29/11/2019

O pecado mora aqui [Muddy Waters]


BLUES
DISCO
PÚBLICO 22 NOVEMBRO 2003

Muddy Waters é uma das matrizes do blues de Chicago. A reedição, em formato de luxo, de um conjunto de sessões lendárias efetuadas cinco anos antes da sua morte, confirma, de forma exuberante, este estatuto.

O pecado mora aqui


Querem emoção sem intermediários? Querem energia? Alegria? Dor? Adrenalina? Suor? Sexo? A vida como ela é, a vida de um homem transposta para música? Vão aos “blues” de Muddy Waters, um dos pioneiros e nomes lendários do “blues” de Chicago nos anos 50. “Muddy ‘Mississippi’ Waters Live” é um disco para nos acompanhar pela vida fora até à morte. Sem nunca nos dar descanso mas recompensando-nos com o mel e o fel da entrega total. Foi gravado originalmente em 1977 e 1978, respetivamente no Masonic Auditorium, em Detroit, e no Harry Hope’s, Cary, Illinois, e editado em 1979. Johnny Winter, o músico albino do “blues” progressivo, além de produzir o LP original, participou na sessão de Detroit. A presente reedição surge em forma de luxuoso digipak, com som remasterizado, fotos raras, notas assinadas pelo guitarrista e co-produtor Bob Margolin e a inclusão de um segundo CD com gravações inéditas efetuadas nos espetáculos no Harry’s Hope deixadas de fora do alinhamento original.
            “Mannish boy”, versão de Muddy Waters “I’m a man”, de Bo Didley, lança-nos de imediato para a fogueira. Muddy canta, grita “sou um homem!”, a assistência responde ainda mais alto, em transe, a acompanhar este rito de passagem da juventude para a idade adulta. O cantor empolga-se e desafia os elementos do sexo feminino presentes na sala, a temperatura sobe, o “blues” solta-se num erotismo desenfreado, atravessado pela corrente elétrica da guitarra Fender Telecaster que Muddy Waters faz estremecer como o corpo de uma mulher. “Slow blues is where all the soul is”, diz o cantor do delta do Mississípi e “She’s nineteen years old” dá-lhe razão. O “blues” de Waters é o som da paixão que arde como álcool, o ritmo exato a marcar o “swing” que atravessa o jazz de ponta a ponta. “Baby please don’t go”, aprendida com Big Joe Williams, é boogie para deixar qualquer um de rastos, as guitarras de Waters e Luther “Guitar Jr.” Johnson a dispararem estilhaços incandescentes. O tempo parece não ter passado quando se chega ao tema final, “Deep down in Florida”. Dez minutos do tal “blues” lento que derrete por dentro, simplesmente excecional, com a excitação do público e dos músicos a transparecer em cada nota, potenciada pela harmónica de Jerry Portnoy e um tremendo desempenho de Johnny Winter na “slide guitar”.
            Quem, depois disto, ainda conseguir levantar-se e ter força para trocar de CD pode e deve lançar-se na segunda parte da aventura. Onde o “blues” escorre mais ébrio e a intimidade com o público se torna quase palpável, numa atmosfera de clube onde todas as barreiras à comunicação são derrubadas. “Afterhours/Stormy Monday blues” serve de pretexto a Muddy Waters para apresentar os músicos e criticar a gerência por obrigá-lo a tocar um segundo “set” em vez de o deixar ir para casa jantar. O piano de Pinetop Perkins está prestes a desfazer-se e a deixar-nos cair na volúpia dos silêncios. Palmas, gargalhadas, mais “boogie” irresistível, em “Trouble no more”, “Corrina, Corrina” e “Pinetop’s boogie woogie”, e o veneno da embriaguez a infiltrar-se em “Champagne & Reefer”. O clássico “Hoochie coochie man” antecede o lentíssimo “She moves me”, sexo em estado puro. Experimentem usar este tema como música de fundo para isso e convertam-se sem remédio nem vergonha a esta música onde o diabo pisca o olho a convencer-nos das delícias da luxúria e as guitarras literalmente arquejam num orgasmo. “Muddy ‘Mississippi’ Waters Live”, aureolado com um Grammy, não é feito da matéria dos sonhos. É carne e espírito a dar corpo ao pecado.

MUDDY WATERS
Muddy “Mississippi” Waters Live
Epic Legacy, distri. Sony Music
10 | 10

A rumba, o tango, a tanga [Chick Corea]


CULTURA
SÁBADO, 22 NOV 2003

Crítica Música

A rumba, o tango, a tanga

CHICK COREA
LISBOA Grande Auditório do CCB
Quarta-feira. Esgotado

Chick Corea encheu, na quarta-feira, o Grande Auditório do CCB, depois de ter feito o mesmo na véspera, no concerto de encerramento do Festival de Jazz do Porto. Encheu a sala, mas não as medidas de uma fação – pequena – do público, para quem o jazz é música demasiado séria para poder ser amassada de ânimo leve.
            Chick Corea, pianista reputado com lugar garantido nas enciclopédias, tem do jazz, embora nem sempre estando para aí virado, uma noção que não dispensa o espetáculo. Provou-o no CCB e pôs à prova, em certos momentos do duplo “set” lisboeta, a paciência dos melómanos da fação dura.
            Decorreu morna a primeira parte, a música escorrendo em jazz agradável, fusionista, de colorido latino-americano, com o trio, que afinal passou, no programa, a quarteto e, finalmente, aumentou para quinteto, com a presença em palco do percussionista convidado Ruben Dantas e... sexteto, com as colaborações esporádicas da vocalista e mulher do pianista, Gayle Moran. Música bonita, sabendo-se como “bonita” é inimigo de “ótima”. Deu para perceber que o contrabaixisa Avishai Cohen é um prodígio de técnica e colocação, da escola de um Dave Holland. E que Moran (de quem recordamos a participação no álbum “Apocalypse”, dos Mahavishnu Orchestra), chamada para cantar o inédito “Carrousel” e “500 miles high”, servido no álbum “Light as a Feather”, dos Return to Forever, pela voz de Flora Purim, mais do que “scatar”, miou, a dar cabo das cordas vocais e dos ouvidos.
            Em sintonia com o tom geral do concerto, o intervalo serviu para anunciar, após sorteio prévio, os felizes contemplados com a oferta de CD autografados pelo próprio Corea.
            Cumprido o ritual de “marketing”, o segundo “set” subiu de nível. Abriu com “Armando’s rumba”, dedicatória ao pai em piano solo, pleno de pirotecnia mas também de algumas boas combinações harmónicas, prosseguiu com novo inédito ainda sem título e agigantou-se em “Anna’s tango”, dedicado à mãe, sobretudo graças a mais um excelente solo de Avishai Cohen – a pate final coincidiu com um dos melhores e, provavelmente, menos espetaculares, momentos da noite, ouvindo-se Corea a percutir as teclas do piano de maneira a acrescentar às últimas notas de cada frase do contrabaixo uma fantasmagórica ressonância.
            Quando, a partir de um frutuoso diálogo entre a bateria de Jeff Ballard e as percussões de Dantas, os restantes instrumentistas se lhes juntaram para um festival de batucada a cinco, os ânimos aqueceram ao rubro. Concerto ganho, faltava a festa rija. Veio no “encore”. Chick Corea fez então o papel do “entertainer”, conseguindo pôr a plateia a cantar a cinco vozes (em esplêndida afinação e sincronização, francamente melhores, aliás, que Gayle Moran...), mas tudo se desmoronou como um castelo de cartas quando a música descambou para um excerto piroso do “Concerto de Aranjuez”, de Joaquin Rodrigo (com o saxofonista Steve Wilson a fazer os possíveis para mostrar que não estivera ali como carta fora do baralho...) e a senhora Corea resolveu que a melhor forma de terminar um concerto era pôr o público a bater palminhas de acompanhamento.

