31/12/2014

O flautista funâmbulo [Jethro Tull]



MÚSICAS

JETHRO TULL CHEGAM COM 20 ANOS DE ATRASO A PORTUGAL

O FLAUTISTA FUNÂMBULO

SERÁ QUE IAN ANDERSON CONTINUA A TOCAR FLAUTA APOIADO APENAS NUMA PERNA, COMO FAZIA NOS ANOS 60 E 70, QUANDO OS JETHRO TULL ERAM UM DOS GRUPOS MAIS DECENTES DO ROCK PROGRESSIVO? A RESPOSTA SERÁ DADA ESTE FIM-DE-SEMANA, EM LISBOA E NO PORTO. MAS MESMO QUE A PERNA AINDA AGUENTE, NÃO É DE PREVER QUE TOQUEM “THICK AS A BRICK”.

À SEMELHANÇA dos Yes, os Jethro Tull estreiam-se ao vivo em Portugal com duas décadas de atraso. O que o público português irá testemunhar no próximo domingo no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, e na 2ª feira no Coliseu do Porto, será, como aconteceu com os Yes, a capacidade de sobrevivência de uma banda que durante dez anos, entre 1968 e 1978, cavalgou na crista da onda do rock britânico. Falta confirmar se ainda estão dentro do prazo de validade.
            Os Yes passaram no exame. Com os Tull, como será? Aconteça o que acontecer, o gigantesco recinto do Parque das Nações arrisca-se a ficar conhecido, sem desprimor para os visados, como um Lar para a Terceira Idade dos Anderson. Primeiro foi Jon, o místico vocalista dos Yes, agora será Ian, flautista louco dos Jethro Tull.
            Os Jethro Tull, como inúmeros outros grupos da época, começaram pelo “rhythm ‘n’ blues” antes de se lançarem nos voos mais altos do rock progressivo. Tinham em Ian Anderson um líder carismático, figura de vagabundo letrado, amante da velha Inglaterra rural e excêntrico como só os súbditos de Sua Majestade sabem ser. Era um exímio flautista, não só pelas capacidades técnicas que exibia como pela habilidade que costumava pôr em prática nos concertos: tocava ao pé coxinho, isto é, apoiado numa só perna. Era assim que solava, em temas de jazz como “Serenate to a cuckoo”, de Roland Kirk, ou no tom cataléptico de “Locomotive breath”. Em suma, um verdadeiro “show man”.
            “This Was”, estreia discográfica dos Jethro Tull, foi editado em 1968 e subiu rapidamente ao Top 10. “Stand up”, de 1969 e “Benefit”, de 1970, asseguraram a transição pacífica para a floresta do Progressivo mas foi com “Aqualung” (1971) que o grupo saltou em definitivo para as primeiras páginas, num álbum conceptual cuja capa fazia as delícias de qualquer artista gráfico e onde os Jethro Tull lançavam um ataque feroz às religiões institucionalizadas.
            Era a época dourada do Progressivo e os Jethro Tull, com uma formação em constante mutação cujas saídas deram origem a grupos como os Blodwyn Pig, Wild Turkey e Mick Abrahams Band, aproveitaram, perdendo em definitivo o tino para assinarem dois dos trabalhos monumentais dos anos 70: “Thick as a Brick” e “Passion Play”. Exageraram ao ponto de criarem para a capa do primeiro a edição completa de um jornal fictício onde se noticiava a pretensa atribuição de um prémio literário à obra de um menino-prodígio. A “obra”, um poema épico, seria “aproveitada” pelos Tull como letra para a longa “suite” que é “Thick as a Brick”. “Passion Play” era ainda mais sofisticado, outra peça de 40 minutos que os Jethro Tull encheram de “nonsense” e fantasia.

