31/01/2011

Os maiores talentos portugueses dos anos 90

Sons

10 de Setembro 1999

Os maiores talentos portugueses dos anos 90

Luís Maio

Quisemos eleger os maiores artistas pop/rock/world portugueses dos anos 90. Não aqueles com uma carreira já antes estabelecida, que chegaram ou se mantiveram na ribalta nestes últimos dez anos, o que exclui à partida nomes como Madredeus ou Dulce Pontes. Mas apenas os novos talentos, que gravaram pela primeira vez em longa-duração e marcaram a música portuguesa (ou, para ser mais rigoroso, produzida em Portugal) nesta década. “Marcar” aqui, tem de se reconhecer, é um pouco ambíguo e esta escolha é um compromisso entre a importância objectiva dos artistas e os nossos gostos pessoais.
A conclusão a que chegámos é que há pelo menos dez nomes fundamentais dos nossos anos 90, o que já não é nada mau. Mas a impressão com que também ficámos, e deverá ficar como objecto de uma futura sistematização, é que esta década não foi genericamente tão produtiva quanto a precedente para a música portuguesa. Houve alguma necessidade da parte dos novos talentos de cortarem com a geração precedente, a dos GNR, Delfins, Trovante e Xutos, nomeadamente no sentido de questionar a necessidade de obedecer a um formato de canção pop/rock e de cantar em inglês. Mas essa ruptura não foi tão frutuosa ou ainda está em boa parte por cumprir.

1. PEDRO ABRUNHOSA (texto Pedro Ribeiro)

2. TRÊS TRISTES TIGRES

Já não há desculpa para se afirmar que não existe uma verdadeira banda portuguesa de pop psicadélica. Ela existe e chama-se Três Tristes Tigres. Mas se esta vertente, se não inédita (quem se recorda, no anos 70, dos Beatnicks, da “Cosmonicação”?), pelo menos muito pouco comum, da música popular produzida em Portugal, tem razão de existir, quando estamos prestes a entrar num novo milénio, tal deve-se ao “input” dos TTT de Alexandre Soares. Foi graças às novas ideias do antigo guitarrista dos GNR que a banda do porto renovou o seu stock de canções assentes no delírio sonoro e na qualidade dos textos escritos por Regina Guimarães. Com Alexandre Soares, os TTT entraram, sem medo, no comboio-fantasma da electrónica e dos sonhos com ligação directa, até ao mais recente, “Comum”, passando por “Guia Espiritual”, os TTT passaram de sonoplastas da palavra a arquitectos do inconsciente. Ana Deus, cantora dos TTT, faz a síntese do caminho recentemente aberto pelo grupo: “É perturbador!”. (texto FM)

3. GAITEIROS DE LISBOA
“Bárbaros!” Era o grito de susceptibilidade ferida com que o bardo Assurancetourix respondia aos insultos que o resto da tribo de irredutíveis gauleses lhe dirigia, quando se atrevia a cantar. Os Gaiteiros de Lisboa nunca foram propriamente insultados, mas, se o fossem, seria sempre por outras razões. Porque, antes deles, a música de raiz tradicional portuguesa descansava à sombra da bananeira, que é como quem diz, da papa toda feita nas décadas anteriores por José Afonso, dos que faziam das recolhas étnicas profissão de fé e do trabalho, sem dúvida louvável, mas sempre respeitador, da geração anterior de grupos da mesma área. Os Gaiteiros chegaram e deitaram tudo abaixo. Niilistas? Iconoclastas, talvez! Depois, sobre os escombros, edificaram um edifício novo tão ou mais deslumbrante que o antigo. Em apenas dois álbuns, “Invasões Bárbaras” e “Bocas do Inferno” (vencedor do Prémio José Afonso do ano passado), os Gaiteiros de Lisboa deram um rosto novo e de desafio à música popular portuguesa. Para muitos, o rosto de um demónio. Mas não é Lúcifer o anjo portador da luz? (texto FM)

4. ITHAKA (texto Tiago Luz Pedro)

5. BELLE CHASE HOTEL (texto Rui Catalão)

6. UNDERGROUND SOUND OF LISBOA (texto Vítor Belanciano)

7. DA WEASEL (texto Tiago Luz Pedro)

8. AMÉLIA MUGE

A conquista recente do Prémio José Afonso, pelo álbum “Taco a Taco”, não fez mais do que reconhecer a importância da obra de Amélia Muge enquanto herdeira daquele que foi, em Portugal, o arauto da insatisfação, do empenhamento ideológico e da inovação estética: José Afonso. Como o autor de “Cantigas do Maio”, Amélia Muge não dispensa a interrogação dos propósitos e motivos que conduzem à criação musical, o que significa que o disco, mais do que produto de uma indústria, deverá ser o espelho da história – do criador e do tempo em que vive. Mas a esta necessidade de conceptualização correspondeu desde o início, com o álbum de estreia, “Múgicas”, essa outra necessidade de arriscar e pôr em causa o que se fez e pensou antes. Amélia Muge, para além do prodígio de força e expressividade que é a sua voz, possui esse outro talento, bastante mais raro: do fogo de uma alma em eterna demanda. Com ela a música tradicional e o legado de autores como José Afonso ou José Mário Branco ganhou verdadeiramente o direito de entrar no 5º império. (texto FM)