EM RESUMO
Bom entretenimento, música assim-assim. As virtudes técnicas do contrabaixista não chegaram para apagar as maldades vocais da senhora Corea

A equação de Anthony Braxton [Jazz]


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 20 NOV 2003

A equação de Anthony Braxton


Anthony Braxton, o matemático, Randy Weston, o africano, e Bobby Hutcherson, o vibrafonista swingante, marcam a agenda de jazz deste fim-de-semana, em Guimarães e Lisboa

Mais jazz. Grande jazz. Grandes músicos de jazz. No Guimarães Jazz e em Lisboa, em co-produção da Culturgest com este festival. Anthony Braxton, Randy Weston, Bobby Hutcherson. O primeiro e o último dão concertos a dobrar e Weston tem concerto único em Guimarães.
            Anthony Braxton, que ontem atuou na Culturgest e hoje abre a segunda parte do programa do Guimarães Jazz, é um matemático. Entre a teoria e a alucinação, a escrita tão complexa como uma cidade e o grito mais instintivo, revela-se um "continuum" que vai do macrocosmos orquestral ao microcosmos solístico. Braxton toca saxofones, clarinete, flauta e piano, e fez história ao lado de nomes ligados ao "free" e à música improvisada como Leroy Jenkins, Gunter Hampel, Jeanne Lee, Willem Breuker, Alan Silva, Derek Bailey, Dave Holland e Sam Rivers, entre outros. Fez parte do Circle de Chick Corea, dos Company, da Creative Music Orchestra e da Globe Unity Orchestra.
            Equidistante do jazz e da música contemporânea, entre Ornette Coleman e Schönberg, Eric Dolphy e Xenakis, Braxton integra na sua música a intuição e a numerologia (como Xenakis, aliás, outro visionário pitagórico da ordem cósmica, cifrada em equações do espírito). Uma música apontada tanto ao corpo como à inteligência, a exigir do ouvinte participação e disponibilidade totais. Ou mais ainda: um dos seus projetos passa pela composição de uma peça para ser executada numa estação espacial em órbita.
            Há quem se refira a um revisionismo da tradição em que o jazz é destruído e remontado e a improvisação uma outra ordem, manifestação parcial de uma arquitetura mais vasta, a propósito deste músico de Chicago que diz ter sido influenciado pelo "cool" de Paul Desmond e Warne Marsh, mas em cujas obras se cruzam batimentos rituais (às vezes curiosamente idênticos a construções da escola RIO – Rock in Opposition) e concepções puramente geométricas que procuram redefinir o jazz como uma música englobante e totalitária. Descubram-se estas diferentes galáxias em álbuns como "Silence/Time Zones", um tratado de electrónica logística, com Leroy Jenkins, Leo Smith e Richard Teitelbaum, as séries de quartetos e duetos que se estendem pelas décadas de 80 e 90 e uma infinidade de composições numeradas, em contextos que vão do solo absoluto ao grande "ensemble". Braxton atua em Portugal em quarteto com Kevin O'Neill (guitarra), Kevin Norton (bateria) e Andy Eulau (contrabaixo).
            Os números de Randy Weston são outros. Dançam com a agilidade de uma gazela. Jazz, como o de Abdullah Ibrahim, com raízes fundas em África. Weston é o pianista que transporta a lanterna urbana de Monk e os ensinamentos de Ellington (de ambos traçou retratos em piano solo, nos álbuns "Portraits of Duke Ellington" e "Portraits of Thelonious Monk"), para os mistérios da savana. Imbuído da energia do rhythm 'n' blues e da música africana, autor do "standard" "Hi-fly", Weston recomenda-se em álbuns como "Tanjah", The Spirits of our Ancestors", "Volcano Blues" (com Melba Moore), "Perspective" (com Vishnu Wood) e o mais recente "Ancient Future". O pianista atua em trio, com Alex Blake (contrabaixo) e Neil Clarke (percussão).
            A fechar o ciclo, Guimarães e Lisboa recebem outro nome incontornável do jazz moderno, o vibrafonista Bobby Hutcherson, em quarteto com Renee Rosnes (piano), Ray Drummond (contrabaixo) e Billy Drummond (bateria). Mergulhando a inspiração no swing do génio dos Modern Jazz Quartet, Milt Jackson, Hutcherson acrescenta à limpidez melódica do "cool" as subtilezas rítmicas do "bop". De entre a sua discografia destaca-se uma das obras-primas do jazz, "Dialogue" (1965), potenciada por um assombroso desempenho do saxofonista Sam Rivers. Igualmente importante é a sua participação no clássico "Out to Lunch", de Eric Dolphy.

ANTHONY BRAXTON QUARTET
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Hoje, às 22h. Tel. 253408061. Bilhetes a 10 euros.

RANDY WESTON TRIO
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Amanhã, às 22h. Bilhetes a 10 euros.

BOBBY HUTCHERSON QUARTET
Lisboa, Grande Auditório da Culturgest.
Amanhã, às 21h30. Tel. 217905155. Bilhetes a 18 euros.
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Sábado, dia 22, às 22h. Bilhetes a 10 euros.

Progressivos [Jazz]


CULTURA
TERÇA-FEIRA, 18 NOV 2003

Crítica Música

Progressivos

GIANLUIGI TROVESI + BIG BAND
5ª feira. Sala quase cheia.

MARTIAL SOLAL, ORCHESTRE NATIONAL DE JAZZ
Domingo. Assistência fraca.
LISBOA Grande Auditório da Culturgest