Degolados pelo punk

            Nesta altura Ian Anderson tomava-se por um menestrel dos tempos modernos e o seu amor pelos ritos da velha Albion que remontavam à Idade Média, emprestou à safe seguinte do grupo um cunho acústico com raízes na folk. Desta fase resultaram três belos trabalhos: “Minstrel in the Gallery” (1975), “Songs from the Wood” (1977) e “Heavy Horses” (1978), com os mais elétricos “War Child” (1974) e “Too Old to Rock ‘n’ Roll, Too Young to Die” (1976), de permeio.
            Depois, aconteceu aos Jethro Tull o mesmo que a quase todos os grupos com a mesma dimensão mastodôntica que não souberam, ou não quiseram, acordar do sonho: foram degolados pelo punk. Muitos sobreviveram, é certo, mas a passagem do tempo revelou-se fatal para a maior parte. Como os Yes, os Moody Blues ou os Pink Floyd, os Jethro Tull atravessaram os anos 80 para entrarem nos 90 de muletas. Alguns, como os Yes, conseguiram reciclar-se. Os Jethro Tull também não se saíram mal de todo, introduzindo a pop e a eletrónica nos salões do seu velho palacete.
            No próximo fim-de-semana se verá se a força da alma sobreviveu à fadiga da perna. Ian Anderson, o flautista louco, lá estará para esclarecer as dúvidas e fazer reviver uma parte de um passado que chegou a ser brilhante.

JETHRO TULL (primeira parte com Os Corvos)
Lisboa, Pavilhão Atlântico, Dia 5, às 21h
Bilhetes 3500$00 e 5500$00
Porto, Coliseu, Dia 6, às 21h
Bilhetes 3500$00 e 6500$00


ARTES | sexta-feira, 3 novembro 2000

Um músico usa tudo, até uma lupa [Sérgio Godinho]



ANTEVISÕES

SÉRGIO GODINHO APRESENTA, EM NOVEMBRO, NOVO ÁLBUM, “LUPA”, EM LISBOA E NO PORTO

UM MÚSICO USA TUDO, ATÉ UMA LUPA

PARA SÉRGIO GODINHO, O ÚLTIMO ÁLBUM E O ÚLTIMO ESPETÁCULO SÃO SEMPRE OS PRIMEIROS. É ESTE O SEU SEGREDO E O SEGREDO DA ETERNIDADE. DAS PEQUENAS E GRANDES HISTÓRIAS QUE O MÚSICO VEM CANTANDO HÁ QUASE 30 ANOS. NO PRINCÍPIO DE NOVEMBRO, LISBOA E PORTO VÃO PODER OBSERVAR À “LUPA”, E EM PORMENOR, OS TEXTOS, OS SONS E AS IMAGENS.

SÉRGIO GODINHO é o mais importante cantautor português vivo. Que me perdoem José Mário Branco, Fausto, Vitorino e demais nomes da mesma geração cuja relevância no desenvolvimento da música popular portuguesa nas últimas três décadas é inquestionável. Mas nenhum deles apresenta uma obra com a consistência, em termos de quantidade, qualidade e regularidade de produção, da do autor de “Os Sobreviventes”.
            Viajante das palavras, sonoplasta das emoções, contador de histórias, cinéfilo dos sons, artesão dos pequenos gestos íntimos, arquiteto das grandes catedrais do sentimento, júri das estrelas, tão coerente nos princípios que defende com independente na forma como, sobretudo, não se deixa prender a si próprio, Sérgio Godinho caminha desde 1971, ano em que gravou o seu álbum de estreia, “Os Sobreviventes”, ao nosso lado. As suas canções, com as histórias que nelas passam a maior ou menor velocidade, têm sido as nossas, ordenadas segundo a lógica desordenada da vida e arrumadas com todo o cuidado na vitrina através da qual a alma olha para o lado de fora.