9. REPÓRTER ESTRÁBICO (texto Vítor Belanciano)

10. MOONSPELL (texto Pedro Ribeiro)

Richard Thompson - Mock Tudor

Sons

10 de Setembro 1999
POP ROCK

Quadros de um rapaz dos subúrbios

Richard Thompson
Mock Tudor (8)
EMI, distri. EMI-VC


“Pode tirar-se o rapaz dos subúrbios, mas não se pode tirar os subúrbios do rapaz.” A frase, que um dia alguém aplicou a David Bowie, natural de Brixton, nos arredores de Londres, assenta como uma luva a Richard Thompson, outro nativo dos subúrbios londrinos, temática que este músico já havia abordado com a sua então mulher, Linda Thompson, em “Sunnyvista”, e que agora retoma neste seu mais recente capítulo a solo, depois do duplo “You? Me? Us?”, de 1996. Com produção de Tom Rothrock e Rob Schnapf (trabalhou com Elliott Smith), “Mock Tudor” está dividido em três “capítulos”, correspondentes aos períodos cronológicos que marcaram a relação de Richard Thompson com Londres, mais concretamente, a zona norte da cidade: “Metroland” (1953-1968), “Heroes in the suburbs” (1969-1974) e “Street Cries and Stage Whispers” (1974 até hoje).
Está ao nível dos melhores trabalhos deste músico cuja carreira se iniciou nos Fairport Convention até se tornar nome de referência para gente como os REM, Bruce Springsteen, David Byrne, Nancy Griffith, Elvis Costello, Shawn Colvin, Evan Dando e Bob Mould. Sem atingir o estatuto de obra-prima de “I Want to See the Bright Lights tonight” (com Linda Thompson) nem explodir no delírio de excentricidade de “In Strict Tempo”, “Mock Tudor” ilustra, no entanto, o que de mais consistente – folk-rock personalizado ao mais alto nível – existe na sua veia criativa, num álbum que carrega com menos força do que é habitual na tecla do sarcasmo e da miséria.
Do rock ‘n’ roll de coração adolescente do tema de abertura, “Cooksferry queen”, ao pungente tema final, “Hope you like the new me” (evocativo da tristeza que se infiltrava no âmago da música de três grandes nomes, entretanto desaparecidos, da folk contemporânea, e aos quais o álbum é dedicado: Nick Drake, Sandy Denny e Lal Waterson), “Mock Tudor” traça o quadro subjectivo dos subúrbios da capital inglesa na última metade deste século, com o cinzento do cimento polido pela chuva e a vida aprisionada nos reflexos das poças de água das ruas. Há grandes canções neste tríptico, como “Uninhabited man” (com Thompson na sanfona), “Sibella” ou “Hope you like the new me”, uma “pastische” dos Police, em “Crawl back (under my stone)”, apontamentos “country” (“Walking the long miles home”) e sequências de folk-rock evocativas dos Fairport de “Liege & Lief” e “Full House”, (“Two faced love”). Richard Thompson não é um compositor simpático e a sua obra adquire, por vezes, uma irritante opacidade. Por isso a relação de “Mock Tudor” com o auditor poderá ser semelhante à do músico com a sua cidade natal – de “amor-ódio”, como ele próprio diz. E a sua música, como Londres, “um lugar idealizado para se viver”.

Ali Farka Touré - Niafunké + Afel Bocoum - Alkibar

Sons

10 de Setembro 1999
WORLD

Ditado sem erros

Ali Farka Touré
Niafunké (7)

Afel Bocoum
Alkibar (6)
World Circuit, distri. Megamúsica


Nas margens do Níger, na fronteira com o Sara, no “Mali profundo, onde a música vive”, segundo as suas próprias palavras, fica Niafunké, cidade-natal de Ali Farka Touré. É aqui que o mestre dos “blues” africanos tem vivido nos últimos anos, dedicando-se em exclusivo à agricultura (“Sou em primeiro lugar agricultor e só depois músico”, diz), actividade que abandona apenas para fazer um ou outro concerto no estrangeiro, o que se vai tornando, de resto, cada vez mais raro.
Sem gravar há seis anos (“Talking Timbuktu”, com Ry Cooder, saiu em 1993), autor de dois trabalhos magníficos, “The River” e “The Source”, Ali Farka Touré regressa mais próximo das raízes do que nunca (“Conheço as escalas ocidentais mas acabam todas por não me servir”) com uma série de captações em “take” único realizadas, quase sempre ao fim da tarde, “quando as cobras e os mosquitos chegavam”, num celeiro em que a electricidade teve de ser fornecida por um estúdio móvel conduzido até ao local pelo próprio músico.
Apesar da proximidade do berço e das condições artesanais da gravação, “Nianfunké” não apresenta grandes diferenças em relação ao registo habitual do músico: cadências hipnóticas de guitarra, neste caso acompanhadas de um naipe de percussões, com as quais Ali Farka Touré nos arrasta para o coração de África. Música fora do tempo, como tal, avessa a qualquer tipo de evolução ou modificação para além das próprias transformações anímicas do intérprete, “Niafunké” reflecte pela eternidade fora os ciclos do homem e da Natureza.
Afel Bocoum é um discípulo de Ali Farka Touré, igualmente nativo de Niafunké. Nota-se. “Alkibar”, o seu álbum de estreia, para além de ter sido gravado no mesmo local, ser produzido pela mesma pessoa, Nick Gold, e ter o mesmo engenheiro de som, Jerry Boys (currículo feito nos Buena Vista Social Club), utiliza os mesmos instrumentos, além da guitarra (que Afel toca como Touré…), o njarka (violino de uma corda), o njurkçe (guitarra-ritmo) e percussões (djembé e cabaça). Imbuído (também como Touré, aliás) da tradição Sonrai, Afel Bocoum limita-se, por enquanto, a seguir as pisadas do mestre. Mais do que uma cópia, ou um ditado sem erros, um caso de (irremediável?) mimetismo.

29/01/2011

Norma Waterson - The Very Thought Of You + Lal Waterson & Oliver Knight - A Bed Of Roses

Sons

23 de Julho 1999
WORLD

Waterson & Waterson, o génio em família

Norma Waterson
The Very Thought of You (10)
Hannibal, distri. MVM

Lal Waterson & Oliver Knight
A Bed of Roses (8)
Topic, distri. Megamúsica


“The Very Thought of You” apresenta uma das vozes com mais profundidade e carregada de emoção da música popular inglesa. E não dizemos folk, porque Norma Waterson é, hoje, a voz de muitas músicas. A veterana cantora dos Watersons, formação vocal pioneira do movimento de revivalismo folk que eclodiu em Inglaterra nos anos 60, faz-se acompanhar neste álbum – dedicado à sua irmã, Lal Waterson, recentemente falecida – por dois membros do clã Carthy, o marido, Martin, e a filha, Eliza, e por dois Thompson, Richard, o ex-Fairport Convention, e Danny, o ex-Pentangle. E é, precisamente, na composição assinada pela irmã, “Reply to Joe Haines” – resposta a uma carta, considerada “infame” pela cantora, publicada no “Daily Mirror” pelo dito Haines, a propósito da morte, de sida, de Freddie Mercury –, que “The Very Thought of You” atinge um grau de intensidade emotiva e uma beleza quase insustentáveis. Um tema para a eternidade.
Na canção anterior (Norma juntou-as aos pares sobre um mesmo tema), “Love of my life”, com a assinatura do próprio ex-cantor dos Queen, Norma faz coincidir o passado e o presente, o amor e a tragédia, num registo influenciado pelo pessimismo caro a Richard Thompson, que aqui contribui com dois temas da sua autoria: “Josef Locke”, outro dos momentos de maior intensidade interpretativa do disco, e “Al Bowlly’s in heaven”, ainda sobre a temática da morte, neste caso de Fred Astaire. Loudon Wainwright II, Nick Drake (“River man”, outro clássico, transformado num tema de folk de câmara pelo violino da filha, Eliza Carthy) e John Martyn (com “Solid air”, folk-jazz ao mais alto nível), dois nomes cujas obras têm em comum mais do que se possa imaginar, e Clive Gregson contribuem também com composições para “The Very Thought of You”. Um álbum que vai do clássico “Over the rainbow”, do filme “O Feiticeiro de Oz”, aos dias da rádio e ao jazz que se ouvia na rádio (o título-tema), das baladas mergulhadas num tempo já desaparecido à própria suspensão da temporalidade.
Em “The Very Thought of You” Norma Waterson pegou em canções com história e atirou-as para os braços da eternidade. Não há muitas cantoras, no mundo inteiro, que consigam aliar a tradição e a modernidade da maneira como ela o faz. Depois da estreia, com o álbum homónimo, de 1996, Norma Waterson assina em “The Very Thought of You” um dos melhores discos do ano.
Disco do ano foi, em 1997, para este suplemento, “Once in a Blue Moon”, de Lal Waterson e Oliver Knight. À semelhança do que acontece com Norma, que se socorreu dos serviços da filha Eliza, em “The Very Thought of You”, também Lal gravou “A Bed of Roses” com a ajuda do filho, Oliver Knight, o que já se verificara aliás, no disco anterior da dupla. Em “A Bed of Roses” há mais folk e menos fantasmas à solta do que em “Once in a Blue Moon”. E um pedaço de fado (!), pelo bandolim de Jody Stecher, em “Columbine”. Compreende-se, mais do que nunca, ao escutar temas como “Bath time” ou “Long vacation”, a influência que a cantora inglesa exerceu em Marianne Faithfull. E, no lugar onde ambas se encontram agora, decerto que Lal e Nico se terão encontrado para trocar segredos e maldições.
Em Lal Waterson, na sua voz impregnada de histórias, quase todas elas tristes, habitava o desamparo e a solidão dos exilados. Mesmo quando a intrusão de uma guitarra eléctrica “progressiva” se faz sentir, como acontece em “Train to bay”, é impossível escutar “A Bed to Roses” sem sentir uma gota fria de inquietação. E deslizar por um abismo de recordações saídas dos recantos mais escuros da memória, cercados por uma coroa de flores como as da capa, tão geladas quanto a voz e a música de Lal Waterson, uma cantora que ficará para a história como das mais enigmáticas da folk britânica. O tema, já sem a sua voz, é o espaço que fica depois da morte. Um espaço vazio.