Os concertos de uma "big band" dirigida por Gianluigi Trovesi e da Orchestre National de Jazz de França, sob a direção de Claude Barthélemi, que tiveram lugar sexta-feira e domingo, respetivamente, no Grande Auditório da Culturgest, vieram repor a velha questão do que é ou não música de jazz. Questão aparentemente irrelevante na medida em que importará, acima de tudo, a valorização da música de "per si", independentemente de qualquer enquadramento e definição de um género que, esgotado o estertor efusivo do "free jazz", se viu nas últimas três décadas na contingência de procurar em seu redor novas fontes de alimentação.
O jazz assimilou músicas e culturas limítrofes, fruto dessa necessidade mas também do confronto do músico com um "overload" de informação. Na música quer de uma quer de outra banda - excelente em qualquer dos casos – o jazz tornou-se mimetismo.
Trovesi, além de executante virtuosístico nos saxofones e no clarinete, é um "jongleur" de fórmulas musicais antagónicas. Os arranjos para "big band" que foram dados a ouvir na Culturgest, de temas como o exaltante "From G to G", "Herbop", "Dédalo", "Now I can" e "Sogno d'Orfeo", entonteceram o jazz no "carrocel do oito", numa vertigem de citações a "New Orleans" e ao "bop", à música barroca, aos folclores de diversas proveniências, ao cinema de sons de Nino Rotta e ao... rock progressivo.
Trovesi controlou o seu circo de forma magnífica, concedendo largo espaço de manobra à música mas também ao humor, como numa pantomima que levou o saxofonista François Corneloup a escapar-se para os bastidores continuando a tocar, a que se seguiu um "show-off" de Nicolas Nijholt, concluído com um "solo" de trombone a imitar um motor de automóvel. Entre os solistas, a parte de leão coube ao trompetista alemão Markus Stockausen, misturador de sons planantes e electrónica, enquanto o guitarrista Nguyien Lê optou por criar texturas oníricas igualmente saturadas de efeitos electrónicos em alternância com solos de inspiração Hendrixiana. Bastante discretos estiveram a pianista belga Nathalie Lorriers e, surpreendentemente relegado para a última fila dos metais, o mítico trompetista inglês Henry Lowther.
No domingo, após uma primeira parte preenchida por uma entediante atuação a solo do pianista Martial Solal - cujo lugar na história do jazz francês é inquestionável, mas a cuja agilidade de dedos correspondeu, no concerto da Culturgest, um universo fechado no tempo, à deriva numa sucessão de clichés que se anulavam mutuamente - a Orchestre National de Jazz (ONJ), através das composições e direcção de Claude Barthélemy deu sequência a algumas das premissas avançadas por Trovesi (que, aliás, participa no álbum da orquestra, "Charméditerranéen"), levando-as para territórios ainda mais extremados. A ONJ, composta maioritariamente por músicos jovens, deu corpo a um caleidoscópio, por vezes ofuscante, onde cores, formas e épocas distintas do jazz se cruzam e interpenetram. Do swing ao charleston, dos "blues" ao "free jazz" e ao "free rock", passando pela música árabe e por derivações colectivas que lembraram René Lussier e a estética da editora canadiana Ambiances Magnétiques.
Barthélemy, além de guitarrista com forte costela rockeira, tocou alaúde árabe e mostrou ser notável alquimista na forma como harmonizou, separou e uniu os vários blocos da orquestra. Num dos temas, Vincent Limouzin saturou de efeitos e reverberção o vibrofone, como fazia Robert Wood no primeiro e enigmático álbum dos Lard Free, conferindo ainda mais à música da ONJ uma tonalidade geral evocativa dos anos 70 "progressivos".

Bom Chick, bom genre [Chick Corea]


CULTURA
TERÇA-FEIRA, 18 NOV 2003

Bom Chick, bom genre

Participante em duas das gravações míticas do jazzrock, ao lado de Miles Davis, Chick Corea definiu o seu próprio género de fusão. O seu jazz tem a dimensão dos clássicos


Chick Corea é um dos mais importantes pianistas da história do jazz. Capaz do melhor e do pior. O melhor é música de piano ao mais alto nível, a par de inovações estilísticas que marcaram, sobretudo a partir da sua colaboração com Miles Davis, em "Bitches Brew" e "In a Silent Way", a evolução deste instrumento no âmbito do jazz de fusão. O pior assoma quando a sua veia latina o empurra para exercícios de "música para elevador" exótica com vocação de guia turístico.
            Os concertos marcados para hoje, no Porto, a fechar o festival de jazz desta cidade, e amanhã, em Lisboa, deverão apresentar o melhor Chick Corea, até porque o seu mais recente registo discográfico, "Rendez vous in New York", em que revisita várias fases da sua carreira, é digo dos maiores elogios.
            De seu verdadeiro nome Armando Anthony Corea, com origens familiares na Sicília e Cantábria, Chick Corea inicia a sua carreira de pianista (os seus talentos como instrumentista estendem-se à bateria e ao vibrafone) em Boston, na orquestra de Phil Barboza. No mesmo ano, 1966, em que substitui Gary Burton no quarteto de Stan Getz, grava o seu primeiro álbum a solo, "Tones for Joan's Bones". Dois anos mais tarde é a vez de "Now he Sings, now he Sobs", considerado uma da suas obras clássicas e recentemente reeditado, em versão remasterizada, pela EMI/Blue Note.
            A adoção do piano eléctrico coincide com o convite para tocar com Miles Davis. Participa nos dois álbuns deste trompetista que permanecem até hoje como paradigmas do jazzrock e do jazz de fusão, "In a Silent Way" e "Bitches Brew" (mas também em "Live-Evil" e "Black Beauty"), ambos de 1969.
            Depois de abandonar Miles junta-se a outro dos mestres de fusão, Wayne Shorter, com quem grava "Super Nova", e dá o salto para uma música mais árdua, formando os Circle, em trio com Dave Holland e Barry Altschull, aumentado para quarteto com a participação de Anthony Braxton, no álbum "Paris-Concert". A solo, a sua melhor música improvisada deste período pode ser escutada em "The Complete 'Is' Sessions", igualmente objeto de reedição de luxo pela EMI/Blue Note.
            De volta ao mundo da fusão, Chick Corea forma os Return to Forever, inicialmente na contracorrente das concepções mais funk dos Weather Report e Herbie Hancock, outros expoentes de um género então em franca expansão. "Return to Forever" (1972) e "Light as a Feather" são álbuns de música etérea, subtilmente aflorados pela bossa-nova e pela presença dos músicos brasileiros Airto Moreira e Flora Purim. Rapidamente, porém, esta faceta é substituída por um jazzrcock mais tipificado, funky e eléctrico, nos álbuns subsequentes, "Hymn of the Seventh Galaxy", "Where have I Known you before" e "Return to the Seventh Galaxy". Como contrapeso a este excesso de gravidade, lança-se para as nuvens em dueto com Gary Burton, em "Crystal Silence" (1972).
            Segue-se a fase da eletrónica e o namoro com a música progressiva, em dois álbuns complexos e coloridos, "The Leprechaun" (1975) e "Romantic Warrior" (1976). Convém, no entanto, ignorar, também dessa altura, "My Spanish Heart", "No Mystery", "Musicmagic" e "The Mad Hatter", este último a enformar dos mesmos males – o dispêndio de meios, o virtuosismo balofo – que contribuíram para denegrir o rock progressivo. Obviamente, a indústria recompensa-o com um Grammy.
            A confusão e a hesitação instalam-se nos anos 80. Corea forma uma Elektric Band e uma Akoustic Band, grava o "Concerto para Duas Mãos e Orquestra" de Mozart, regressa ao piano acústico e toca com Herbie Hancock, Gary Burton, Keith Jarrett, Friedrich Gulda, Gary Peacock, Michael Brecker, Lee Konitz, Paco de Lúcia e a cantora de "soul" e cabaré, Chaka Khan...
            Acalma, por fim e, em 1992, forma a sua própria editora, a Stretch Records, para a qual porém só consegue gravar após a cessação do contrato que o ligava à GRP. O primeiro álbum é uma homenagem a Bud Powell. Em paralelo, grava mais música de Mozart, com a St. Paul Chamber Orchestra, dirigida por Bobby McFerrin.
            Mas a tradição pulsa-lhe nas veias e a entrega a cem por cento ao piano acústico força-o a regressar ao jazz sem enfeites. Forma os Origin e fecha-se no Blue Note Club de Nova Iorque para gravar uma série de sessões ao vivo, cuja totalidade se encontra reunida na caixa de 6 CD, "A Week at the Blue Note". Em 1999 chega a altura de gravar o seu "Corea Concerto", com a London Symphony Orchestra, ao qual se segue um "Piano Concerto", inspirado na temática da liberdade religiosa.
            Acompanham Chick Corea nestes dois espetáculos em Portugal, Avishai Cohen (baixo), Jeff Ballard (bateria) e Steve Wilson (saxofone).