Sobrevivente permanente

            Tem sido sempre assim, ao longo dos 15 álbuns que o músico já gravou, nas centenas de espetáculos dados em Portugal e no estrangeiro, em todos os projetos em que se tem envolvido, ligados à música, ao cinema, ao teatro e à televisão. Sérgio Godinho tem sido um dos caminhos mais percorridos pela música portuguesa nos últimos 30 anos. Com múltiplos desvios. E chegadas a lugares de descoberta.
            Nos próximos dias 2, 3 e 4 de Novembro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e no dia 10, no Coliseu do Porto, Sérgio Godinho fará a apresentação ao vivo do seu mais recente álbum, intitulado “Lupa”.
            Sérgio Godinho integrava no início dos anos 70 o grupo de jovens compositores que giravam em redor de José Afonso. Mas José Afonso não se considerava o centro de coisa nenhuma e proclamava que eles, os novos, é que estavam a fazer coisas diferentes e interessantes. Nessa época Sérgio chegou a escrever, a pedido do próprio Zeca, uma letra para “Maio, maduro Maio” mas o autor de “Grândola” esqueceu-se e a letra acabou por ir parar às mãos de José Mário Branco que lhe deu um arranjo original.
            Zeca, entretanto, foi-se, deixando um lugar (ou vários lugares?) vagos na música popular portuguesa. Ninguém poderia nem pôde preenchê-lo mas o mestre tinha razão. Os novos souberam estar à altura, partindo cada um para a sua aventura pessoal.
            A aventura de Sérgio foi, continua a ser, imprevisível. Forçado pela ditadura, partiu para Paris, onde compôs as suas primeiras canções, influenciado pela “chanson française” mas também pelo rock e pela pop que chegavam a França com rapidez vindos do outro lado da Mancha. Com a edição de “Os Sobreviventes”, em 1971, logo seguido, no ano seguinte, por “Pré-Histórias”, ambos gravados em França, a MPP tomava novo rumo.
            A partir daí Sérgio Godinho cresceu. Mais do que o país, que parecia minguar. A costela política à qual era impossível fugir nesses tempos de luta, de quem decidira lutar, estava evidentemente presente nos discos, mas o panfleto era ofuscado pelo outro lado. O lado de dentro de canções que falavam do lado de dentro das pessoas.
            Sérgio inventou personagens e situações que se tornaram reais na nossa imaginação, encontrando eco e refractando-se nas vivências pessoais de cada um. Falou do país com ironia, algumas vezes com sarcasmo, desenfiando-lhe o barrete, mas falou sobretudo dos pequenos e grandes dramas dos seus habitantes, tantos deles errantes, tantos deles abandonados, tantos deles perdidos nas contradições de uma sociedade também ela contraditória. Com humor e ternura. As palavras foram atrás. Bem como os álbuns: “À Queima-Rupa” (1974), “De Pequenino se Torce o Destino” (1976), “Pano Cru” (obra prima absoluta da música portuguesa, 1978), “Campolide” (1979), “Canto da Boca” (1980), “Coincidências” (1983), “Salão de Festas” (1984), “Na Vida Real” (1986), “Aos Amores” (1989), “Escritor de Canções” (um dos grandes discos ao vivo de sempre da MPP, 1990), “Tinta Permanente” (1993), “Domingo no Mundo” (1997). Todos indispensáveis. Mosaico e caleidoscópio. Espelho e punhal. Luz e sombra. Confessionário e palco de teatro. Holofote e bastidores. Quarto e sala de estar.
            Conhece-se o talento de Sérgio para fazer as palavras cantarem. É essa uma das marcas do seu génio. A maneira como consegue tornar o português numa língua tão “cantabile” como o italiano. Se José Mário Branco é o arranjador por excelência, o manipulador de músicas e ideias que carrega sobre o si o peso do drama de ser português e o peso das palavras que podem matar, Sérgio é o observador-jogador que não se deixa tocar. Talvez por isso a sua música e as suas palavras permaneçam hoje tão vivas e atuantes como sempre. Porque Sérgio as solta, insuflando-lhes vida própria. José Mário Branco usa as palavras para falar. Sérgio Godinho deixa que elas falem por si.
            “Sou um músico. E na música, englobo as palavras – nesse aspeto sou um poeta; englobo o estar num palco – e nesse aspeto sou um cantor; e sou também um compositor, porque também faço melodias e ritmos a partir de coisas que vou escolhendo. Um músico usa tudo, as palavras, o palco, não consigo separar… diz de si próprio Sérgio Godinho. As palavras falam por si.
            Os próximos dias 2, 3, 4 e 10 serão, portanto, uma vez mais, os “primeiros dias do resto das nossas vidas”. É por isso que a última etapa da carreira de Sérgio Godinho é sempre a primeira.