O elefante visto de muito perto [Sei Miguel]

Sons

16 de Julho 1999

Sei Miguel lança “Token”, um duplo com “single” para o Verão

O elefante visto de muito perto

Sei Miguel situa a origem da sua música nos blues. Um blues, definido como um bicho “de que não se consegue ver a totalidade por se estar mesmo em cima dele”, é a longa peça de violoncelo solo que ocupa meia hora do seu novo trabalho, um CD duplo intitulado “Token”.

Contando com um naipe de colaboradores mais numeroso do que o habitual (Rodrigo Amado, Rafael Toral, Bernardo Devlin, Luís Desirat, Manuel Mota, Pedro Chuva, Fala Miriam e Rute Praça, entre outros) e com uma diversificação de sonoridades que vão da bateria electrónica ao theremin e do trombone ao violoncelo, “Token” permite uma aproximação diferente da de álbuns anteriores. A sua estranheza é o seu principal fascínio.
Sei Miguel faz uma apresentação mais simples: “É o meu disco mais concreto.” Um disco “muito elaborado” que demorou “quatro anos ou mais” a fazer. E também bem-humorado, como atesta a referência a um “djembé temperado”. “É francamente irónico”, admite, referindo-se também ao tema que abre “Token”, uma suite estruturada segundo os andamentos clássicos do barroco, com o título “real dancer suite”. “Estou a ironizar sobre a própria noção de ‘suite’ que, neste caso, foi composta para ‘ballet’. Gravei-a praticamente sob contrato e acabou por dar em nada, daí ter assumido a suite até ao fim. É um objecto um pouco sarcástico.” No fundo “é mais um blues”, diz, desta feita a brincar.
São os blues que animam por dentro muita da música composta por Sei Miguel. “Estão na essência de ‘The ring’, tema que já me disseram ser demasiado longo.” O “demasiado longo” deste tema incluído em “Token” significa mais de meia hora de um desempenho de um violoncelo solo por Rute Praça. “E eu respondo: nem queiram saber até que ponto eu acho que é demasiado longo!”, corrobora Sei Miguel para logo acrescentar que foi “de propósito”. “Faz parte intrínseca do peso do blues. Esse peso está ali. É um blues à primeira irreconhecível, como o desenho de um elefante visto de muito perto, em que não se consegue ver com a sua presença, enquanto instrumentista, embora isso se deva, também, a ter sido feito, como acima se entende “em circunstâncias muito duras”.
Todos os paradoxos se desvanecem e todas as abstracções se iluminam se conseguirmos entrar nos meandros do pensamento do músico, encontrando no significado de cada palavra desvios ao que a norma lhes impôs. “Token”, insiste, “é um disco muito técnico.” Não usa o termo como um elogio. “Talvez seja o desequilíbrio dele – o Paulo [da editora Ananana] mata-me [Risos.] – em comparação com ‘Showtime’ que é um disco muito mais ‘soft’, no bom sentido”. “Showtime” é “um disco de jazz”, afirma, enquanto “Token” é “um disco de um músico de jazz”. Diferença subtil onde se manifesta o sentido essencial de alguém que, contra todas as aparências, a si mesmo se define como “um músico de jazz”.
“A composição e improvisação são termos úteis à tradição ocidental, académica, mas que o jazz transcendeu.” Ser músico de jazz é “participar na forma mais inacabada e mais actual de fazer música. E mais contraditória, também, porque é a música que tende mais para o abstracto”, embora continue “longe das academias e a ser uma música de rua”. E se à improvisação é possível arranjar uma definição, então ela é “estar mais próximo do mais antigo, do mais básico, do material musical e, ao mesmo tempo, estar obrigatoriamente, como consequência, na última vertente, no que se está a fazer. Na vanguarda, para utilizar uma palavra que hoje não está muito na moda”.

Anja Garbarek - Balloon

Sons

16 de Julho 1999
DISCOS – POP ROCK

Anja Garbarek
Balloon (7)
RCA, distri. BMG


Não há que enganar, Anja é mesmo filha de Jan Garbarek, o saxofonista norueguês que começou pelo jazz, derivou para a “new age” e acabou por despejar o açucareiro nos insuspeitos Hilliard Ensemble. E se é verdade que filho de peixe sabe nadar isso não significa que nadem no mesmo estilo. Anja mostra neste seu álbum de estreia estar ao corrente de algumas correntes em voga, distribuindo a sua voz fora do vulgar por um classicismo inspirado em Mathilde Santing, um ambientalismo pastoril regado no jardim de Virginia Astley, a infantilidade simulada de uma Stina Nordensteem e o mesmo culto da originalidade, trabalhada em laboratório, de Björk. Se no tema inicial a voz de Anja sugere a segurança e o mistério de Mathilde Santing, logo a seguir, em “I. C. U.”, a cantora norueguesa procede à desmontagem do hip-hop, colorindo-o com uma orquestra de cordas em pano de fundo e uma vocalização onde Anna Homler, Laurie Anderson e um anjo de Boticelli se confundem. “Picking up pieces” e “The cabinet” aliam a herança estética do hip-hop com um experimentalismo sem fronteiras. O primeiro é uma união de “loops”, barulho de máquinas e uma emissão de rádios em ondas-curtas, com Holger Czukay no horizonte. O segundo abre-se em claustros de murmúrios e reverba, lembrando uma banda como os Double-X-Project que volta a intrometer-se no mais jazzístico “She collects (stuff like that)”. “Strange Noises” agradará aos adoradores de Meira Asher e “The telescope man says” leva Virginia Astley num foguetão até uma estação espacial, na mesma órbita do tema final, “Balloon moon”, lá muito no alto.