CHICK COREA QUARTET
PORTO Teatro Rivoli.
Hoje, às 22h. Tel. 223392220. Bilhetes: 20 e 25 euros.
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém.
Amanhã, às 21h. Tel. 213612444. Bilhetes entre 15 e 40 euros.

Espaços entre o jazz que se faz em Portugal


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 15 NOVEMBRO 2003

O jazz criado hoje por músicos portugueses é jazz de cá e de lá, jazz universal, a saltar para fora das margens. Buscam-se caminhos, pontos de partida e de chegada. Descobrem-se novas vozes.

Espaços entre o jazz que se faz em Portugal

Nas excelentes notas explicativas que acompanham “The Space Between”, assinadas por Bill Shoemaker, define-se este “espaço entre” como o lugar que separa (e, consequentemente, liga…) o conhecido e o desconhecido, onde “os sentidos ainda não se tornaram sensibilidade”, os “estímulos ainda buscam um contexto” e “os ‘blues’ são uma cor, mais do que um estado emocional culturalmente defi nido”. Espaço que num rompante se abre, como diz o título de abertura, entre o “nothing” e a “new thing”. Para Rodrigo Amado (saxofones alto e barítono), Ken Filiano (contrabaixo) e Carlos Zíngaro (violino) este espaço – o da improvisação – estabelece ainda a ponte entre os discursos intrinsecamente jazzísticos dos dois primeiros e as intervenções, mais conotadas com práticas da música contemporânea, do violinista. Abstracta, recusando embora soluções aleatórias, a música sugere ritmos e cadências com raízes explicitamente mergulhadas na tradição, por mais “out” que queira deixar entender, como em “Off breaker”. Já “Horn, strings & sound” não esconde o propósito de investigação da forma sonora pura, essa quimera que consiste em procurar a impossível perfeição situada além da emoção.
            De certa forma complementar de “The Space Between”, a música de outro trio – João Paulo Esteves da Silva (pianos, acordeão, percussão e voz), Paulo Curado (saxofones alto e soprano, garrafa e voz) e Bruno Pedroso (bateria, percussão e voz) – procura igualmente “lugares” ou um lugar de rutura com o jazz americano, “perigosamente próximos dos mundos da fala”. Onde “The Space Between” é geografia e materialização de ilusões, “As Sete Ilhas de Lisboa” demanda uma matriz étnica, embora de igual modo confi nada à delimitação simbólica de uma Lisboa “de sabedorias perdidas de árabes e judeus”, como se pode ler no interessante texto de apresentação de João Paulo Esteves da Silva (J.P.E.S.). Entre o piano impressionista (J.P.E.S. tem o cuidado de referir a utilização de dois instrumento, um novo e um antigo) de “Este castelo de areia”, a mimética folk de “Bi fri nalmente”, as explorações “free” de “Fumarada”, as onomatopeias rítmicas de “Barco à vista” e as vocalizações “gestalt” de “Vamos lá pôr esta coisa a funcionar”, o jazz infiltra-se e recua como a maré do Tejo. Existirá, afinal de contas, um jazz intrinsecamente português? Fará parte da sua natureza afirmar de modo particular o universal?
            Mas nem só da “nova coisa”, e das interrogações que esta suscita, vive o jazz que se faz por cá. O jazz clássico está vivo. Que o diga o jovem trompetista e fliscornista Hugo Alves, “aluno” atento de Lee Morgan, Clifford Brown e Woody Shaw, em “Estranha Natureza”. Timbre quente, aconchegante, fraseado Redondo e escorreito, o swing indispensável imperam nos dez originais escritos pelo próprio e executados na Capela das Artes, Alcantanha, Silves, na companhia de Bruno Santos (guitarra), Jorge Moniz (bateria) e Nuno Correia (contrabaixo). Jazz a pavimentar, bem, o presente.
            José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, prossegue o seu caminho em direção a uma música onde a espiritualidade e os modos de improvisação da música árabe são a pedra de toque. Em “Aceno” Peixoto convidou o guitarrista da ECM, Ralph Towner (mantendo com ele amigável duelo de guitarras, em “Espaços”), Manuela Azevedo (vocalista dos Clã), Filipa Pais, José Salgueiro, Mário Delgado, Mário Franco, Mário Barreiros e Quine. Rabih Abou-Khalil é ponto de orientação. Filipa Pais poderá ter aberto uma nova porta do seu mundo em “Perto do poente (a visita da lua)”, vocalização astral com luz de moura ao luar como há muito vinha prometendo e aqui em absolute cumpre. Jazz ambiental, jazz do Sul, jazz de intimismos, jazz de fi ligranas, ou talvez tudo tendo a palavra “jazz” apenas a tracejado, o que, mesmo assim, não lhe tira o encanto.
            Duas vozes femininas demandam o “Eldorado” do jazz sem rótulos. Paula Oliveira foge-lhe mesmo por completo, em “Quase Então”, com João Paulo a dar-lhe cobertura no piano. A voz de Paula Oliveira pode fazer quase tudo, quase fazendo esquecer a de Maria João, em “Então”. Música tradicional portuguesa jazzada, pois então. Paula “scata” (às vezes de forma tão sólida como redundante, num “Sonho na canção de embalar”, em toada popular). Paula interioriza a melodia e os tons de alma. Paula quer dizer tudo de uma vez, chegando ao ponto de se transmutar em voz e canto de anciã numa incursão profunda no folclore, numa “Dona Iangra” que obriga a parar para melhor se escutar. Paula tem muitas músicas ao seu dispor e só lhe falta, caso assim o deseje, escolher uma delas para caminhar pelo seu próprio pé. Porque voz tem de sobra. A fechar, o “standard” “Stella by starlight” repõe o jazz no seu lugar e Paula Oliveira no lugar do jazz.
            Já Helena Caspurro (atual assistente no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro e participante em projetos como “Bach2Cage”) vive a sua estreia discográfica, “Mulher avestruz”, com o jazz a correr-lhe por dentro de maneira distinta. Com ocasional sotaque e sensibilidade brasileiros. Mais “blues”, em “L-O-V-E you!”. E um piano a dirigir-lhe os dedos para as paisagens de vistas longas e largas do título-tema, onde Caspurro se revela compositora, arquiteta de dizeres, sinais e ruídos que a colocam na mesma academia de cantos inóspitos de Shelley Hirsch, Lauren Newton, Joan La Barbara ou Cathy Berberian.