ARTES | sexta-feira, 13 outubro 2000

A morte em direto [Meira Asher]

MÚSICAS

MEIRA ASHER APRESENTA-SE NO SÁBADO, ÀS 21H30, NO FESTIVAL “Ó DA GUARDA”

A MORTE EM DIRETO

MUTILAÇÕES, HORROR, INCESTO, MASTURBAÇÃO, O HOLOCAUSTO NAZI TRANSFORMADO EM MUSIC-HALL. A FEIRA DA MORTE, AO VIVO E EM DIRETO. MEIRA ASHER, A DIVA DO INFERNO, APRESENTA-SE PELA SEGUNDA VEZ EM PORTUGAL, NO FESTIVAL “Ó DA GUARDA”. NO FINAL FAR-SE-Á A CONTAGEM DOS SOBREVIVENTES.

CITAÇÃO 1: “Durante muito tempo toquei nos seios e na vagina. Fiquei dominada pela emoção. Senti-me envergonhada. A descoberta do meu corpo passava por esse encontro das minhas mãos com a vagina”.
            Citação 2, de Job, 2:4-5: “Satanás retorquiu ao Senhor: Um homem é capaz de dar tudo o que tem, até a sua própria pele, para salvar a sua vida. Mas experimenta levantar a Tua mão contra ele, faz com ele sofra e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente”.
            Citação 3. “Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder, até nos tornarmos no vencedor absoluto”.
            O PÚBLICO entrevistou duas vezes a cantora israelita Meira Asher (Fevereiro de 1997 e Junho de 1999, esta última por ocasião da sua primeira atuação ao vivo em Portugal, no Festival Ritmos do Mundo, no Porto) e de ambas ficou com os cabelos em pé.
            Através destas três citações é possível vislumbrar o percurso desta artista que faz do mal o seu campo de trabalho: da vergonha para a revolta e desta para a assunção do poder. Mas se tais palavras são reveladoras de uma deambulação física e psicológica pelo horror e pelo sofrimento que a obra musical mal consegue exorcizar, ao mesmo tempo que indiciam um perturbante paralelismo com a evolução do nazismo (é ainda Meira Asher quem afirma que o “torturado tende a transformar-se no torturador”), a música desta israelita marcada pela memória do holocausto vai ainda mais além.
            Meira Asher, como Diamanda Galas, é uma diva do inferno. Nela a Bíblia – que usou como arma apocalíptica nos seus dois álbuns editados até ao momento, “Dissected”, de 1997, e “Spears into Hooks”, do ano passado – transmuta-se num livro negro de pragas. Como Diamanda Galas, a israelita profetiza a morte e o caos, revolvendo-se na abordagem de temáticas como a sida, a masturbação feminina e o incesto. Mas enquanto Galas encarcera a ópera, os “blues” e o “gospel” no quarto de lua do Romantismo, Meira usa maquinaria eletrónica pesada, desfaz-se na podridão e clama que o Apocalipse é agora.
            De “Dissected”, dissecação da masturbação, da tortura, da mutilação, da auto-castração e dos horrores da Intifada, representava ainda a falsa segurança de uma inovação que traía a essência da música étnica, ao automatizá-la na hipnose da tecno, “Spears into Hooks” é a carnificina, o caos, o êxtase da morte.
            “Spears into Hooks” faz o relatório detalhado do mal. Nele a cantora socorre-se de samples com gravações de mulheres e crianças atingidas por projéteis, acompanhados pela descrição dos seus efeitos e das várias gradações da dor sentida pelas vítimas. Mas é num tema como “Weekend away break” que a noite se abate.
            “Weekend away break” aponta os holofotes ao campo de concentração de Birkenau descrevendo-o como um campo de férias. Sobre uma valsa de Strauss e uma canção de Marlene Dietrich, o horror esmaga e toda a esperança na humanidade se esvai. “Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã é possível observar pessoas apanhando morangos/Outra atração: elas não suportam o seu cheiro a decadência”. Postal de “boas-vindas a um lugar criado num momento de inspiração”. O assassínio científico em massa como uma das belas-artes. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/E vais esquecer-te do pequeno-almoço porque irás experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te, como opção, a sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso”.
            Por fim, a própria memória morre, numa adaptação de “Se Questo é un Uomo”, de Primo Levi. Sobre rajadas de metralhadora, explosões, silvos de gás e vidro estilhaçado uma mulher grita suplicando pelo esquecimento: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/Mas agora é como se nunca tivesse existido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos finalmente descansar e nos erguermos de novo/Não imprimiremos nada do que vivemos aos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais – para todo o sempre”.
            No vórtice do desespero, torturado e torturador unidos numa só pessoa, é a vez do poder libertar a energia de Tanatos. Meira grita: “Morram! Morram! Morram!” O tema do espetáculo que a israelita (voz, sampler, percussão e objetos) apresentará na Guarda – acompanhada por Guy Harris (voz, computadores, flautas e objetos), Riccardo Massari (voz, gira-discos, acordeão e objetos) e Jackie Shemesh (luz) – é, sem disfarces, a morte. No Porto, houve quem não aguentasse e fugisse. Para a Guarda, convirá levar defesas.