18/01/2011

Bomba ao retardador [Anabela Duarte]

Sons

9 de Julho 1999

Anabela Duarte comete “Delito”, sete anos depois…

Bomba ao ratardador


Anabela Duarte regressa “catastrófica” e mais multifacetada do que nunca, com um disco novo, intitulado “Delito”, que já foi gravado há sete anos. Confusos? Mas isso é o que a cantora quis e conseguiu sempre provocar nas pessoas.

PÚBLICO – “Delito” foi gravado ao vivo em 1991 e surge agora como o seu novo disco. Quais as razões deste intervalo tão grande?

ANABELA DUARTE – De início, nem sequer sabia da existência destas gravações. Na altura em que trabalhava com o Paulo da Costa Domingos, surgiu a ideia de editar isto. Foram quatro espectáculos dos quais tive acesso a três cassetes DAT. Fiz a montagem no meu estúdio em casa das versões que me pareceram melhores.
P. – Mas considera mesmo que este é o seu “novo” disco?
R. – Mas o que é que se considera “novo”? Há muito tempo que não apareço e, neste sentido, é o meu disco novo, até porque mete um bocado em dia as coisas que eu quero fazer a partir de agora.
P. – Quer dizer que a Anabela Duarte de 1991 é a mesma Anabela Duarte de 1999. Foram gravações premonitórias, é isso?
R. – Sim, coisas ligadas ao campo da electrónica e à música mais pop. Claro que há coisas que não faria agora da mesma maneira, sobretudo ao nível das novas tecnologias que entretanto apareceram. Mas era um disco que estava um bocado à frente do que se andava a fazer. E nem sequer tenho manias de vanguarda…
P. – Falou na electrónica. É por aí que pretende seguir?
R. – Sim. Estou já a trabalhar nesse campo, a fazer novas composições mas já numa base de manipulação de samplers. Além dos músicos que trabalharam comigo neste disco, que se mantiveram todos, excepto o baixista, há também um DJ e programador, chamado Nuno Moita.
P. – Considera-se uma “outsider”?
R. – Claro! Se não, não tinha metade das dificuldades que tenho para fazer as coisas. E mesmo que não sentisse assim, sou forçada a senti-lo. Está tudo catalogado, embora já haja hoje uma certa abertura a coisas diferentes. Na altura este disco não fazia sentido. As pessoas interrogavam-se: “Como é que uma gaja que está na música pop vai para o fado e depois se mete no canto lírico?”
P. – Que música anda a ouvir?
R. – Gus Gus. O disco da Mimi, o “Burn”. E fui ao concerto do Tricky. Gostei bastante. Em termos de vozes femininas, nunca tive modelos. Bem, a Björk foi uma inspiração para toda a gente. É completamente xexé, embora agora ande a fazer umas coisas um bocadinho mais comerciais, mas é uma referência, sempre.
P. – Alguns dos temas de “Delito” remetem para os Mler Ife Dada. Sente o mesmo?
R. – Concordo. Tudo isto tem muito a ver com eles. Na altura os Mler Ife já eram um microcosmo.
P. – Um dos temas é uma canção de Luciano Berio…
R. – … Que já aparecia no segundo disco dos Mler Ife, “Espírito Invisível”, numa versão com guitarra e umas flautas computorizadas. Em “Delito” fiz uma versão diferente, em piano. É uma das duas composições que foram gravadas agora. A outra é “Mangissa”, um dos temas tratados electronicamente e com o tal lado gótico que referiu na crítica. Há quem diga que devia ter aberto o disco com ele.
P. – Nas notas da capa fala em “sentimentalizar a máquina e maquinizar o sentimento”. É neste conceito que está a trabalhar?
R. – Esse texto, como os restantes, é recente, um pouco para fugir às letras. Neste caso, letras de há nove anos que não têm piada nenhuma…
P. – Mas a palavra ocupa um lugar de destaque na sua obra, não é verdade?
R. – Sim, mas a palavra fonética.
P. – Então e o disco de poesia que gravou?
R. – É verdade, com o Paulo da Costa Domingos e o Hélder Moura Pereira. E no meu próximo trabalho vou usar um texto do Keats, aproveitado de uma sessão que fiz em Março deste ano na casa Fernando Pessoa, no lançamento desse disco, onde li, além de Keats, Lorca, Pessoa, o Hélder e o Paulo, claro, e um excerto de uma antologia de poesia, uma cantiga de amigo, do Herberto Hélder.
P. – O título de “Visão Lynch” é uma referência explícita ao cineasta?
R. – Sim, na altura vi alguns filmes dele. Tem um lado catastrófico e psicanalista que tem a ver comigo, com a minha sensibilidade. Sou catastrófica mas não no sentido de irmos destruir isto tudo ou de atirar uma bomba… Embora, às vezes, até me apetecesse (risos). É no sentido em que há um lado deprimente, uma tendência para fatalizar.
P. – Se pudesse, onde é que deitaria a bomba?
R. – Não era aqui no PÚBLICO. Ainda não! [risos] Deixe sair esta entrevista primeiro. Seria nas editoras. Só apostam em coisas comerciais que, às vezes, nem sequer dão resultado.
P. – De futuro, pensa cultivar algum tipo de imagem?
R. – Preocupo-me. Para este disco fui buscar, para fazer o styling, um estilista, o Dino Alves, que tem um lado de “enfant terrible”. As fotos são da Adriana Freire.
P. – Estudou canto lírico. Nunca pensou em fazer o mesmo em relação a técnicas de canto ligadas às culturas tradicionais, uma tendência, aliás, agora muito em voga?
R. – Não faço isso cientificamente, como a Fátima Miranda, por exemplo, em que passa anos a trabalhar aquelas coisas. Fiz isso em relação ao canto lírico, é verdade, mas já viu o que era outros nove anos para os outros? Quando chegasse aqui, já andava de bengalas! [risos]

17/01/2011

Whistlebinkies + Maddy Prior + Kathryn Tickell + Värttinä + La Bottine Souriante

Sons

9 de Julho 1999
WORLD

Verdadeira instituição no seu país, os Whistlebinkies cumprem, pela enésima vez, o papel que já interiorizaram, o dos Chieftains da Escócia, com “Timber Timbre”, um álbum de nuances delicadas onde os sets de dança alternam com ambientes de introspecção, respectivamente personificados pela gaita-de-foles de Rab Wallace e a harpa de Judith Peacock, ao longo de onze temas irrepreensivelmente executados e produzidos. Um dos focos de interesse de “Timber Timbre” é a voz de Judith Peacock, cuja frescura, num tema como “The sailor’s wife”, nos faz recuar ao prodigioso “Old Hag you Have Killed me”, dos Bothy Band, e às vocalizações de fada de Triona Ní Dhomnaill. (Greentrax, distri. MC – Mundo da Canção, 8)

