31/10/2008

Holger Hiller





LP

11 DE MAIO DE 1989
EXPRESSO














HOLGER HILLER

Ao falarmos hoje em vanguarda teremos forçosamente de referir o nome de HOLGER HILLER. Desconhecido de quase todos, um génio para quem conhece a sua música. Para os primeiros, um conselho: Escutem os sons que este senhor faz e pasmem. Depois, já refeitos do choque, podem deitar fora os 80% dos vossos discos, cuja posse vos fará corar de vergonha. Mas antes leiam este artigo e vão aguçando o apetite.
Comecemos por uma breve biografia musical. Depois de uma educação e treino musicais que abrangeram campos tão diversos como a música improvisada, música terapêutica e pesquisa musical com crianças, HILLER começou a sair da casca e a aventurar-se por áreas de mais fácil acesso. Assim, após a tempestade de punk, trabalho com músicos de grupos tornados lendários na cena underground alemã, como os DER PLAN, D.A.F. e EINSTURZENDE NEUBAUTEN. Algumas experiências bizarras desta altura incluem uma banda sonora para o clássico do Expressionismo alemão, o filme “Dr. Caligari” de MURNAU, composta ao vivo durante a projecção pública do mesmo e em que as imagens serviram de estímulo directo para a feitura da música.
Já na década de 80 fundou os PALAIS SCHAUMBURG que rapidamente abandonou para se dedicar de novo a actividades menos ortodoxas: Um 12” com a participação de barqueiros Vietnamitas ou uma nova versão para uma ópera para crianças originalmente composta pelo erudito PAUL HINDEMITH. Este período culmina com a sua própria ópera “Guten Morgen Hose” (“Bom dia, calças”) em que HILLER utiliza exclusivamente vozes de pessoas da rua, trazidas directamente para o estúdio e instadas a improvisarem as partes vocais, para além de samples de outros discos. Dificilmente imagino o resultado, mais facilmente imagino as caras dos eventuais auditores.
Finalmente os álbuns a solo que o impõem definitivamente junto das minorias esclarecidas: “Eins Bundel Faulnis in der Grube” e mais recentemente, “Oben im Eck”. Ambos constituindo a bíblia do sampling inteligente. E se o primeiro é excepcional, o mais recente é definitivamente uma obra-prima. Estes dois discos vão aparecendo, de quando em quando, em número reduzido de exemplares, por algumas discotecas, mais atentas da capital. Ficam a saber.
Desde há cinco anos para cá, HOLGER HILLER tem trabalhado como produtor e participado em espectáculos e bienais por essa Europa fora. Para além de projectos relacionados com a Rádio e o Cinema, HILLER é o inventor do “Scratch-Video”(!). Contada resumidamente a sua história, passemos à música propriamente dita. Em qualquer dos dois álbuns o sampler é definitivamente privilegiado. HILLER é seu rei e senhor, revelando uma mestria total e um absoluto rigor na utilização desta técnica, propensa a certo tipo de facilidades. O resultado sonoro situa-se algures entre a música de cabaré e a música concreta do ano 2000, com “Nursery rhymes” para crianças à mistura. Se BRECHT ou K. WEILL compusessem a meias com os E. NEUBAUTEN e com DIAMANDA GALAS a cantar, o resultado seria talvez semelhante a qualquer destes discos. Ou então definamo-lo como “Sample-Operas” para esquizofrénicos esclarecidos.
Só para despistar, refira-se ainda a presença, em “Oben im Eck”, de MIMI IZUMI KOBAYASHI, a japonesa que toca piano e produz o último de MATHILDE SANTING. Amantes do Novo, pesquisadores das regiões mais longínquas da Música, estes dois discos foram feitos especialmente para vocês. Ouçam e rendam-se. Como eu.
P.S. A fotografia que acompanha este artigo é a de um ouvinte que não resistiu ao choque e à comoção provocados pela audição destes dois discos. São precisas pois certas cautelas!...