RODRIGO AMADO, CARLOS ZÍNGARO, KEN FILIANO
The Space Between
Clean Feed, distri. Trem Azul
8 | 10

JOÃO PAULO, PAULO CURADO, BRUNO PEDROSO
As Sete Ilhas de Lisboa
Clean Feed, distri. Trem Azul
8 | 10

HUGO ALVES
Estranha Natureza
Ed. autor/Actus
7 | 10

JOSÉ PEIXOTO
Aceno
Ed. e distri. Zona Música
7 | 10

PAULA OLIVEIRA & JOÃO PAULO
Quase Então
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

HELENA CASPURRO
Mulher Avestruz
Ed. autor
7 | 10

26/11/2019

Animal Collective - Spirits They're Gone, Spirit They've Vanished/Danse Manatee


Y 14|NOVEMBRO|2003
roteiro|discos

ANIMAL COLLECTIVE
Spirit…/Danse…
2xCD Fatcat, distri. Ananana
9|10

Avey Tare e Panda Bear viajaram de Baltimore para Nova Iorque para se dedicarem ao malabarismo musical. Inventam melodias em forma de serpente, atiram-nas ao ar, umas vezes apanham-nas, outras deixam-nas cair para ficarem mais deformadas. Depois furam-nas e retorcem-nas até os olhos saltarem das órbitas. Nesta junção de “Spirit they’re Gone/Spirit they’ve Vanished” e “Danse Manatee”, respetivamente em 1999 e 2001, cabem os maiores desvarios. Eles falam em psicadelismo e a voz de Panda, a par de certas estruturas melódicas, sugere, de facto, os Legendary Pink Dots, mas nada nos prepara para a alucinação: eletrónica animalesca, pianos ora clássicos ora em dissonâncias jazzísticas, “easy listening” para psicopatas, “noise” mutante e pop – sempre a pop… – a trocar-nos as voltas. “Danse…”, mais abstrato, tem a densidade da música contemporânea e a originalidade de um futuro ainda por desembrulhar. Tudo o que pode ser experimentado entre uma visão de Syd Barrett e a cacofonia está aqui. O apocalipse da pop.

Motorhead, estes homens vão comer o teu cérebro


Y 14|NOVEMBRO|2003
fetiche
coisas que seduzem

motorhead
estes homens vão comer o teu cérebro

A sensação mais parecida com um motor de altas rotações a trabalhar dentro da cabeça é ouvir um disco dos Motorhead. Para os “headbangers” de alma e coração a edição da mais recente antologia do grupo, “Stone Deaf Forever!”, caixa com cinco CDs (incluindo 19 inéditos), livrete de 60 páginas com fotos raras e “memorabilia” e “poster” original, é o paraíso da dor e do prazer. Para os não-incondicionais da banda será um teste à resistência e um convite à loucura. A banda de Lemmy (Ian Lemmy” Kileminster), baixista forçado a abandonar os Hawkwind, na sequência de prisão por posse de drogas, durante uma digressão no Canadá, não perdoa. Não dá descanso ao corpo nem aos ouvidos, tocando forte, depressa e alto, até à aniquilação total, temas com título tão sugestivos como “Sacrifice”, “Sex and death”, “Built for speed”, “Orgasmatron” e “Born to raise hell”. Fica o aviso, afixado algures: “Estes homens vão comer o teu cérebro, despedaçar o teu crânio, reduzir-te a um destroço trémulo e balbuciante. Estes homens são os…Motorhead”. Parece bem.

“Motorhead-Stone Deaf Forever”; Ed. Sanctuary, 56€

Steve Fisk & Robert Beerman - Cut-Out


Y 14|NOVEMBRO|2003
roteiro|discos

STEVE FISK & ROBERT BEERMAN
Cut-Out, Interlude with the Fun Machine
Starlight Furniture Co., distri. Sabotage
7|10

Autor de um dos clássicos da pop alternativa dos anos 80, “448 Deathless Days”, Steve Fisk regressou há dois anos com novo trabalho inspirado na numerologia, “999 Levels of Undo”. Desses dias sem morte para cá, a música de Fisk, membro dos Pigeonhead e Pell Mell, produtor dos Screaming Trees, Nirvana, Beat Happening, Low e Soul Coughing, entrou em normalização. Só que “normal” é ainda sinónimo de margens do “mainstream”. “Cut-Out” vai ao encontro dos parâmetros do pós-rock de bandas como Tortoise ou Tarwater com tendência para o exagero na repetição e fragmentação dos “grooves”. Porém, o que em “448...” era colagem inteligente de eletrónica com lugares-comuns de géneros como a “soul” ou o “disco”, derivou para uma linguagem cuja originalidade ficou substancialmente reduzida. Entre assomos de drum & bass e pisadelas tecno, esta “máquina de diversão” consegue, ainda assim, surpreender, seja com o falso bloqueio de um leitor de CD avariado (“Under the lamp”), seja com a música de câmara digital de “Fin”. A vida está difícil para excêntricos como Fisk, por mais que procurem métodos de “não fazer”

Voz direita, fado curvo [Mariza]


CULTURA
NOV 2003

Crítica Música


Voz direita, fado curvo

MARIZA
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
10 de Novembro, 21h
Sala cheia

Mariza triunfou em toda a linha na segunda de duas noites no grande auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, para uma sala à cunha que aplaudiu cada trejeito vocal e corporal da artista (que nos próximos dias 14 e 15 atuará no Teatro Rivoli, no Porto). O fado nem por isso.
O fado não se dança. Mariza dança, irrequieta, e tenta moldar o fado à sua imagem e semelhança. Infelizmente para ela, o Fado, com maiúscula, tem rosto de esfinge e o corpo hierático do destino. Na a máscara do espetáculo.
No concerto de segunda-feira ficaram patentes as virtudes e defeitos que caracterizam o canto desta jovem para quem o sucesso e a fama chegaram com rapidez.
Mariza tem voz e tem presença. A primeira usa-a ao desbarato. É uma voz que se ouve à distância, mas à qual falta, por enquanto, controlo e contenção. Apesar dos contrastes, Mariza dificilmente resiste a projetar a voz para regiões que a música, em certos casos, dispensaria, padecendo da chamada “síndrome Dulce Pontes”. Foi o caso, flagrante, de “Primavera”, ou, já no “encore”, de “Ó gente da minha terra”. Tanta goela aberta, rompendo a direito até ao grito, teve como consequência um ligeiro desfasamento de tom na zona dos agudos, demasiado altos relativamente ao acompanhamento das guitarras. Quando isto acontece, a voz de Mariza esbarra nos ouvidos como uma ventania que tudo arrasa, incluindo a música, incluindo o fado.
Presença, Mariza tem. O aspeto exótico impressiona, a par de uma coreografia e de palavras ensaiadas ao pormenor. Mas é uma figura espampanante, de “music-hall”, com acentos e requebros que a própria não consegue – ou não quer – dominar, cujo sentido diverge amiúde do do fado. Desloque-se, no entanto, a perspetiva, e esqueça-se aquilo que, obviamente, a cantora ainda não tem e que em Amália, por exemplo, com quem inevitavelmente já foi comparada, se chamava majestosidade/simplicidade – o próprio paradoxo de quem unia, em cruz, o profano eo sagrado.
Então sim, deparamos com uma “entertainer” segura de si própria, a dançarina extrovertida de “Oiça lá, ó senhor vinho”, a apreciadora de música tradicional portuguesa, a cantora àvida de experiências e de comunicação com um público que, faça ela o que fizer, já a adora. No CCB comprovou-se esta faceta, esta ousadia da autora de “Fado Curvo”, com a voz a aguçar-se em sibilâncias reptilíneas ou em diálogo com as percussões de Dalu e o piano de Tiago Machado, este último a envolver-se de forma intimista coma voz e com os versos de António Botto, em “Anéis do meu cabelo”. Antes já o piano traçara as principais linhas de força dos arranjos de “O deserto”, com intervenção jazzística de Laurent Filipe, na trompete. Luís Guerreiro, na guitarra portuguesa, António Neto, na guitarra acústica, e Fernando de Sousa, no baixo acústico, brilharam num tema instrumental, ainda que, no acompanhamento da voz, pudessem ter aqui ou ali obtido vantagem caso tivessem optado por seguir o lema “guitarra toca baixinho”.
Feita a soma, num concerto que pode considerar-se curto (uma dúzia de temas, fora os “encores”), chegou para pôr o público em euforia e a aplaudir freneticamente de pé. Num derradeiro gesto de chamamento do fado, Mariza desceu do palco para, sem microfone, se entregar a uma desgarrada a meias com as vozes castiças de Maria Amélia Proença e Marco Rodrigues. Ainda aqui, poré, o foi difícil não sentir o gesto elegante da esteta sobrepondo-se à perturbação e ao silêncio da noite que era suposto evocar-se. Mas talvez, no fim de contas, tudo não passasse afinal desse tal fado curvo que distorce a visão e estanca o sangue que escorre do coração.