Outra das vozes da música tradicional britânica que continua a fazer história é a de Maddy Prior, cuja obra a solo deixou, finalmente, de se desenrolar em paralelo com a dos Steeleye Span, não participando já no último álbum do grupo, “Horkstow Grange”. “Ravenchild” reforça a tendência da cantora para assinar álbuns conceptuais, com a inclusão de duas “suites”, “With Napoleon in Russia” e, sobretudo, a mais longa “In the Company of ravens”, ciclo de canções em torno da simbologia do corvo, onde é posto em evidência o ponto de maturação a que chegou a sua voz. Entre diversos momentos de excepção, destaca-se “Rigs of the time”, um clássico, ao nível dos melhores temas de sempre interpretados pela cantora, que tanto evoca a solenidade da sua antiga parceira, June Tabor, como a classe pura de Martin Carthy, que, curiosamente, gravou um álbum com este nome. “In the company of the ravens” é uma história a várias vozes que vai da balada clássica acompanhada ao piano até ao tom Grace Slickiano de “Young bloods”, passando pelo “prog folk” de “Rich pickings” e a pausa “new age celtic” de “Dance on the wind”. (Park, distri. Megamúsica, 8)

Kathryn Tickell tem o rosto, o corpo e a música mais sensuais da folk actual. Ainda para mais, desde “On Kielder Side”, só grava obras-primas, como “The Gathering” e “The Northumberland Collection”. “Debatable Lands” volta a fazer-nos babar de prazer. Confessamos a nossa fraqueza: não conseguimos resistir a esta mulher que toca gaita-de-foles e violino como uma deusa e que, recentemente, destroçou mais do que um coração (o nosso há muito que está reduzido a cacos) no festival Multimúsicas realizado em Lisboa. Que fazer quando a perícia e sensualidade de execução nas “Northumbrian Pipes” nos esmaga, o que acontece logo no tema de abertura, “The wedding/Because he was”? “Our Kate” (quem nos dera, suspiro…) provoca suores frios, tal a graça da melodia e a delicadeza com que Kathryn a executa. O violino é uma fonte de carícias, em “Road to the North/Hanging bridge/All at sea”, o mesmo acontecendo ainda no mesmo “set”, com a gaita-de-foles, antes de ser abruptamente despertada pelo acordeão de Julian Sutton. Não nos responsabilizamos pelos espasmos que as “pipes” possam causar, em “The magpie” e “Stories from debatable lands”, da mesma forma que achamos negativa toda e qualquer dependência que esta música possa provocar. O álbum termina com uma segunda versão de “Our Kate”, mais uma massagem erótica das “pipes”. Mas ela faz de propósito, ou quê? (Park, distri. Megamúsica, 9)

Eram umas moçoilas do campo, mas a fama transformou-as num grupo de profissionais da “world music”. Falamos das norueguesas Värttinä, que também actuaram no festival Multimúsicas, onde foram comparadas a Madonna e às Spice Girls, salvaguardadas as devidas distâncias, é claro. “Vihma” soa melhor que a sessão quasi-tecno de Lisboa, embora seja evidente que o quarteto vocal se está a afastar cada vez mais das raízes, ainda que as melodias mantenham o traço tradicional e o timbre das vozes conserve o típico “vibrato” rural. Entre a ânsia de fazer dançar a todo o custo e a simplicidade da maior parte dos arranjos, “Vihma” respira melhor em baladas como “Emoton”, “Uskottu ei Uupuvani” e “Aamu”. As concessões das Värttinä podem desagradar a alguns – na verdade, apenas o tema final, “Vihmax (Vihma remix)”, uma descarga redundante de “etno tecno”, descamba na facilidade sem contrapartidas – mas é impossível escapar à alegria que a sua música e as suas interpretações transmitem. Estas raparigas são fogo. (Ed e distri. BMG, 7).

Os La Bottine Souriante (nas fotos em cima) já actuaram duas vezes em Portugal, a última delas no festival Cantigas do Maio, no Seixal. Como as Värttinä, também estes canadianos transbordam de alegria, quer ao nível do reportório quer da vivacidade das execuções. A diferença está em que, no seu caso, tudo soa mais espontâneo, como uma festa onde a música tradicional é a forma mais rápida para fazer as pessoas felizes. Em “Rock & Reel”, versão actualizada e com nova distribuição do álbum do ano passado editado no Canadá com o selo Mille-Pattes, os “reels” do Quebeque rolam como uma locomotiva, os jigs saltam como aguardente na garganta (“Ami de la boteille” é um verdadeiro hino a Baco), a secção de metais é um lança-chamas de “swing”, enquanto as canções francófonas exalam o charme que lhes confere o característico sotaque do Quebeque. Folia garantida! (Hemisphere, distri. EMI-VC, 8)

15/01/2011

"Vamos lá purificar o mundo" [Meira Asher]

Sons

2 de Julho 1999

Entrevista com Meira Asher

“Vamos lá purificar o mundo”

Com “Spears into Hooks”, editado no princípio deste ano, Meira Asher pretendeu “espelhar os traumas e a violência do mundo, para que as pessoas compreendam o que se passa”. Depois de um apocalíptico concerto no Porto, o PÚBLICO falou, por sua conta e risco, com esta israelita que gosta de provocar os fanáticos e para quem o torturado se transforma, inevitavelmente, no torturador. Purificação pelo dilúvio.

