20/11/2019

A fúria é a melhor amiga do homem [John Cale]


CULTURA
DOMINGO, 26 OUT 2003

Crítica Música


A fúria é a melhor amiga do homem

John Cale
LISBOA Aula Magna
Sexta-feira, 21h30. Sala a três quartos.

Desafinou num ou noutro momento. Expôs fragilidades. Arriscou registos contraditórios. Mas, caramba, o homem, John Cale, deu sexta-feira, na Aula Magna, em Lisboa (ontem voltou a atuar na mesma sala com alinhamento diferente), um dos melhores concertos rock deste ano. Aos 61 anos, a energia continua concentrada na difícil arte de caminhar sobre o fio da navalha. Arrasador.
Integrado numa banda formada por Craig Irwin Levitz (bateria, bateria eletrónica e samples) Jeff Samuel Thall (guitarra) e Paul Andrew Page (baixo) Cale alternou a apresentação do novo álbum “HoboSapiens”, com temas extraídos da sua anterior discografia, de álbuns como “Fear”, “Slow Dazzle” e “Music for a New Society”. Os primeiros, ainda pouco rodados, recriaram as ambiências complexas e a forte componente eletrónica do disco, com Cale no piano elétrico e Levitz a lançar para a mesa de mistura samples vocais e uma artilharia de efeitos especiais. Pelo meio, temas tocados em guitarra acústica, como “Chinese savoy”, “gospel” de abandono como “Ship of fools” e um “Fear” de gelar o sangue – Cale a gritar como um danado, a plateia percorrida por um frémito. “Fear is a man’s best friend”. O ex-Velvet há muito que trocou o medo pela fúria.
Logo de início, arreganhou os dentes, entrando a matar com “Venus in furs”, tema escrito pelo seu antigo companheiro nos Velvet, Lou Reed, do mítico álbum da banana. A velha “drone” de viola de arco, tão nevrótica como há 36 anos, e a guitarra de Thall a escorrer limalha de ferro, reproduziram um filme ao qual só faltaram os fantasmas de Warhol e de Nico. Cumprido o ritual, entrou no túnel do rock ‘n’roll, saindo do outro lado a cavalo nas programações eletrónicas de “HoboSapiens”, para voltar de novo atrás, vociferar baladas, a voz a falhar e a voltar ao lugar, mais poderosa e frágil do que antes, mas sempre com a alma a esbugalhar-se, incandescente como a de um jovem revolucionário.
Quanto tempo tocou? Difícil dizer. Porque o tempo parou, suspenso na sinceridade sem freios, na crueza emocional deste músico que recusa esconder-se atrás das modas. Para John Cale continua a ser um assunto de vida ou de morte. Juntaram-se as duas na demolidora sequência final, “Gun”, de “Fear” e “Pablo Picasso”, de “Helen of Troy”, acoplados numa locomotiva de adrenalina e decibéis. O público, espezinhado, esmagado, rendido pelo choque de eletricidade, ergueu-se e aplaudiu de pé, pedindo durante largos minutos o “encore” que demorou a chegar.
Cale regressou para se expor e arriscar ainda mais. “Hallelujah”, sozinho, num hino arrancado ao amor mais terno e ao mais profundo desespero, a seguir, “(I keep a) close watch”, de “Helen of Troy” (nova versão em “Music for a New Society”), a derradeira confissão: “Never win and never lose/There’s nothing much to choose/Between the right and wrong/Nothing lost and nothing gained/Still things aren’t quite the same/Between you and me I keep a close watch on this heart of mine.”
As luzes acenderam-se e apagaram-se e voltaram a acender-se e a apagar-se. E o público sem arredar pé, a pedir mais e mais. Mas Cale já ali não estava. Faltou apenas “Heartbreak hotel”. Mas seria talvez insuportável. Desnudar ainda mais a raiva e a solidão.

EM RESUMO
John Cale, o eterno sabotador, não teve medo de cortar o rock em duas metades: a dos Velvet Underground e a do novo álbum “HoboSapiens”. Concerto arrasador.

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