Faltava o álbum
de estreia para ficarem completas as remasterizações da discografia mais
relevante dos Caravan, banda emblemática de um movimento, com origem nos anos
60 em Canterbury, que teve nos Soft Machine, Gong, Egg, Matching Mole ou
Hatfield and the North outros dos seus expoentes. Mas os Caravan eram especiais
na medida em que a sua música aliava uma pureza que hoje se pode considerar
impossível de reproduzir (o grupo continua em atividade, ao fim de 36 anos…)
com o espírito de uma Inglaterra surreal que, no campo do Progressivo, os
Genesis, de “Nursery Cryme”, também souberam vislumbrar. Ao contrário, porém,
da banda de Peter Gabriel, os Caravan baseavam as suas canções no jazz e num
psicadelismo reformista, segundo uma fórmula de fazer a pop swingar que apenas
teve paralelo nos primeiros e canterburyanos álbuns dos Soft Machine. Sem a
complexidade orquestral dos posteriores “If I Could do it all over again, I’d
do it all over you” e “In the Land of Grey and Pink”, “Caravan” tinha já,
porém, o dom de tocar nas melodias com uma varinha de condão.
Não fora o contrassenso, diríamos que nunca a música de Nico
soou tão radiante como nesta antologia em que, pela primeira vez, a sua música
foi objeto de remasterização. É que o sol e a luminosidade nunca fizeram parte
do vocabulário musical e existencial da “deusa da lua”, como já chamaram à
ex-modelo, atriz de Fellini em “La Dolce Vita”, amante de Brian Jones, Bob
Dylan, Lou Reed, Jim Morrison e Alain Delon, e cantora no mítico álbum da
banana dos Velvet Underground, que a 18 de Julho de 1988 morreu de um ataque
cardíaco, quando passeava de bicicleta em Ibiza, e que de si própria dizia:
“sou uma completa estranha para mim mesmo”.
“Innocent & vain” arranca com “I’ll keep it with mine”,
do álbum de estreia de 1966, “Chelsea Girl”, mas a novidade é a inclusão de uma
versão alternativa (sem vozes masculinas) de “All tomorrow’s parties”, o hino
com sabor a espumante estragado de “The Velvet Underground & Nico”, de onde
foi igualmente retirado “Femme fatale”, cápsula de amor e cianeto, derradeira
golfada de ar ainda não completamente saturado que Nico respirou antes de se
lançar nas águas gélidas da noite.
Mas se “Chelsea Girl” era ainda a vida, embora já manchada
pela mágoa, e o calor de alguma humanidade, os dois álbuns seguintes, “The
Marble Index”, equivalente musical de uma lápide funerária, e “Desertshore”,
marcado pelo cinema poético-suicidário de Philippe Garrel, apresentavam já o
som gótico e mortuário por que haveria de ficar “conhecida”, com a sua voz
arrancada dos abismos a arder em combustão fria na religiosidade de um órgão de
pedais. Ainda que nenhum destes dois álbuns (por razões contratuais?) contribua
para o alinhamento da presente antologia, o seguinte, “The End” (1974) faz-se
representar por quatro: “You forget to answer”, “Valley of the kings”, “Secret
side” e “Innocent and vain”, exemplos tão gloriosos como trágicos da música em
forma de dilúvio interior de Nico, tornada rainha por breves instantes pela
produção majestosa do seu antigo companheiro nos Velvet, John Cale.
“Innocent & Vain” termina com o tema-ícone daquele
álbum, uma espantosa e descarnada interpretação de “The end”, de Jim Morrison,
aqui curiosamente através da versão ao vivo incluída em “June 1st, 1974”,
litania do fim a contrastar com as canções dos seus companheiros neste trabalho,
Kevin Ayers, John Cale e Brian Eno.
14 anos após a sua morte, 17 após a gravação do seu último
álbum, “Camera Obscura”, a música de Nico continua a petrificar-nos com o que,
a propósito de “The Marble Index”, o jornalista Lester Bangs definiu como “a paixão
escondida por detrás de uma auto-tortura sem sentido”.