A intensidade do discurso de Meira Asher tem a mesma força e o mesmo carácter de desafio que estão presentes nos seus discos e, de forma ainda mais radical, como o Porto teve oportunidade de testemunhar, nos espectáculos ao vivo. A “world music” deixou de ser uma coisa inofensiva, quando a israelita entrou em cena.
PÚBLICO – No concerto do fim-de-semana passado no Porto, parte da assistência não conseguiu suportar a violência da sua música. Costuma acontecer isso com frequência?
MEIRA ASHER – Talvez não estivessem suficientemente preparados. Mas os que ficaram ouviram com atenção. Já me aconteceu tocar em recintos absolutamente vazios, em que as pessoas rejeitaram em absoluto a minha música. No Porto houve emoções desencontradas, de choque e excitação. Em todos os meus concertos há sempre gente que sai. Se isso não acontecesse é que ficaria preocupada.
P. – O que aconteceu entre “Dissected” e “Spears into Hooks”? Não há comparação possível entre estes dois trabalhos…
R. – “Dissected” representou o culminar de dez anos em que estive envolvida no estudo da música clássica do Norte da Índia e das percussões africanas. Usei processos de composição através dos quais procurei formas diferentes de expressão para a língua hebraica. “Spears into Hooks” é um álbum conceptual. Nunca me considerei integrada na música étnica. Não se trata de uma influência, mas de uma vivência. Foi isso que fiz quando estudei música indiana. Durante sete ou oito anos dediquei-me exclusivamente a cantar no estilo “dhrupad”.
P. – Ao contrário de “Dissected”, em que os elementos acústicos eram preponderantes, “Spears into Hooks” é um disco que, em termos formais, se pode conotar com a música electrónica industrial.
R. – Deixei Israel há dois anos para ir viver no Ocidente, onde me familiarizei, de forma natural, com a electrónica. Decidi explorar a problemática das relações entre a Palestina e Israel através deste meio, o que me permitiu atingir o nível de intensidade e de ruído que procurava.
P. – Por que razão gravou “Spears into Hooks” em Ljubljana, na Eslovénia, a cidade sede dos Laibach?
R. – Conheço e aprecio bastante os Laibach. Fizeram um trabalho importante, de grande discernimento político e social. Abriram as mentes das pessoas. São artistas completos. Escolhi esta cidade por outras razões, encontrei lá métodos de trabalho que me agradaram. Depois de um curto período em que vivi em Londres, regressei a Israel já com os textos do álbum prontos. Trabalhei nessa altura com um inglês, Jeremy Azies, músico e etnomusicologista, especialista na música funerária dos Camarões. Os temas “Tiring night” e “Weekend away break”, por exemplo, foram escritos em conjunto pelos dois. Londres não me inspirou. É uma cidade demasiado virada para a moda e para as últimas tendências. Já tinha alguns conhecimentos na Eslovénia e estabeleci os meus contactos, sobretudo através de Aldo, um dos músicos do grupo Borghesia, que acabou por funcionar, um pouco, como produtor executivo na Eslovénia. Encontrei na Eslovénia a energia certa para gravar. Além disso, é um lugar com raízes balcânicas, que são também, em particular, as minhas, uma vez que o meu pai é búlgaro e os meus avós maternos são russos, mais exactamente da Letónia.
P. – “Spears into Hooks” pode ser encarado como a “música do mundo” contemporâneo?
R. – A “world music” não pode ser aquilo que a indústria quer que ela seja. “World music” pode ser facilmente aquilo que faço, embora pareça não se adaptar ao termo. A escolha da minha música para a programação do festival do Porto foi muito inteligente, já que ela reflecte a realidade actual do Médio Oriente. Há quem se contente em fazer canções com base no verso e no refrão. Eu não. Se alguém espeta uma faca no estômago de outra pessoa, eu quero que se ouça o som das tripas a sangrar.
P. – Disse que duas das doenças que afectam o indivíduo neste final do século XX são a cobardia e a apatia. São os seus principais inimigos?
R. – Sim. Quando se passa sucessivamente por várias guerras, e por toda a espécie de violência, como acontece no Líbano, por exemplo, ao fim de 32 anos de ocupação, acaba por se desenvolver a apatia. E por crescer uma “pele de elefante”, como eu costumo dizer. Uma armadura de apatia que faz da pessoa um cobarde. Deixa-se de querer mostrar os ferimentos, de falar sobre o assunto. De encarar de frente o problema.
P. – Em que é que o mundo se está a tornar?
R. – Caminha para a globalização, sem dúvida, no sentido do conforto económico. Funciona sobre o princípio simples da acumulação de poder. Gira tudo em torno do poder e não se pode fazer nada contra isso. Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder até nos tornarmos o vencedor absoluto.
P. – “Spears into Hooks” reflecte experiências pessoais, sem dúvida, mas que também vão buscar material à memória colectiva…
R. – Sim, acredito que uma parte da História da Europa – de há 50 anos atrás – se transferiu para o Médio Oriente, para um pequeno local chamado Israel. Foi uma das consequências do Holocausto. Daí o paralelo que estabeleço entre o holocausto nazi e o holocausto palestiniano. Quem sofreu torturas e vagueia por aí cheio de traumas, provocados pelo Holocausto, pode tornar-se facilmente o torturador. Como uma criança maltratada pelos pais que, em adulta, se torna o pai que maltrata os filhos. É um desenvolvimento natural. Ou um contradesenvolvimento… “Spears into Hooks” espalha amor de uma maneira negativa. Pretende espelhar os traumas e a violência para que as pessoas compreendam o que se passa.
P. – No seu espectáculo, a frase “Birkenau, aqui e agora” repete-se de forma obsessiva, como um sinal de alarme.
R. – Sim, tudo continua, independentemente do nome do campo de concentração. Os princípios permanecem os mesmos.
P. – Tem alguma explicação para os horrores que aconteceram na II Guerra Mundial?
R. – Não se pode racionalizar. Foi uma espécie de… é difícil explicar por palavras… como se as coisas se juntassem todas num determinado sentido para dar origem a um acontecimento anormal. O mais importante foi o que aconteceu depois, os desenvolvimentos que deram origem às transformações da nação alemã e, por consequência, da Europa e do Médio Oriente.
P. – É uma pessoa religiosa?
R. – Não, de maneira nenhuma.
P. – Não acredita em nada?
R. – Acredito no poder que nos faz viver e agir. Acredito que existe uma energia que nos conduz. Acredito na intuição. E nas pessoas. O que tento dizer e partilhar com as pessoas é algo muito simples: “O que é que pode desenvolver-se a partir de uma realidade violenta?” e “Estamos, de facto, prontos, para trazer mais crianças a um mundo dominado pela violência?”. Somos suficientemente responsáveis? É justo?
P. – Um dos temas mais fortes de “Spears into Hooks” é “The flood”, o dilúvio. O Apocalipse está próximo?
R. – É a história clássica da Bíblia, um grande livro de poesia. A versão em inglês soa de forma completamente diferente do original em hebraico. Gosto de provocar os fanáticos. Em “The flood” – que, segundo a Cabala, se assemelha muito ao Holocausto, razão por que pus o tema sobre Birkenau logo a seguir –, escolhi aquela parte em que Deus diz a Noé: “’Ok, man’, prepara-te!” [Risos.] Vamos lá purificar o mundo um bocadinho.

Anabela Duarte - Delito

Sons

2 de Julho 1999
PORTUGUESES

Anabela Duarte
Delito (8)
Ed. e distri. Ananana

Como uma serpente, Anabela Duarte tem evoluído na música portuguesa com a imprevisibilidade de quem busca a tentação derradeira, a forma depurada do pecado ou a inocência perdida. Do caleidoscópio dos Mler Ife Dada, para o fado orientado para o Sul e para a electricidade, dos “lieder” de Verdi e Schubert para a poesia de Hélder Moura Pereira e Paulo Costa Domingos, Anabela Duarte exemplifica a personalidade não catalogável que cultiva o gosto pelo risco. “Delito”, gravado ao vivo no Instituto Franco-Português em Abril de 1991, não representará propriamente as tendências mais recentes da cantora. Nove anos são muito tempo e, no caso de Anabela Duarte, ainda mais. Com assinaturas várias (Berio, Nuno Rebelo, Kurt Weill/Brecht) a assinalar alguns dos seus 14 temas, “Delito” une os estilhaços de um espelho. O fado futurista de “Planeta Phado” e o fado em sangue de “Alfama” harmonizam-se com a canção lírica, segundo Luciano Berio, de “Loosin Yelav”. A “new wave” sintética dos Tuxedomoon, de “Subtimente” e “Murmúrios”, e dos Unknownmix (em “Asiaouasi”) dissolve-se na chuva ácida e nos gritos de “Visão Lynch”. Os Mler Ife Dada revisitados em “Ela-ela” partem-se em mil bocados numa personificação de Lili Marlene. “Avant fado” ou “design sonoro de ritual divinatório com cyborgs africanos em busca do Graal” (em “Mangissa”, minimissa electrogótica), “Delito” não propõe qualquer sentimento único nem qualquer coerência fora dos sentidos da voz. Talvez a resposta, caso haja interesse em dar alguma, se encontre na nota aposta a “Planeta Phado”: “Sentimentalizar a máquina ou maquinizar o sentimento é uma tarefa árdua, mas não impossível. Simbiose é o futuro. Ciberlizem-se.” Simbiose dos contrários da alma.