MEIRA ASHER
Guarda, Pavilhão de adubos para todas as culturas do Barracão, sáb., 21h30.
Bilhetes: 1000$00
Entrada permanente para todos os dias do festival: 1500$00


ARTES | sexta-feira, 29 setembro 2000

29/12/2014

A arte do desastre [Pere Ubu]



MÚSICA

PERE UBU NA AULA MAGNA DE LISBOA

A ARTE DO DESASTRE

A MÚSICA DOS PERE UBU É UM MANUAL DE DOENÇAS E FOBIAS DESTE SÉCULO: HISTERIA, MEDO, ESQUIZOFRENIA, AUTISMO. “SOMOS A MEMBRANA QUE SEPARA O INDIVÍDUO DO MUNDO”, PROCLAMOU CERTA VEZ DAVID THOMAS, LÍDER DA BANDA. PASSADOS 25 ANOS SOBRE A SUA FORMAÇÃO, OS PERE UBU CONTINUAM COM INSÓNIAS NA SALA DE CUIDADOS INTENSIVOS. “SOMOS DEMASIADO ESTÚPIDOS PARA SAIR DISTO E FALTA-NOS A IMAGINAÇÃO PARA VISLUMBRARMOS UM FUTURO MELHOR”. A CATÁSTROFE COMO FORMA SUPREMA DE ARTE. LISBOA VAI PODER PARTICIPAR.

NÃO EXISTE explicação para a existência de pessoas como David Thomas nem de uma banda como os Pere Ubu, nascida em 1975 com base na visão do surrealista Alfred Jerry, no meio da fuligem, do óleo industrial e dos resíduos de radioatividade da cidade de Cleveland, nos EUA. Numa das faixas do álbum “Dub Housing”, uma das várias obras-primas assinadas pelo grupo, assim consideradas numa escala de valores que começa na paranóia e termina na iluminação, David grita que “está uma mosca na pomada”. A mosca nunca mais saiu de lá. Na próxima terça-feira, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, convirá levar um mata-moscas ou um spray de inseticida. Nunca se sabe.
            Nunca se sabe, nunca se soube exatamente o que os Pere Ubu pretendem ou pretenderam dizer. David Thomas, denominador comum de uma formação várias vezes em perigo de extinção, é parco em palavras e perito em desarmar quem insiste em ver nele o ideólogo da geração americana do pós-punk. O PÚBLICO já sentiu, de resto, na pele os sintomas da alergia, em duas tentativas de entrevista. Os Pere Ubu ocupam hoje um lugar de destaque no pop alternativa? “Não sei, não é problema meu, não sou pago para ter essas ideias”. Mas o rock, o que é o rock, senhor Thomas? Pergunta infeliz. “É uma mudança de uma grande caixa preta de um extremo da cidade para o outro, na mala do carro”. Não se estava mesmo a ver?
            É que para o senhor das moscas: “A arte existe para revelar segredos e, ao mesmo tempo, para os preservar”.

