29/01/2011

O elefante visto de muito perto [Sei Miguel]

Sons

16 de Julho 1999

Sei Miguel lança “Token”, um duplo com “single” para o Verão

O elefante visto de muito perto

Sei Miguel situa a origem da sua música nos blues. Um blues, definido como um bicho “de que não se consegue ver a totalidade por se estar mesmo em cima dele”, é a longa peça de violoncelo solo que ocupa meia hora do seu novo trabalho, um CD duplo intitulado “Token”.

Contando com um naipe de colaboradores mais numeroso do que o habitual (Rodrigo Amado, Rafael Toral, Bernardo Devlin, Luís Desirat, Manuel Mota, Pedro Chuva, Fala Miriam e Rute Praça, entre outros) e com uma diversificação de sonoridades que vão da bateria electrónica ao theremin e do trombone ao violoncelo, “Token” permite uma aproximação diferente da de álbuns anteriores. A sua estranheza é o seu principal fascínio.
Sei Miguel faz uma apresentação mais simples: “É o meu disco mais concreto.” Um disco “muito elaborado” que demorou “quatro anos ou mais” a fazer. E também bem-humorado, como atesta a referência a um “djembé temperado”. “É francamente irónico”, admite, referindo-se também ao tema que abre “Token”, uma suite estruturada segundo os andamentos clássicos do barroco, com o título “real dancer suite”. “Estou a ironizar sobre a própria noção de ‘suite’ que, neste caso, foi composta para ‘ballet’. Gravei-a praticamente sob contrato e acabou por dar em nada, daí ter assumido a suite até ao fim. É um objecto um pouco sarcástico.” No fundo “é mais um blues”, diz, desta feita a brincar.
São os blues que animam por dentro muita da música composta por Sei Miguel. “Estão na essência de ‘The ring’, tema que já me disseram ser demasiado longo.” O “demasiado longo” deste tema incluído em “Token” significa mais de meia hora de um desempenho de um violoncelo solo por Rute Praça. “E eu respondo: nem queiram saber até que ponto eu acho que é demasiado longo!”, corrobora Sei Miguel para logo acrescentar que foi “de propósito”. “Faz parte intrínseca do peso do blues. Esse peso está ali. É um blues à primeira irreconhecível, como o desenho de um elefante visto de muito perto, em que não se consegue ver com a sua presença, enquanto instrumentista, embora isso se deva, também, a ter sido feito, como acima se entende “em circunstâncias muito duras”.
Todos os paradoxos se desvanecem e todas as abstracções se iluminam se conseguirmos entrar nos meandros do pensamento do músico, encontrando no significado de cada palavra desvios ao que a norma lhes impôs. “Token”, insiste, “é um disco muito técnico.” Não usa o termo como um elogio. “Talvez seja o desequilíbrio dele – o Paulo [da editora Ananana] mata-me [Risos.] – em comparação com ‘Showtime’ que é um disco muito mais ‘soft’, no bom sentido”. “Showtime” é “um disco de jazz”, afirma, enquanto “Token” é “um disco de um músico de jazz”. Diferença subtil onde se manifesta o sentido essencial de alguém que, contra todas as aparências, a si mesmo se define como “um músico de jazz”.
“A composição e improvisação são termos úteis à tradição ocidental, académica, mas que o jazz transcendeu.” Ser músico de jazz é “participar na forma mais inacabada e mais actual de fazer música. E mais contraditória, também, porque é a música que tende mais para o abstracto”, embora continue “longe das academias e a ser uma música de rua”. E se à improvisação é possível arranjar uma definição, então ela é “estar mais próximo do mais antigo, do mais básico, do material musical e, ao mesmo tempo, estar obrigatoriamente, como consequência, na última vertente, no que se está a fazer. Na vanguarda, para utilizar uma palavra que hoje não está muito na moda”.

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