saturno que, no final, se concretiza numa versão de “We travel the spaceways/Space is the place”. Dos restantes temas, dois têm a assinatura de George Clinton e um a dos Art Ensemble of Chicago. Se a música não perde a sua dimensão selvática, sai, porém, ainda mais reforçada a sua espessura. Duas baterias e dois baixos, mais dois saxofonistas incandescentes, são fogo posto a cada instante e apenas no tema de Sun Ra é autorizada a entrada do silêncio. Os Material e os Massacre não andavam longe destas paragens, apenas lhes faltava a autoridade de um saxofonista que sabe onde termina a loucura e começa a ordem.
            Herb Robertson, um dos inovadores do trompete das últimas décadas, às vezes parece não saber. “Certifi ed”, de 1991, outra das recuperações da sua discografia na JMT, irritantemente embalada na habitual caixa gorda com rótulo a martelo, é certamente um dos seus discos menos acessíveis e dependentes da livre improvisação. Por vezes tão esotérica que chega a ser árida. Felizmente, à terceira faixa, dizem-nos “Don’t be afraid we’re not like the others”. A secção rítmica formada por Ed Schuller e Phil Haynes permite então estruturas mais diversificadas, mas Robertson continua o mesmo homem que gosta de tocar desenfreadamente e de desestruturar o compasso. Onomatopeias, gritos, curtas sequências microtonais, induzem novos métodos de improvisação, com a inclusão de sons concretos e timbres acusmáticos na ironicamente intitulada “Seeking seeds in the blues bazar”, 17 minutos de jazz eletro-acústico que, como as “Ghostsongs” seguintes, lembram vagamente algumas estratégias dos Art Ensemble of Chicago recuperando como instrumentos musicais toda a espécie de objetos sonoros. A anedota conta que Herb Robertson se interessou pela atonalidade ao ouvir o pai assobiar canções da rádio completamente desafinado. Certo, “Certified” arranha igualmente o ouvido, nem sempre pelas razões certas.

Electric Masada
50.4
Tzadik. Distri. Ananana
8 | 10

Steve Reid
Rhytmatism
Universal Sound, distri. Sabotage
7 | 10

Marcus Belgrave
Gemini
Universal Sound, distri. Sabotage
8 | 10

The Vandermark Five
Elements of Style… Exercises in Surprise
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10

Zu/Spaceways Inc.
Radiale
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10

Herb Robertson
Certified
Winter & Winter, distri. Ananana
6 | 10

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