31/12/2014

A morte em direto [Meira Asher]

MÚSICAS

MEIRA ASHER APRESENTA-SE NO SÁBADO, ÀS 21H30, NO FESTIVAL “Ó DA GUARDA”

A MORTE EM DIRETO

MUTILAÇÕES, HORROR, INCESTO, MASTURBAÇÃO, O HOLOCAUSTO NAZI TRANSFORMADO EM MUSIC-HALL. A FEIRA DA MORTE, AO VIVO E EM DIRETO. MEIRA ASHER, A DIVA DO INFERNO, APRESENTA-SE PELA SEGUNDA VEZ EM PORTUGAL, NO FESTIVAL “Ó DA GUARDA”. NO FINAL FAR-SE-Á A CONTAGEM DOS SOBREVIVENTES.

CITAÇÃO 1: “Durante muito tempo toquei nos seios e na vagina. Fiquei dominada pela emoção. Senti-me envergonhada. A descoberta do meu corpo passava por esse encontro das minhas mãos com a vagina”.
            Citação 2, de Job, 2:4-5: “Satanás retorquiu ao Senhor: Um homem é capaz de dar tudo o que tem, até a sua própria pele, para salvar a sua vida. Mas experimenta levantar a Tua mão contra ele, faz com ele sofra e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente”.
            Citação 3. “Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder, até nos tornarmos no vencedor absoluto”.
            O PÚBLICO entrevistou duas vezes a cantora israelita Meira Asher (Fevereiro de 1997 e Junho de 1999, esta última por ocasião da sua primeira atuação ao vivo em Portugal, no Festival Ritmos do Mundo, no Porto) e de ambas ficou com os cabelos em pé.
            Através destas três citações é possível vislumbrar o percurso desta artista que faz do mal o seu campo de trabalho: da vergonha para a revolta e desta para a assunção do poder. Mas se tais palavras são reveladoras de uma deambulação física e psicológica pelo horror e pelo sofrimento que a obra musical mal consegue exorcizar, ao mesmo tempo que indiciam um perturbante paralelismo com a evolução do nazismo (é ainda Meira Asher quem afirma que o “torturado tende a transformar-se no torturador”), a música desta israelita marcada pela memória do holocausto vai ainda mais além.
            Meira Asher, como Diamanda Galas, é uma diva do inferno. Nela a Bíblia – que usou como arma apocalíptica nos seus dois álbuns editados até ao momento, “Dissected”, de 1997, e “Spears into Hooks”, do ano passado – transmuta-se num livro negro de pragas. Como Diamanda Galas, a israelita profetiza a morte e o caos, revolvendo-se na abordagem de temáticas como a sida, a masturbação feminina e o incesto. Mas enquanto Galas encarcera a ópera, os “blues” e o “gospel” no quarto de lua do Romantismo, Meira usa maquinaria eletrónica pesada, desfaz-se na podridão e clama que o Apocalipse é agora.
            De “Dissected”, dissecação da masturbação, da tortura, da mutilação, da auto-castração e dos horrores da Intifada, representava ainda a falsa segurança de uma inovação que traía a essência da música étnica, ao automatizá-la na hipnose da tecno, “Spears into Hooks” é a carnificina, o caos, o êxtase da morte.
            “Spears into Hooks” faz o relatório detalhado do mal. Nele a cantora socorre-se de samples com gravações de mulheres e crianças atingidas por projéteis, acompanhados pela descrição dos seus efeitos e das várias gradações da dor sentida pelas vítimas. Mas é num tema como “Weekend away break” que a noite se abate.
            “Weekend away break” aponta os holofotes ao campo de concentração de Birkenau descrevendo-o como um campo de férias. Sobre uma valsa de Strauss e uma canção de Marlene Dietrich, o horror esmaga e toda a esperança na humanidade se esvai. “Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã é possível observar pessoas apanhando morangos/Outra atração: elas não suportam o seu cheiro a decadência”. Postal de “boas-vindas a um lugar criado num momento de inspiração”. O assassínio científico em massa como uma das belas-artes. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/E vais esquecer-te do pequeno-almoço porque irás experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te, como opção, a sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso”.
            Por fim, a própria memória morre, numa adaptação de “Se Questo é un Uomo”, de Primo Levi. Sobre rajadas de metralhadora, explosões, silvos de gás e vidro estilhaçado uma mulher grita suplicando pelo esquecimento: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/Mas agora é como se nunca tivesse existido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos finalmente descansar e nos erguermos de novo/Não imprimiremos nada do que vivemos aos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais – para todo o sempre”.
            No vórtice do desespero, torturado e torturador unidos numa só pessoa, é a vez do poder libertar a energia de Tanatos. Meira grita: “Morram! Morram! Morram!” O tema do espetáculo que a israelita (voz, sampler, percussão e objetos) apresentará na Guarda – acompanhada por Guy Harris (voz, computadores, flautas e objetos), Riccardo Massari (voz, gira-discos, acordeão e objetos) e Jackie Shemesh (luz) – é, sem disfarces, a morte. No Porto, houve quem não aguentasse e fugisse. Para a Guarda, convirá levar defesas.

MEIRA ASHER
Guarda, Pavilhão de adubos para todas as culturas do Barracão, sáb., 21h30.
Bilhetes: 1000$00
Entrada permanente para todos os dias do festival: 1500$00


ARTES | sexta-feira, 29 setembro 2000

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