EM RESUMO
Mariza e o fado nem sempre coincidem. Há uma voz poderosa e a uma tendência para o excesso. Nada obstou, porém, ao triunfo da primeira, em duas noites a abarrotar de público no CCB.

Dois pianos a contar de cima [Mário Laginha e Bernardo Sassetti]


JAZZ
CAPA
PÚBLICO 8 NOVEMBRO 2003

Mário Laginha e Bernardo Sassetti é a estreia discográfica nascida da colaboração e das afinidades entre estes dois pianistas. Um encontro de sensibilidades complementares onde a improvisação tem um papel determinante. O jazz deles. Tocado com a naturalidade, mas também com o espírito de viajante comum a ambos. A apresentação oficial está marcada para o dia 13 deste mês na nova Fnac, em Gaia


Dois pianos a contar de cima

Freddy Kruger contra Jason Voorhees. Mário Laginha “contra” Bernardo Sassetti. Dois monstrous sagrados do jazz feito em Portugal combatem lado a lado em “Mário Laginha e Bernardo Sassetti”, disco de piano, dois pianos, apostados em fazer sobressair de duas sensibilidades musicais necessariamente distintas uma terceira pessoa nascida de uma cumplicidade que tem vindo a fortalecer-se ao longo de várias etapas em espetáculos ao vivo, como o de Junho do ano passado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Sassetti e Laginha chegaram ao jazz por vias diferentes e nem sempre permanecem por lá. Mas o gusto pela improvisação e pelo diálogo é notório. Laginha, cuja agenda com a cantora Maria João, seja na gravação de álbuns como “Danças”, “Chorinho Feliz”, “Lobos, Raposas e Coiotes”, “Mumadji”, “Cor” e “Undercovers”, seja em concertos, tem deixado pouco espaço para outras aventuras, já dialogara com outro pianista, Pedro Burmester, em “Duetos” (1994). Sassetti, por seu lado, gravou “Mundos” e um “Nocturno” que é um dos grandes discos de jazz nacional lançados o ano passado. Recentemente lavrou a sua assinatura nos arranjos orquestrais para o concerto de celebração dos 40 anos de carreira de Carlos do Carmo. Viajantes por natureza, dos lugares e dos sons, combinam semelhanças e diferenças. Laginha é o extrovertido capaz de juntar no espírito Bach, Keith Jarrett e os ritmos africanos. Sassetti, o introvertido dobrado sobre os silêncios, enredado nas sombras e nas luzes que Bill Evans legou ao jazz, mas também o impressionista dos pontos e manchas que adquirem sentido à distância mais íntima. No disco, porém, trocam por vezes de papel e nem sempre o que parece é. Da alma até à ponta dos dedos e destes até ao marfim das teclas vai um instante de eternidade. Os próprios explicam como se percorrem os caminhos.