05/01/2011

A bota sorridente porque bebe [La Bottine Souriante]

Sons

25 de Junho 1999

La Bottine Souriante lança 10º álbum com título novo

A bota sorridente porque bebe

Editado há um ano no Canadá, “Xième”, o mais recente álbum dos La Bottine Souriante, só agora foi editado em Portugal, mesmo assim uma semana antes que no resto da Europa. E com um novo nome: “Rock & Reel”. Quanto à Bota Sorridente, também poderia chamar-se Os Amantes da Garrafa. O grupo actuou recentemente no festival Cantigas do Maio, no Seixal. O PÚBLICO falou com alguns dos seus elementos e ficou a saber que o vinho, a par dos padres e das mulheres, é um tema recorrente na tradição do Quebeque. O partido comunista é que parece não ter grande freguesia…


Impregnados da herança céltica e temperada com salsa, a música dos La Bottine criou um estilo próprio através da utilização de um naipe de metais. O resultado é uma aliança entre a energia do rock’n’roll, a musicalidade da língua francesa pronunciada à maneira do Quebeque e uma alegria contagiante. Confira-se pelo novo álbum, “Xième”. Ou “Rock & Reel”, se preferirem.
PÚBLICO – “Rock & Reel” está a ser apresentado como um novo álbum do grupo, quando o disco original saiu no ano passado…
YVES LAMBERT – O disco não tinha tido ainda nenhuma distribuição fora do Quebeque, era praticamente desconhecido. Houve pessoas, como você, que fizeram alguma confusão com a diferença de títulos e com o facto de as capas, embora parecidas, não serem exactamente as mesmas. Mas isso só aconteceu com uma minoria, que conhece a existência de “Xième”. No Quebeque continua a haver apenas a edição original.
P. – “Rock & Reel” é um título um bocado redundante, não acham?
JEAN FRÉCHETTE – Não é um álbum tão tradicional como “La Traversée de l’Atlantique”, por exemplo…
Y. L. – … Mas também não é um álbum rock. Talvez a energia seja a mesma do rock’n’roll. O termo rock, no nosso caso, aplica-se mais a um determinado tipo de pulsação.
P. – O “reel” compreende-se, até porque se trata de um dos álbuns dos La Bottine onde a vertente céltica está mais presente.
DENIS FRÉCHETTE – Sim a herança céltica está sempre presente. A Escócia, por exemplo, é uma influência determinante nos “reels” do Quebeque.
Y. L. – Sim, como a música irlandesa, que constituiu uma influência enorme em meados do séc. XIX, dando origem a uma fusão do “beat” francófono com o “beat” irlandês. Mas não são só os “reels” mas também os “airs” e as canções de origem francófona. Apesar de tudo, “Xième” é bastante mais “québéquoise”, com um som mais particular.
P. – “Xième” foi editado no Quebeque com o selo Mile-Pattes, do qual os La Bottine são os fundadores. Quais são os objectivos da editora?
Y. L. – “Mille-Pattes” foi o primeiro álbum que produzimos, em 1982. A intenção era financiarmos os nossos álbuns, de nos tornarmos independentes. A música é um meio onde há muitos “tubarões”, muita gente desonesta. Por outro lado, o facto de a EMI passar a distribuir os nossos discos constitui um apoio. Mas permanecemos independentes, uma vez que é a Mille-Pattes quem negoceia com a EMI.
P. – Até que ponto existe uma tomada de posição política no grupo? À primeira vista, parecem dar relevo, essencialmente, ao humor.
Y. L. – O nosso objectivo é ajudar as pessoas a descontraírem-se, a sentirem alegria de viver. Não somos um grupo politicamente “engagé”. Cada elemento do grupo tem as suas ideias próprias. Um álbum como “Le Trésor de la Langue”, de René Lussier, isso sim, é trabalho com um belo conceito político.
P. – E os grupos folk canadianos que começaram um pouco antes da Bottine, como os Harmonium, Séguin ou Cano, conhecem?
D. F. – Fazem parte da nossa cultura, embora nunca tenhamos contactado com eles. Os Beau Damage eram um grupo maravilhoso dessa época. Não nos sentimos, de modo nenhum, isolados. Todos os anos, em Dezembro, fazemos uma digressão pelo Quebeque, em salas regionais.
Y. L. – Falta dizer que a música do Quebeque se encontra, mais ou menos há dez anos a esta parte, num marasmo. O que está na moda são os espectáculos com humoristas, as pessoas gostam de rir. O contexto actual torna difícil a existência de verdadeiros músicos no Quebeque. Os jovens estão a afastar-se da música tradicional e uma das causas é a rádio. Quanto a nós, já existimos há 23 anos e, por isso, gozamos de uma certa reputação, as salas em que tocamos costumam estar cheias.
Quando contratámos os músicos que tocam os metais, houve uma certa recusa, as pessoas consideravam-nos ainda como a banda que éramos nos anos 70, mais puristas e próximos da “real thing”. Mas, finalmente, chegados aos anos 2000, a Bottine é um grupo acarinhado. No estrangeiro foi mais fácil, há um público mais recente que não conhecia o nosso passado.
P. – Como é que trabalham a esse nível, na ligação dos metais com o reportório tradicional?
J. F. – É o Denis que faz todos os arranjos, antes tocou muita salsa. Está no grupo desde 1986 e a ele se deve a ideia de introduzir os instrumentos de metal na banda.
Y. L. – Ele e eu fizemos parte de um grupo anterior aos La Bottine, completamente diferente. E fora do contexto do Quebeque. Tocávamos música italiana, judia e indiana.
P. – Há pouco, negaram qualquer envolvimento político, mas a verdade é que já tocaram há uns anos em Portugal, na Festa do “Avante!”
Y. L. – Ao princípio nem sequer sabíamos que pertencia ao Partido Comunista, pensávamos que se tratava apenas de uma festa onde eram apresentados vários estilos de música. No Quebeque não existe nenhum partido comunista. Lembro-me, pelos jornais, de todo o folclore, em torno das bandeiras com a foice e o martelo… Na Europa é vulgar a luta entre o comunista e o capitalismo, politicamente é interessante, mas a verdade é que, no Quebeque, não acontece nada disso.
P. – É verdade que têm em Marcel Bordeleau um especialista na acústica dos sapatos?
Y. L. – Sim, já usou umas solas de plástico que tinham um bom som, mas que acabaram por se partir. A sua descoberta mais recente são uns tacões de metal, ideais para bater no estrado. É um talento natural…
P. – Os músicos dos La Bottine são verdadeiros “amantes da garrafa”? O álbum tem várias faixas dedicadas ao tema…
J. F. – Sim, sim, no meu caso até faço vinho. Também já fiz cerveja… Na tradição do Quebeque o tema da bebida é frequente. Como o clero e as mulheres…

