09/12/2014

Marquesas do fado em Itália [Cristina Branco + Mafalda Arnauth]



QUARTA-FEIRA, 20 JULHO 2000 cultura

Cristina Branco e Mafalda Arnauth no Festival Sete Sóis Sete Luas em Pontedera

Marquesas do fado em Itália

No cenário da “villa” do marquês Malaspina, “amici della musica”, Cristina Branco e Mafalda Arnauth mostraram ao público de Pontedera duas formas distintas de cantar e apresentar o fado. A sofisticação etérea de Cristina e o sangue de Mafalda foram duas faces de um mesmo rosto que, depois da morte de Amália, volta a ter razões para sorrir.

Uma fala devagar e baixo. Insinua melodias que vêm de longe, envoltas numa luz dourada. Acende-se devagar uma graduação de estrela. A outra relampeja-lhe a alma tingida de sangue. Encandeia. Não se acende, arde. Cristina Branco foi a fada que pousou ao de leve trazendo a saudade como uma folha suspensa no vento. Mafalda Arnauth descerrou as cortinas de Lisboa de rompante, encarando de frente a fera, dando-se sem reservas ao instante.
            Fascinante foi ver o modo como as duas encaram a forma de apresentação do fado num espetáculo ao vivo. Em dias seguidos, Cristina na segunda, Mafalda na terça, e no mesmo local, a Villa Malaspina, pertencente ao marquês e marquesa Torrigiani Malaspina, em Pontedera, o público toscano teve oportunidade de ouvir duas vozes fabulosas que, todavia, vestem figurinos diferentes.
            Cristina Branco evidenciou uma maturidade que lhe advém de uma carreira que nos últimos anos se tem vindo a consolidar na Holanda, país onde gravou todos os seus álbuns, incluindo “Post-Scriptum” e o novo “Cristina Branco canta Slaueroff”, com poemas assinados pelo poeta holandês com este nome, amante do fado e da saudade. Sente-se a distância e, talvez por isso, ouve-se o fado de Cristina Branco como se viesse de longe, numa barca que suavemente vem chegando.
            O espetáculo que apresentou em Pontedera, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, não se impôs, insinuou-se. Como se insinuaram as notas de “Verdes anos”, de Carlos Paredes, na rapsódia instrumental de abertura que instantaneamente revelou um grande música, Custódio Castelo, na guitarra portuguesa, acompanhado de Alexandre Martins, na viola, e Fernando Maia, no baixo. É ele quem compõe e arranja a maior parte dos fados para a voz de Cristina. Foi ele que ao longo do concerto, e utilizando as suas palavras, foi “abrindo as portas”, umas “grandes”, outras “pequenas”, por onde a alma e o canto pudessem voar.
            Custódio Castelo, que desde o início tem acompanhado o percurso musical da jovem fadista, possui o dom raro de ser músico (o que o distingue desde logo dos que simplesmente fazem música…), de criar a partir da escuta e do silêncio, entregando os gestos e a técnica às diretivas dos deuses. Fados como “Palavras proibidas” ou “Fado tango”, ambos da sua autoria, apontam um dos futuros viáveis de uma música que apenas conseguirá sobreviver enquanto conservar a magia. E os fados de Custódio Castelo têm-na.
            Uma segunda rapsódia consagrou os três instrumentistas. “Aren’t they great?”, comentou Cristina no mesmo inglês com que se dirigiu durante toda a noite ao público toscano, único senão de uma noite sem mácula que até teve o pormenor simpático da fadista cantar em público o “Parabéns a você” para a aniversariante, a marquesa anfitriã…
            Cristina Branco é a fada que materializa o encanto. Através da sua voz, as melodias do guitarrista e as palavras de Pedro Homem de Melo, Alexandre O’Neill, Afonso Lopes Vieira, Miguel Torga, Manuel Alegre, Amália e David-Mourão Ferreira, ganham asas, diferentes peles, subtis sentidos. No “Fado Primavera”, com poema de David-Mourão Ferreira, Cristina Branco arrebatou por fim os bravos de uma plateia que no “encore”, “Tudo isto é fado”, quase sem se dar conta, já cantava em coro com ela.
            Sem microfone, á boca do palco, Cristina Branco revelava num murmúrio o último segredo da sua relação com o fado: “É tudo o que eu digo e tudo o que eu não sei dizer”.

Coisas escuras

            Terça-feira foi noite de outras cores. Depois de se ouvir uma vez mais, através das colunas, o tema-que-parece-dos-Radio Tarifa composto por Rão Kyao de propósito para o Sete Sóis Sete Luas que o festival adotou como hino, Mafalda Arnauth fez correr um rio de sangue.
            Ao contrário da sobriedade do vestido negro que Cristina Branco trouxera na véspera a fadista que recentemente lançou o seu álbum homónimo de estreia surgiu com um modelo em vermelho sanguíneo com a assinatura de Paulo Matos. A música seguiu a mesma tonalidade.
            Mafalda Arnauth não avança por fases, como faz Cristina Branco. Com ela é tudo ou nada, a emoção não pede licença para entrar, não chega como uma brisa mas como um relâmpago. Mafalda expõe-se mais, é mais portuguesa que Cristina nessa nudez sem defesas. Mas se o seu fado é menos universalista estará contudo mas próximo da tragédia e arreigado à tradição. Não é o oceano da “world music” mas o Tejo. Sem em Cristina Branco há nuvens, pedrarias, sereias, mágoas de água, em Mafalda Arnauth há poços, redemoinhos, bruxas, ventanias, feridas fundas. Na sua voz ecoam Amália, Alfama, olhos negros, vielas, coisas escuras que não podem ser ditas.

Repasto no final

            Mafalda, acompanhada por Paulo Valentim à guitarra, José António Mendes à viola e Paulo Paz no baixo, cantou, entre outros, “Fado sem fim”, “Fadista louco”, “Alfama”, “Fado antigo”, “No teu poema”… E, para felicidade de todos, de Amália, “Foi Deus” e, já no “encore”, “Estranha forma de vida”.
            Ela não gosta, e faz bem, de comparações. Mas Amália, lá onde está agora, mesmo que a contragosto (também ela não gostava de comparações…), terá decerto acenado com a alma a dizer que sim. Quem contribuiu para a felicidade, tanto de Cristina Branco como de Mafalda Arnauth, e das respetivas comitivas (e, já agora, da nossa…), foi a senhora Sofia Forsi que, em sua casa, mesmo por baixo de uma antiga filial do Partido Comunista, fez questão de confecionar e oferecer o melhor da cozinha e hospitalidade toscanas. Ambas imensas. Os estômagos já pediam clemência e gritavam: “Basta!” Ou melhor: “Pasta”!

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