“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é o prolongamento lógico dos vossos espetáculos ao vivo?
            Bernardo Sassetti — Tem menos a ver com os concertos do que com o repertório, apesar de haver temas antigos que aparecem em novas versões, como “A menina e o piano” ou “Señor Cascara”.
            Mário Laginha — No ano passado começámos a tocar juntos mais regularmente e a sentir necessidade de arranjar mais repertório. O que tínhamos dava um bocado à conta... para um concerto relativamente curto.
Grande parte dos temas são improvisações, ou “Imprevistos”, como lhes chamaram…
            M. L. — Foram improvisados no estúdio. E temas como “Diabolique”, “Fisicamente” e “A segunda gaveta a contar de cima” são temas novos, mais longos.
Tocam sempre os dois em simultâneo, ou também há solos?
            B. S. — Há momentos a solo...
            M. L. — ...Tudo sem truques nenhuns.
Aos primeiros “takes” ou foram necessárias repetições?
            B. S. — Foi uma sessão de estúdio extraordinária. Em geral saiu tudo ao primeiro “take”, fi cou mais fresco. Às vezes nota-se, quando se repete de mais...
Algum motivo especial para o título se ficar pelos vossos nomes?
            B. S. — Foi propositado. Mas pensámos muito nisso. Como disco de apresentação resolvemos não recorrer a um título.
            M. L. — Embora a ideia não nos fosse desagradável. Mas não queríamos pegar num dos temas e usá-lo como título. Quando isto acontece, as pessoas pensam logo: “Olha este é ‘O tema’!” Para nós conta apenas o todo.
Este é um disco de jazz. Mas a conceção que cada um de vocês tem do jazz é diferente. Tiveram que proceder a adaptações?
            B. S. — Eu comecei na música clássica, mas a partir do momento em que me apaixonei pelo jazz foi de rompante. Deixei totalmente de parte a clássica. Mas essa é uma questão pertinente…
            M. L. — Não houve esforço nenhum. Se tivesse havido, perdia um bocado a graça. Nenhum de nós está a tentar aproximar-se linguisticamente do outro. Agora... ambos temos intuição. Quando se está a tocar, é preciso saber ouvir o outro.
            B. S. — Ouvir o outro com ouvidos diferentes. Não digo que noutras formações não tenhamos a mesma atenção, mas aqui estamos a falar de dois pianos.
            M. L. — O que faz com que não haja nenhum tema para encher. Há ótimos discos, por músicos fabulosos, que improvisam muito bem, mas...
O que é que vos separa e vos aproxima musicalmente?
            M. L. — Ambos gostamos imenso de improvisar, ambos gostamos imenso de escrever, ambos gostamos imenso de arranjar.
            B. S. — O Mário tem uma característica extraordinária que encontro em muito poucos pianistas — uma capacidade polifónica e de criar melodias e contrapontos com as duas mãos em tempo real. Aprendo sempre com ele. Eu tenho uma conceção diferente.
            M. L. — Ele, às vezes, é desconcertante, porque tem um lado que identifico como jazz, de alguém que conhece ao mais alto nível a história do jazz, mas que depois abriu um caminho que falta a muitos pianistas, que é o lirismo, a par da capacidade melódica.
Um é extrovertido e o outro introspetivo?
            B. S. — É muito possível. Embora uma das minhas composições neste disco, o “Señor Cáscaro” seja a atirar para a frente. Mas é apenas um caso. O Mário é daqueles pianistas que toca com garra. Eu tenho talvez muita consciência, um cuidado extremo com o toque, o “touch”. Há algumas gravações minhas, antigas, em que noto alguma estridência e isso teve muita importância, fez-me mudar, neste momento estou mais lírico, presto atenção ao som de cada coisa que faço.
            M. L. — Olho para a lista de temas deste álbum e noto uma coisa engraçada. Há um lado de mim menos representado. Sempre fiz temas, não digo que para fazer chorar as pedras da calçada, mas muito líricos, mas aqui, realmente, não.
Para o Mário, este álbum representou também a oportunidade de mostrar outro lado de uma música que nos últimos tempos tem andado quase sempre ao lado da voz de Maria João?
            M. L. — De facto, durante uns anos, estive de tal forma enredado nesse trabalho que, embora não tenha morto outros projetos, não lhes dava continuidade. De há uns tempos para cá decidi que isso tinha que acabar. Há outras coisas que não quero deixar de fazer.
No caso do Bernardo, aconteceu o oposto. O trabalho que fez recentemente para o Carlos do Carmo é uma exceção.
            B. S. — Sim. Foi um desafio que aceitei e que me deu imenso gozo — sobretudo por ele me ter dado carta branca, de me dizer: “Eh pá, faz o que quiseres!” Claro que não ia começar a fazer música contemporânea, estamos a falar de fado e de um espetáculo no Coliseu, mas, harmonicamente, muitas coisas foram mudadas. Depois esse outro gozo de poder fazer “sacanices”, no bom sentido, pôr umas coisas marotas lá pelo meio... O Hermeto Pascoal disse uma vez uma coisa muito engraçada, num concerto em Guimarães. Começou a tocar o “Coimbra” e, às tantas, vira-se para o público e diz: “Esta melodia é tão interessante, tão bonita, mas vocês aqui em Portugal... Harmonicamente isto é muito fraquinho, vocês deviam puxar a música para a frente.” E começa a fazer umas harmonias extraordinárias.
Da junção das vossas músicas nasce uma Terceira entidade?
            M. L. — Sim. Existem poucos discos apenas com dois pianos, só me consigo lembrar do Herbie Hancock com o Chick Corea. O que fizemos tem uma identidade própria, é o primeiro bom sinal de que uma música pode ter, mesmo sem ser feita para parecer novidade. A originalidade é uma coisa muito relativa e subjetiva. As pessoas têm as suas influências, a tonalidade, a partir do “free”, também já está mais do que explorada. Nós tocámos e gravámos despreocupadamente, mas essa identidade existe.
Essa despreocupação implicou ausência de tensão? Um menor esforço? Para dois pianistas que encaixam tão naturalmente, a facilidade pode não ser boa conselheira.
            M. L. — Essa naturalidade tem mais a ver com a forma como encarámos o projeto. Há temas que deram um trabalho imenso a montar, difíceis tecnicamente, como “Fuga para dois pianos”, “Diabolique”, “A segunda gaveta a contar de cima” e “Señor Cáscara”.
            B. S. — Quando estamos a ler uma partitura, o problema pode estar em que, ao princípio, cada um de nós se preocupa mais com a sua própria parte e deixa um bocadinho de ouvir a outra. Estamos preocupados em tocar aquilo bem, metidos um bocadinho para dentro. A partir do momento, porém, em que começamos a perceber o que são as duas vozes, quais as dinâmicas, o que cada um tem ou não que fazer, então aí é que começa o trabalho a sério. De resto, é trabalho de casa, a dois, um trabalho que demora muito tempo. “O sonho dos outros”, por exemplo, é bastante mais simples de montar. Ou a “Despedida”. Mas na “Segunda gaveta...” tivemos que perceber muito bem o que se estava ali a passar!
            M. L. — Até ficar como está no disco parece não ter havido conflito. Ambos detestamos sentir que o ritmo se perdeu, um ritmo que, por exemplo, em África, acontece naturalmente, mas que no Ocidente, uma pessoa está a tocar, e até está a soar bem e, de repente, o “groove” ardeu. Odeio isso. Quando o “groove”, o “swing”, se vai embora. Há neste disco imensos temas que swingam, mas até swingarem, até se chegar lá, não foi uma coisa imediata, encaixar o sentido e as acentuações e depois fazer isso já intuitivamente.
No álbum alternam composições mais longas com miniaturas de pouco mais de um minuto. Interlúdios?
            B. S. — O único efetivamente pensado como tal foi “Despedida”. No meio de tanto improviso, decidimos fazer uma versão só com o tema.
            M. L. — Normalmente, durante as gravações, chegávamos ao fim do dia e fazíamos um improviso. Acabou por ser esse o espírito.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” não é um disco difícil de se ouvir. Nunca pensaram em arriscar outro tipo de música, menos imediatamente apelativa  ou então qualquer tipo de “tara” musical, politicamente incorreta, do tipo “easy listening”?
            B. S. — Neste primeiro disco quisemos pegar em tudo o que tínhamos feito até agora. Não há grande diferença, em termos de espontaneidade, não há grandes diferenças em relação ao concerto.
            M. L. — Tenho horror ao “easy listening”, embora até goste de alguma “má música” (risos) e haja bons tipos a fazer isso, mas mais facilmente aprecio uma canção pop. O “easy listening” é uma música profundamente estúpida, em que se utilizam conhecimentos razoáveis, de tipos que até sabem tocar bem, para fazer algo completamente vazio. Irrita-me. Desejo inconfessável seria, como já pensei fazer, um disco comigo a tocar guitarra e a cantar, com a minha voz absolutamente horrível (risos). Não tenho voz nenhuma, mas afino! Outra coisa, não tão inconfessável, passa pela gravação de uma música mais difícil.
            B. S. — Eu tenho algumas coisas na manga, sobretudo bandas sonoras. É raro poder-se editar uma banda sonora em Portugal. É difícil as Pessoas imaginarem quão complicado isso é, em termos de produção, de entrega, de financiamento. Um disco que gostaria de fazer, embora fosse necessária muita coragem para o editar, era um de coisas trabalhadas dentro do piano, na caixa harmónica, nas cordas, na harpa. E sobretudo um disco com muito, muito silêncio. Uma coisa é certa, na rádio não passaria (risos).
            M. L. — Entre o primeiro e o segundo acorde punham publicidade (risos).
Tanto “Nocturno” como “Undercovers”, os vossos discos anteriores, venderam bem. Existe finalmente um mercado para discos de jazz feitos em Portugal? Ou são exceções?
            M. L. — Acho que haverá sempre mercado para os discos de jazz, mesmo numa sociedade com tendência para a estupidificação, como a nossa. Há sempre camadas que reagem. Isso sempre aconteceu e sempre acontecerá. De uma maneira geral, o problema está em que as pessoas não são estimuladas a ouvir coisas que desconhecem. Mas, quando se aposta mais, às vezes há surpresas e descobre-se que afinal até há pessoas que compram. É claro que não compram às centenas de milhares, mas compram uns milhares. Apesar de sermos um país pequeno, quanto mais discos se fizerem, melhor.
Mas então, por que razão gravaram este álbum em edição de autor e não através de uma editora? De onde veio o dinheiro para a gravação?
            M. L. — Não é um disco de autor por não ter havido editoras interessadas. Foi uma opção. Estou mais ligado à Universal e o Bernardo à Trem Azul...
            B. S. — Mas é importante não termos, como não temos, exclusividade.
            M. L. — No meu caso, a ligação tem mais a ver com os discos com a Maria João. Se o Bernardo viesse para a Universal, a Trem Azul era capaz de ficar um bocado melindrada. O oposto teria o mesmo efeito na Universal. Acabámos por pensar que a melhor maneira de ninguém ficar ofendido seria fazer um disco de autor. E até tivemos sorte, porque a Fnac quis exclusividade. Mas nem se trata de um disco caro...
O ambiente de estúdio foi determinante nas gravações?
            B. S. — Gravámos no estúdio do Mário Barreiros, em Canelas, no Porto, um estúdio cinco estrelas, mesmo a nível mundial.
            M. L. — Tudo em madeira, grande, com respiração...
            B. S. — O Mário já tinha gravado lá, o “Undercovers”, cujo som considero extraordinário, e o Mário Barreiros é um técnico sublime, além de um grande músico. Tem uma inteligência e uma rapidez de fazer as coisas estonteantes.
Têm expetativas elevadas em relação à aceitação deste álbum?
            M. L. — Gostaria que as pessoas ouvissem e gostassem, que acontecesse cumplicidade, comunhão. Adoro tocar ao vivo, não há nada melhor, sentir, quando entro no palco, que as pessoas já ouviram o disco e querem mesmo estar ali no concerto.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é um disco de jazz “mainstream”? O termo incomoda-os?
            B. S. — Não acho que seja... M. L. — O “mainstream” nãotem a ver com ser bastante tonal ou não, mas com o tipo de linguagem. E, nesse aspecto, não é. Mas é uma música comunicativa, que não se fecha sobre si mesma.
Como é que se evolui como músico de jazz em Portugal?
            B. S. — É muito importante os músicos saírem de cá. Ir apanhar ar lá fora. Vivi muitos anos em Londres, também estive algum tempo em Nova Iorque, e é realmente extraordinário. Realizam-se sessões descontraídas, à tarde, para as pessoas tocarem, só pelo gozo. Aqui é mais complicado... Chega-se a um ponto em que deixa de haver entusiasmo em relação ao meio. Os músicos novos que querem mesmo fazer esta música têm que sair daqui. Isto é muito pequeno. Uma província. Lisboa é uma cidade grande, mas, se formos a ver, tem características que me fazem pensar em fachada. Há muita fachada e pouco conteúdo. Isto empobrece o espírito. Existe a mania de dizer “nós temos”, “nós fizemos” o maior edifício, a maior sede de não sei quê, o maior oceanário, “porque nós os portugueses também podemos e conseguimos!”... É extremamente redutor.
            M. L. — São os mesmos que depois se vergam ao que vem de fora!
Ambos gostam de viajar. Que viagens, musicais e geográficas, mais os marcaram?
            B. S. — A música que me fez vibrar mais até hoje foi a do Brasil. Em Niterói, tanto os sons de batucada no meio da rua, durante uma manifestação popular, como, às duas da manhã, um grupo de velhinhos a tocarem forró, vestidos como se tivessem acabado de sair da cama. Quatro horas a tocar, das 2h às 6h. Sem parar! Há outra música que me fascina em particular: o flamenco. Tenho estado a tocar e a aprender com o grupo Cruce de Caminos, como o Perico Sambeat e o Gerardo Nunez. Atualmente tenho andado a ouvir música fúnebre para cordas, de Lutoslawski, pelo Kronos Quartet.
            M. L. — Também o Brasil. Depois, África, pela qual sinto um fascínio enorme. Às vezes procuro imitar ritmos que não são feitos em piano, mas em guitarra, numa kora ou num balafon. Isso dá-me ideias — por exemplo, há um tema no “Cor”, “Rafael ou a cor de Moçambique”, cujo balanço foi conseguido a partir da imitação de uns balafons, até transformer o ritmo numa coisa pianística.
Existe um jazz português, da mesma maneira que existe um jazz inglês, um jazz francês ou um jazz italiano?
            B. S. — Sim! Uma sonoridade específica. No Mário, por exemplo. Oiça-se várias das “Danças”. Também em temas do João Paulo, do Carlos Bica e do Carlos Barretto.
            M. L. — Mas não são elementos óbvios. O José Duarte dava como exemplo – do qual discordo completamente – o Chano Dominguez, ao pegar num “standard” qualquer e transformá-lo numa rumba. Eu isso acho que não. Agora misturar flamenco com outras coisas, como fazem os Cruce de Caminos, acho bem. Pegar em temas populares portugueses e adaptá-los... Se isso é jazz português, prefiro estar a milhas!


