QUARTA-FEIRA,
20 JULHO 2000 cultura
Cristina
Branco e Mafalda Arnauth no Festival Sete Sóis Sete Luas em Pontedera
Marquesas
do fado em Itália
No cenário da
“villa” do marquês Malaspina, “amici della musica”, Cristina Branco e Mafalda
Arnauth mostraram ao público de Pontedera duas formas distintas de cantar e
apresentar o fado. A sofisticação etérea de Cristina e o sangue de Mafalda
foram duas faces de um mesmo rosto que, depois da morte de Amália, volta a ter
razões para sorrir.
Uma fala devagar e baixo.
Insinua melodias que vêm de longe, envoltas numa luz dourada. Acende-se devagar
uma graduação de estrela. A outra relampeja-lhe a alma tingida de sangue.
Encandeia. Não se acende, arde. Cristina Branco foi a fada que pousou ao de
leve trazendo a saudade como uma folha suspensa no vento. Mafalda Arnauth
descerrou as cortinas de Lisboa de rompante, encarando de frente a fera,
dando-se sem reservas ao instante.
Fascinante
foi ver o modo como as duas encaram a forma de apresentação do fado num
espetáculo ao vivo. Em dias seguidos, Cristina na segunda, Mafalda na terça, e
no mesmo local, a Villa Malaspina, pertencente ao marquês e marquesa Torrigiani
Malaspina, em Pontedera, o público toscano teve oportunidade de ouvir duas
vozes fabulosas que, todavia, vestem figurinos diferentes.
Cristina
Branco evidenciou uma maturidade que lhe advém de uma carreira que nos últimos
anos se tem vindo a consolidar na Holanda, país onde gravou todos os seus
álbuns, incluindo “Post-Scriptum” e o novo “Cristina Branco canta Slaueroff”,
com poemas assinados pelo poeta holandês com este nome, amante do fado e da
saudade. Sente-se a distância e, talvez por isso, ouve-se o fado de Cristina
Branco como se viesse de longe, numa barca que suavemente vem chegando.
O
espetáculo que apresentou em Pontedera, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete
Luas, não se impôs, insinuou-se. Como se insinuaram as notas de “Verdes anos”,
de Carlos Paredes, na rapsódia instrumental de abertura que instantaneamente
revelou um grande música, Custódio Castelo, na guitarra portuguesa, acompanhado
de Alexandre Martins, na viola, e Fernando Maia, no baixo. É ele quem compõe e
arranja a maior parte dos fados para a voz de Cristina. Foi ele que ao longo do
concerto, e utilizando as suas palavras, foi “abrindo as portas”, umas
“grandes”, outras “pequenas”, por onde a alma e o canto pudessem voar.
Custódio
Castelo, que desde o início tem acompanhado o percurso musical da jovem
fadista, possui o dom raro de ser músico (o que o distingue desde logo dos que
simplesmente fazem música…), de criar a partir da escuta e do silêncio,
entregando os gestos e a técnica às diretivas dos deuses. Fados como “Palavras
proibidas” ou “Fado tango”, ambos da sua autoria, apontam um dos futuros
viáveis de uma música que apenas conseguirá sobreviver enquanto conservar a
magia. E os fados de Custódio Castelo têm-na.
Uma
segunda rapsódia consagrou os três instrumentistas. “Aren’t they great?”,
comentou Cristina no mesmo inglês com que se dirigiu durante toda a noite ao
público toscano, único senão de uma noite sem mácula que até teve o pormenor
simpático da fadista cantar em público o “Parabéns a você” para a
aniversariante, a marquesa anfitriã…
Cristina
Branco é a fada que materializa o encanto. Através da sua voz, as melodias do
guitarrista e as palavras de Pedro Homem de Melo, Alexandre O’Neill, Afonso
Lopes Vieira, Miguel Torga, Manuel Alegre, Amália e David-Mourão Ferreira,
ganham asas, diferentes peles, subtis sentidos. No “Fado Primavera”, com poema
de David-Mourão Ferreira, Cristina Branco arrebatou por fim os bravos de uma
plateia que no “encore”, “Tudo isto é fado”, quase sem se dar conta, já cantava
em coro com ela.
Sem
microfone, á boca do palco, Cristina Branco revelava num murmúrio o último
segredo da sua relação com o fado: “É tudo o que eu digo e tudo o que eu não
sei dizer”.
Coisas escuras
Terça-feira
foi noite de outras cores. Depois de se ouvir uma vez mais, através das
colunas, o tema-que-parece-dos-Radio Tarifa composto por Rão Kyao de propósito
para o Sete Sóis Sete Luas que o festival adotou como hino, Mafalda Arnauth fez
correr um rio de sangue.
Ao
contrário da sobriedade do vestido negro que Cristina Branco trouxera na
véspera a fadista que recentemente lançou o seu álbum homónimo de estreia
surgiu com um modelo em vermelho sanguíneo com a assinatura de Paulo Matos. A
música seguiu a mesma tonalidade.
Mafalda
Arnauth não avança por fases, como faz Cristina Branco. Com ela é tudo ou nada,
a emoção não pede licença para entrar, não chega como uma brisa mas como um
relâmpago. Mafalda expõe-se mais, é mais portuguesa que Cristina nessa nudez
sem defesas. Mas se o seu fado é menos universalista estará contudo mas próximo
da tragédia e arreigado à tradição. Não é o oceano da “world music” mas o Tejo.
Sem em Cristina Branco há nuvens, pedrarias, sereias, mágoas de água, em
Mafalda Arnauth há poços, redemoinhos, bruxas, ventanias, feridas fundas. Na
sua voz ecoam Amália, Alfama, olhos negros, vielas, coisas escuras que não
podem ser ditas.
Repasto no final
Mafalda,
acompanhada por Paulo Valentim à guitarra, José António Mendes à viola e Paulo
Paz no baixo, cantou, entre outros, “Fado sem fim”, “Fadista louco”, “Alfama”,
“Fado antigo”, “No teu poema”… E, para felicidade de todos, de Amália, “Foi
Deus” e, já no “encore”, “Estranha forma de vida”.
Ela
não gosta, e faz bem, de comparações. Mas Amália, lá onde está agora, mesmo que
a contragosto (também ela não gostava de comparações…), terá decerto acenado
com a alma a dizer que sim. Quem contribuiu para a felicidade, tanto de
Cristina Branco como de Mafalda Arnauth, e das respetivas comitivas (e, já
agora, da nossa…), foi a senhora Sofia Forsi que, em sua casa, mesmo por baixo
de uma antiga filial do Partido Comunista, fez questão de confecionar e
oferecer o melhor da cozinha e hospitalidade toscanas. Ambas imensas. Os
estômagos já pediam clemência e gritavam: “Basta!” Ou melhor: “Pasta”!
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