Estilhaços

            Foi quase em segredo que se formaram os Pere Ubu. Em 1975, na cidade industrial de Cleveland, das cinzas dos Rocket from the Tombs e dos Foggy and the Shrimps. O punk estava prestes a deflagrar dos dois lados do Atlântico e os Pere Ubu estavam preparados para cavalgar na sua crista. Para tal bastava, dizia Thomas, “juntar um grupo de pessoas únicas” pois apenas “pessoas únicas podem fazer música única, saibam ou não tocar um instrumento”. Frase adequada ao espírito da época que o vocalista dos Pere Ubu logo trataria de contradizer, quando o punk lhe mordeu as canelas: “Estávamos à beira de um admirável mundo novo e depois aconteceu o punk. Foi a regressão, a vitória do rock instituído, da mentalidade corporativa. Convém lembrar que o punk foi inventado para vender roupas. A cultura foi arrancada dos poetas para ser entregue a bárbaros”.
            David Thomas é simultaneamente um bárbaro e um poeta. O que acontece é que às vezes torna-se difícil distinguir quando é uma coisa ou a outra. Quanto aos Pere Ubu, a sua música era ao mesmo tempo grandiosa e impenetrável, terna como uma pomba, rude como um insulto, afiada como arame farpado, uma galáxia em expansão fechada numa garagem em ruínas. Uma das canções do álbum de estreia “The Modern Dance”, editado em 1978, é a banda-sonora de uma história de amor, com o ruído de garrafas de vidro a serem despedaçadas contra uma parede de cimento. Funciona. Assusta. Como uma profecia.

Dança moderna

            “30 Seconds over Tokyo”, em EP, e o single “Final Solution” já tinham feito soar o sinal de alarme. Mas poucos estariam preparados para a onda de choque provocada por “The Modern Dance”, manifesto do niilismo de uma época cujos efeitos serão difíceis de dissipar.
            Os Pere Ubu viviam nessa época num antigo clube de prostitutas e conseguiam encher com 50 pessoas o “Pirate’s Cove”, um bar-armazém de marinheiros edificado no local onde viria a emergir o império do milionário Rockefeller. Para o proprietário do “Pirate’s Cove”, Jim Dowd, o risco era mínimo. O próprio grupo decidira chamar aos seus concertos “Disastodromes”. Menos que nada era impossível. “The Modern Dance” rebentou-nos nas mãos.
            Ao lado de Thomas, tocavam em “The Modern Dance” Tom Herman, na guitarra, Allen Ravenstine, no sintetizador, Tony Mainmone, no baixo, e Scott Krauss, na bateria. Permaneceriam pouco tempo juntos. Seria sina dos Pere Ubu mudarem de músicos como de camisa. A chama, essa, mantinha-se acesa na visão de David Thomas. A mosca continuava na pomada.
            “Dub Housing” (1978), “New Picnic Time” (1979), “The Art of Walking” (1980) e “Song of the Bailing Man” (1982), atraíram uma legião de fanáticos mas passaram ao lado do grande público. Exausto, o grupo implode. Cessam as gravações. David Thomas prossegue, entretanto, uma carreira a solo, alinhando ao lado da cena downtown de Nova Iorque, juntando-se a “progressivos” como Chris Cutler ou a um herói da “folk” como Richard Thompson, e inventando grupos como os Pedestrians, Wooden Birds, The Pale Boys e – no novo álbum, “Bay City” (inspirado nas novelas policiais de Raymond Chandler) – os Foreigners, constituído por músicos noruegueses. Sem nunca deixar de cultivar o gosto pela “surf music” dos Beach Boys. Outra mania.
            Precisamente num concerto a solo de Thomas com os Wooden Birds, realizado em 1985 na cidade-natal de Cleveland, o nome dos Pere Ubu voltou a fazer sentido. Mainmone e Ravenstine eram ambos Wooden Birds. Scott Krauss saiu da assistência em direção ao palco. “Ele caminhava como um pato, tinha o ar de um pato e grasnava como um pato. Logo, era mesmo um pato”, lembra David Thomas. O pato juntou-se aos pássaros de madeira e os Pere Ubu ressuscitaram para mais uma fase atribulada do sua vida, da qual resultariam até hoje os álbuns “The Tenement Year” (1988), “Cloudland” (1989), “Worlds in Collision” (1991), Ray Gun Suitase” (1995) e “Pennsylvania” (1998), e a realização, em Londres, de um mega-espetáculo inspirado no conceito “Disastodrome”. Thomas criou, por seu lado, o musical “Mirror Man”, com as participações de Peter Hammill e Linda Thompson.
            É duvidoso que ele e os seus pares enverguem o “tuxedo” para atuar na noite da próxima terça-feira, na Reitoria da Universidade de Lisboa. Seja como for, eles já chumbaram. Com distinção.


PERE UBU
LISBOA Aula Magna da Universidade de Lisboa, dia 26, às 21h30.
Bilhetes a 4500$ e 6000$.


ARTES | sexta-feira, 22 setembro 2000