Obcecados pelo belo

MÁRIO LAGINHA E BERNARDO SASSETTI
Mário Laginha e Bernardo Sassetti
Ed. de autor, distri. Fnac
8 | 10

A música nasce em crescendo, escorre como água, em acordes que aos poucos se vão organizando, como a lição de piano da criança deslumbrada que descobre a origem dos sons, em “A menina e o piano”, ponto de partida do primeiro álbum de dois pianistas que procuram na música do outro o complement e uma resposta para as suas interrogações musicais. Escutam-se evidências. Nesta nova versão do tema compost originalmente para “Chorinho Feliz”, à semelhança dos outros compostos por Laginha (“Fuga para dois pianos” e “Despedida”, ambos do álbum “Hoje”, de 1994, e o inédito “Fisicamente”), o ritmo impõe-se como fio condutor, o “touch” é marcado, o “swing” quase “ragtime” na “Fuga”, gismontiano na “Despedida”, e “Fisicamente” um poderoso diálogo de “riffs”, sugestões de chorinho e harmonias em cascata. Já “A segunda gaveta a contar de cima”, escrita em primeiro lugar para a Orquestra de Jazz de Matosinhos, jarrettiana na essência, será o mais natural ponto de confluência entre os dois pianistas portugueses. Jogo quase telepático, de notas vivas e vívidas, “clusters” e expressividade a roçar a euforia. A métrica pode soar insistente, quase repetitiva, mas é também daí que as surpresas e as soluções brotam, a justifi car a explicação dada pelos seus intérpretes: “Temos ambos um fascínio por um lado obsessivo, em usar uma repetição lógica e explorá-la até à exaustão.” À pergunta “Onde é que isto nos vai levar”, respondem com a disciplina antidogmática dos espíritos nómadas: “Entramos numa tonalidade e às tantas começa a fundir-se numa linguagem mais impressionista e menos tonal.” Em Sassetti, pelo contrário, a intrincada rede de luzes, por vezes ofuscantes, do novo arranjo para “Señor Cáscara” (do álbum “Mundos”) é a excepção às filigranas impressionistas de “O sonho dos outros” (de “Nocturnos”), janela entreaberta para a matemática secreta de Satie, “Diabolique” (surpreendente pela violência dos contrastes) e um “Renascer” com a mesma tranquilidade de Brian Eno. A escrita de Billy Strayhorn em “take the A train” introduz o universo ellingtoniano na teia harmónica da dupla e acaba por ser nos três “Imprevistos” que os dois completam a fusão das respetivas linguagens pianísticas, pela improvisação. É também aqui que, ao esbaterem-se as diferenças, a música deixa diluir alguma da sua força “narrativa” para se revelar como geometria de um jardim zen, aspeto em que o “Imprevisto nº2”, minimal como um mantra de Terry Riley, se mostra exemplar.