04/08/2020

Boa noite de jazz inglês com Kenny Wheeler


CULTURA
DOMINGO, 14 NOV 2004

Crítica Música

Boa noite de jazz inglês com Kenny Wheeler

Kenny Wheeler com “big band”
LISBOA Culturgest
Dia 12
Sala a dois terços

Kenny Wheeler é canadiano, mas o jazz inglês é o seu “habitat” natural. Sexta-feira, na Culturgest, numa das extensões a Sul do Guimarães Jazz (onde tinha tocado na véspera), o trompetista dirigiu a “big band” que em anteriores ocasiões teve a chefiá-la Michael Gibbs, Maria Schneider, Bob Mintzer e Gianluigi Trovesi.
Wheeler deu-lhe a típica coloração do jazz inglês que no passado assumiu foros de pioneirismo. É um jazz caracterizado pela disciplina, mas não dirigido com mão de ferro, e por notas de melancolia que, no caso de Wheeler, ganharam pinceladas peculiares.
No início, a música de Wheeler teve o formato de septeto, com a pianista Nathalie Loriers a criar o ambiente e o trompetista a passeá-lo com os seus timbres de veludo. Atrás deles a bateria entretinha-se em jogos de miniatura com a percussão, e Bernardo Moreira soltava com segurança e boa articulação as notas graves do contrabaixo. Nguyen Lê, o guitarrista, esteve também em ação neste início do concerto, desta vez muito mais discreto do que no ano passado com Trovesi.
Foram-se as explosões eletrónicas de Jimi Hendrix para ficar um discurso mais contido, reminiscente do suave torpor de John Scofield. Julian Argüelles mostrou no sax tenor o significado do termo “secura”. Tudo pausado e um pouco triste. Depois juntou-se-lhes a convidada Norma Winstone. Não é a melhor cantora do mundo, mas vale a pena escutá-la num álbum como “Edge of Time” (e não “I’m the One” como anteriormente escrevemos, mil perdões, esse é de Annette Peacock...) e a voz começou por mostrar-se ainda mais fria do que o habitual. Norma cultiva a articulação e uma certa luminosidade velada em detrimento da expressividade emocional.
A espiritualidade e a força do blues são conceitos que lhe são alheios e tudo se passa ao nível de tessituras milimetricamente urdidas no cérebro. A emoção vem com as palavras, e nas impercetíveis modulações, bem como dos tons escolhidos pelo compositor. Foi bonito ouvi-la cantar “Everybody’s song but my own”, mas tanta tristeza tinha que acabar. Mesmo que para isso fosse necessário esquecer as indicações dadas por Wheeler. O homem pode ter pulmão para soprar com brilho no trompete, mas a falar pareceu estar prestes a ir desta para melhor.
Finalmente os restantes elementos da orquestra apareceram e a música aqueceu. As cores espalharam-se pela sala e sucederam-se curtos solos de quase todos. Mais tenores, alto, flauta e trombones vieram à boca de cena fazer as suas intervenções, mas foram todas solos de pouca dura.
A peça de resistência foi uma longa “suite” na qual Wheeler mostrou a gama completa das suas virtudes e influências como compositor. Norma, a voz já mais lubrificada e a soltar-se com agilidade no “scat”, cantou “a capella” em modo quase oriental e a fazer lembrar a sua participação nos Azimuth, houve uma secção “free” que não deixou de evocar o trabalho do trompetista com a Globe Unity Orchestra e, num dos melhores momentos da noite, os cinco saxofonistas entregaram-se a uma construção contrapontística matemática digna de Anthony Braxton, outro dos companheiros de estrada de Wheeler.
A preencher esses picos o som do coletivo esteve pujante, em crescendo, e dominado pelo tal balanço inglês que tem pouco a ver com o “swing” das grandes formações de músicos negros. Kenny Wheeler desenhou o concerto como um sólido edifício, dos alicerces até à cúpula, num todo coeso mas que só na parte final chegou a ser entusiasmante. Todavia, o público não pediu “encore”.

EM RESUMO
O bom jazz inglês em formato grande teve em Kenny Wheeler um bom maestro e compositor.
A voz de Norma Winstone, mais do que um sentimento, foi uma ideia

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