Depois de louco é
que o homem brilhou com intensidade máxima. O “louco”, já adivinharam, é Julian
Cope, “Saint Julian”, o ex-líder dos Teardrop Explodes que se fez fotografar
vestido com uma carapaça de tartaruga, é tu cá tu lá com os extraterrestres, o
cartógrafo da Inglaterra secreta dos druidas, escritor, erudito do krautrock,
“acid head”, demente, genial e, acima de tudo, rocker de alma e coração. A
“loucura” adveio com “Peggy Suicide” e, a partir daí, cada novo álbum é melhor
que o anterior, de “Jeovahkill” a “Autogeddon” e “20 Mothers”, culminando na
bíblia do “space rock” dos anos 90 que é “Interpreter”. “The Collection” não
consegue, no entanto, aguentar a pedalada, preferindo mostrar o Julian Cope
“relativamente normal” de “St. Julian” e “My Nation Underground”, indo o
atrevimento até “Jeovahkill”, de 1992. O que significa que o Cope épico e
espacial da atualidade foi preterido a favor do compositor de clássicos pop
como “Sunspots”, “Pristeen” e “Beautiful love”. Não será, pois, uma odisseia no
espaço mas uma amostra explosiva dos preparativos que antecederam a largada do
foguetão.
Para dar cabo da cabeça e dos nervos, não há nada melhor do
que escutar um álbum em vinil de Lee Ranaldo, intitulado “From Here to
Infinity” (1987), em que, seja qual for o ponto onde se faz descer a agulha
sobre o disco, esta fica bloqueada, ficando a girar eternamente sobre a mesma
espira (“locked grooves”). Impossível ser mais minimalista e repetitivo.
É a faceta
mais radical do guitarrista e compositor dos Sonic Youth – por sua vez, uma das
bandas de rock americanas mais dadas à experimentação, como está patente no
álbum “Goodbye 20th Century”, com versões de compositores contemporâneos como
Cornelius Cardew, John Cage, Christian Wolff, Georg Maciuna, Pauline Oliveros e
Steve Reich, gravado pelos Sonic Youth no seu próprio selo Syr (“Sonic Youth
Records”). Em Serralves (e, uma semana mais tarde, a 15 e 16, na Gulbenkian, em
Lisboa) não se prevê que Ranaldo vá tão longe. Mas nunca fiando. Onde a
improvisação leva noa se sabe se existe estrada de regresso.
O ponto de
partida para ele e o português Rafael Toral discorrerem musicalmente é a
exposição de Robert Smithson e Bernd & Hila Becher, “Field Trips/Viagens de
Campo”, patente no Museu de Serralves até dia 3 de Março, sabendo-se da influência
que o primeiro exerce sobre o trabalho do guitarrista americano.
A
improvisação servirá de guia através, não só do diálogo entre os dois
guitarristas, como da relação estabelecida entre eles e as imagens criadas pela
artista multimédia Leah Singer, e o “Video Caleidoscópio”, de João Paulo
Feliciano, ambos manipulados em tempo real.
Lee
Ranaldo, além de membro-fundador, guitarrista, compositor e letrista dos Sonic
Youth, colaborou com o Wagner das guitarras elétricas, Glenn Branca, o papa do
pós-rock Jim O’Rourke, os Master Musicians of Jajouka e o baterista de jazz
William Hooker.Gravou vários álbuns a solo de guitarra e de “spoken word”, de
que é exemplo o recente “Amarillo Ramp”. Publicou livros de poesia. De viagem.
“Road Movies”. À maneira de Ginsberg e Kerouac, profetas da “beat generation”
dos anos 60. “Eric’s Trip”, “Pipeline/Kill Time” e “Mote” são alguns dos temas
mais conhecidos escritos por si para os Sonic Youth. “Put Moore Bllod into the
Music”, título de um dos filmes em que participou como ator, é uma legenda
adequada à sua atitude perante a arte.