Bagad Kemper - Hep Diskrog

Sons

25 de Junho 1999
WORLD

Os “ladrões” de Bagad

É a primeira grande surpresa da folk europeia deste ano. Vinda de onde menos se esperaria: do universo, até agora perfeitamente delimitado, das bagads bretãs. Com o seu novo álbum, “Hep Diskrog”, a nossa bem conhecida Bagad Kemper (já tocou na segunda edição do Intercéltico) mandou às favas a tradição (das bagads, já se vê…), obrigando a repensar o papel deste tipo de formações no futuro da música da Bretanha. Concebidas para um tipo de música mais em força do que em jeito, equivalentes às “pipe bands” militares escocesas, as bagads são compostas por três secções instrumentais de gaitas-de-foles, bombardas e percussões. Concorrem entre si em inúmeros festivais organizados para o efeito, sendo o impacto sonoro que provocam absolutamente estarrecedor, sobretudo quando não uma mas várias bagads se juntam para tocar ao mesmo tempo. “Hep Diskrog” foge a estas regras, propondo uma abordagem de outro tipo. O título-tema, composto pelo director artístico da formação, Jean-Louis Hénaff, e apresentado no campeonato de bagads de Lorient de há dois anos, é uma “suite” de 19 minutos em que as gaitas, as bombardas e as percussões percorrem uma gama de registos que, sem perderem a energia e o poder dos uníssonos característicos de uma bagad, colocam o acento na composição e na demonstração de um fabuloso trabalho de arranjos, numa sequência de movimentos que atinge as raias do épico. Não há Irmandade das Estrelas, Riverdance ou Héritage des Celtes que resista a esta maré vibrante trazida pela Bagad Kemper, um colectivo em actividade desde 1949 e que, à beira do novo milénio, arvora a bandeira da revolução. Além de “Hep diskrog”, “Karreg an tan” e “C’hoarzadeg”, outros dois títulos extensos, ou “Ela ela”, com um toque oriental, permitem à Bagad Kemper competir, de igual para igual, com formações de estéticas mais evoluídas como os Skolvan, Strobinell, Storvan ou Skeduz. Gilles Le Bigot e Johnny Clegg (no último tema, “Emotional allegiance”, um choque para muitos, onde a Bagad Kemper franqueia sem vergonha as portas da pop de fusão – da Bretanha com África – num tema que faria miséria nos tops!...) são alguns dos convidados de um disco absolutamente surpreendente e, voltamos a frisar, revolucionário.

Bagad Kemper
Hep Diskrog (9)
Keltia, distri. Megamúsica

Carlos Nuñez - Os Amores Libres

Sons

25 de Junho 1999
WORLD

Muiñeiras no redondel

Carlos Nuñez, rei incontestado (em termos exclusivamente técnicos, entenda-se) da gaita-de-foles galega (a concorrência esforça-se mas quando chega perto já ele dobrou a curva seguinte do caminho…), volta a fazer questão em provar que o seu reinado está longe de ter chegado ao fim. Neste aspecto, o cartão de visita que apresenta logo de entrada, em “Jigs and Bulls”, “jigas e touros”, é de tirar a qualquer um a vontade de voltar a dedilhar uma ponteira… Este e outros temas de “Os Amores Libres” funde a música céltica do Norte de Espanha e o flamenco, do Sul, a “muiñeira galega com a rumba gitana”, como Carmen Linares canta em “A orillas del Rio Sil”. “Muiñeiras da sorte” usa um disco antigo de 78 rpm do guitarrista de flamenco, Sabicas. Uma das maiores proezas de “Os Amores Libres” é ter conseguido arrumar, sem demonstrações de exibicionismo, o previsível exército de convidados (neste aspecto, projectos deste tipo estão a tornar-se numa espécie de corrida para bater recordes…), onde se incluem Donal Lunny, Carlos Benavent, Manuel Soler, Liam O’Flynn, Juan Manuel Cañizares, Dan Ar Braz, Derek Bell, Frankie Gavin, Martin O’Connor, Phil Cunningham, Arty MaGlynn, Sharon Shannon, Kevin Conneff, Rafael Riqueni, Nollaig Casey, Mike Scott (dos Waterboys, em “Raggle taggle gypsy”, a rivalizar em tom “pub” com a versão, já muito velhinha, dos Planxty), Paddy Keenan, Jackson Browne, Hector Zazou, Vicente Amigo, Bagad Kemper, um punhado de músicos árabes, um coro sufi e… Teresa Salgueiro, que canta “Maria Soliña” (ao lado de Phil Cunningham e Lyam O’Flynn), um tema do mar e de piratas turcos, em forma de “air”, como se toda a sua vida fosse passada a cantar música céltica da Galiza. Há um momento mágico, em “Os Amores Libres”: “Danza da lua em Santiago”, com o Coro Sufi Andalusi de Tânger, a electrónica de Hector Zazou e uma gravação, com vozes não identificadas, dos anos 20. Quem já lá esteve, junto à catedral, de preferência na Praça Quintana, onde chegam os peregrinos, compreenderá que magia é esta… Um disco de fusão bem mais conseguido que a anterior “Irmandade das Estrelas”.

Carlos Nuñez
Os Amores Libres (7)
Ed. e distri. BMG


Nota: O crítico desespera. Quer escrever sobre tudo o que acha que vale a pena mas o excesso de edições não perdoa. Saíram excelentes discos, entre novidades e reedições que aconselhamos vivamente. Eis uma pequena parte: “Debateable Lands”, de Kathryn Tickell, “Ravenschild”, de Maddy Prior, “A Bed of Roses”, de Lal Waterson e Oliver Knight, “Timber Timbre” dos Whistlebinkies, “Viaxe por Urticaria” dos Berrogüetto, “Rock & Reel”, dos La Bottine Souriante, “Turbulences”, de Alain Pennec, “Rain, Hail or Shine”, dos Battlefield Band, “October Song”, dos House Band, “Danú”, dos “Danú”, “Scenes of Scotland”, de Isla St. Clair, “Chap’ti, l’Va Loin”, dos La Marienne, “The Parish Notices”, de Jez Lowe & The Bad Pennies, “Couleurs Liviou” dos Skeduz, “No Chao do Souto”, dos Sons do Muiño, “This Strange Place” dos Wolfstone, “New Moves”, dos Xenos, “Naturalmente”, dos Muxicas. Reedições: “Musique d’Auvergne”, dos Gentiane, “A Collection”, colectânea de temas dos anos 60 de Martin Carthy, “Sweet England”, álbum de estreia de Shirley Collins, gravado em 1959, “Folk Roots, New Routes”, de Shirley Collins com Davy Graham, “The Bonnie Pit Laddie”, dos High Level Ranters… Na altura em que este texto estava a ser escrito, chegou à redacção a estreia da gaiteira galega Susana Seivane. O mesmo ainda não aconteceu com o novo de Norma Waterson.