Biota/Mnemonists

LP

9 DE MARÇO DE 1989
EXPRESSO

BIOTA/MNEMONISTS

DISCOGRAFIA DE ÁLBUNS
BIOTA- VAGABONES & RACKABONES (duplo)
- BELOWING ROOM
- TINCT

MNEMONISTS- HORDE
- GYROMANCY
- NAILED


Há música e músicos deveras estranhos. Os BIOTA exageram na estranheza. Não fazem música, na acepção usual do termo; os sons produzidos em cada disco deste grupo são a manifestação primeira, emergente do caos primordial. Com os BIOTA assistimos ao próprio nascimento da música, à formação das formas originais, anteriores a qualquer separação de géneros ou estilos. Ou então, dependendo da perspectiva em que nos colocarmos, trata-se da síntese definitiva. A unificação de todos os sons, todos os ritmos e melodias. O ruído final. Uma nova noção de harmonia.
Se quisermos pôr a questão em termos de energia, os BIOTA são a convergência de todas as energias telúricas, subterrâneas. Há na sua música uma pulsação quase monstruosa, como se o coração e as entranhas da terra se derramassem para o exterior através de sons brotando com contínua torrente de lava. Estas as imagens, as aproximações possíveis. Passemos aos factos e às certezas (poucas) que os BIOTA condescendem em nos revelar.
Facto 1: BIOTA é uma das duas designações para um projecto estético global, único, sendo a outra MNEMONISTS. Estas diferentes designações para um mesmo núcleo principal de músicos apresentam discografias separadas mas de características comuns.
São elas: Uma absoluta radicalidade estética, aos níveis conceptual e formal. Um cuidado extremo na apresentação final de cada trabalho. Assim, cada disco de um ou outro destes dois agrupamentos é quase sempre acompanhado por um conjunto de gravuras, da autoria dos seus próprios membros. Nenhum pormenor é descuidado, apresentando-se o produto final como uma autêntica obra de arte. O que nos conduz ao Facto 2: A ligação contínua entre a imagem pictórica e o som. Escutar um disco dos MNEMONISTS / BIOTA é como assistir a um filme de misterioso enredo e difícil apreensão. Se quisermos encontrar uma lógica nestas sequências de sons e imagens perfeitamente alucinantes, teremos que recorrer à (i)lógica do próprio inconsciente. O discurso ganha coerência, o puzzle é solucionado, o mistério parcialmente revelado. Passemos então para o Facto 3: O culto assumido pelo misterioso e pelo obscuro. Paradoxalmente (ou não), a par da profusão de imagens que acompanha cada disco, constata-se a quase total ausência do outro tipo de informações. Os próprios títulos das faixas são perfeitamente insondáveis. Uma das gravuras incluídas num dos álbuns intitula-se «MYSTERIUM TREMENDUM ET FASCINORUM». Elucidados?
Paradoxo final: Os BIOTA / MNEMONISTS (já agora refira-se que são americanos) tocam uma profusão de instrumentos acústicos (incluindo medievais!) soando a sua música como se fosse electrónica…
Da discografia do colectivo conheço três álbuns, todos eles inevitavelmente gravados para a Recommended Records: «HORDE», dos MNEMONISTS e «VAGABONES & RACKABONES» (duplo) e o mais recente, «TINCT», dos BIOTA. «HORDE» soa como um cruzamento dos NURSE WITH WOUND com música barroca, povoado de sons parasitários de toda a espécie. «VAGABONES» lembra por vezes os RESIDENTS da 1.ª fase, mas não se iludam, os BIOTA conseguem ser ainda mais estranhos e obscuros. «TINCT» mistura uma espécie de free jazz como se fosse tocado por um grupo de doentes mentais, com órgão de igreja e abstracções sonoras próprias da música concreta. A originalidade é, em qualquer dos casos, total.
Os BIOTA / MNEMONISTS construíram um universo musical único, completamente à parte e alheio a todos os pontos de referência habituais. Cabe a cada um a exploração dos seus segredos. Mas antes de descerem às profundezas, munam-se de luz!


Nota: No artigo sobre Hector Zazou, por mim redigido, publicado há quinze dias, mencionei Joseph Racaille, seu companheiro nos ZNR, como não sendo pianista. Acontece que o é, de facto, para além de também tocar sopros. Poucos terão notado o lapso, de qualquer forma aqui fica a correcção.

Hector Zazou

LP

23 DE FEVEREIRO DE 1989
EXPRESSO

Hector Zazou

Mais um excêntrico genial para acrescentar à lista. Desta vez vindo de França, o que é pouco usual. Hector Zazou de seu nome, o homem das orelhas descomunais (vide a foto junta ou a capa de «Reivax au Bongo»…), detentor, pois, de um excepcional ouvido para a música. Façamos, então, um breve resumo do percurso musical da orelha, perdão, do homem em causa. Logo nos primórdios, a assinatura de uma obra-prima, o clássico Barricades 3, gravado conjuntamente com outro francês bizarro, Joseph Racaille, sob a designação de ZNR. Joseph Racaille é um apaixonado pela música de Erik Satie, o que até seria bastante normal se fosse um pianista. Mas não é. É um soprador de cornetas, nomeadamente os saxofones e o clarinete. Por seu lado, o nosso génio Zazou é um ferrenho e tecnicamente perfeito manipulador da electrónica. Ambos partilham o gosto pelos arranjos mais que inusitados e um «approach» em relação aos respectivos instrumentos, perfeitamente desconcertante. Ao escutar este disco, não há barricada que nos valha, neste ataque em força da música mais estranha e exótica que se possa imaginar.

Os ZNR gravaram ainda, em álbum, um Traité de Mecanique Populaire. Nunca ouvi, mas pelo título deve ser mesmo um tratado. A partir daqui cada um seguiu o seu caminho. Deixemos Racaille para depois e acompanhemos o nosso amigo Heitor. «La Perversita» (que título!) é o outro álbum que desconheço de ouvido. Foi o primeiro que gravou a solo. Depois, mais três obras-primas de enfiada: «Noir et Blanc», o primeiro disco gravado em colaboração com o vocalista africano Bony Bikaye, contando, ainda, com a participação do grupo de música electrónica CY1. Síntese magistral deste último tipo de música com as sonoridades africanas. Deste disco foi retirada uma faixa com posterior edição em maxi, produzida por Adrian Sherwood. Depois foram dois álbuns gravados para a série de prestígio Made to Measure, o já citado «Reivax au Bongo» e «Géographies». O primeiro conta novamente com a activa colaboração de Bony Bikaye, em todo o lado A. Desta vez, a coisa soa como uma espécie de psicadelismo electrónico africano (ufa!). Só escutando se acredita. O outro lado é uma sequência de cânticos sintetizados; a voz feminina, puríssima, sobre ou misturada com uma electrónica grandiosa, à Klaus Schulze, se este tivesse conseguido dar o salto para uma estética dos anos 80, digo, 90! O outro álbum gravado para a Made to Measure, «Géographies» é o mais difícil e complexo de toda a discografia do músico. Soa aos clássicos eruditos (!). Música de câmara da selva amazónica? Paris, Europa ou outra galáxia qualquer? Indubitavelmente um dos discos mais controversos e originais da década.

Hector Zazou gravou, ainda, o mini «Mr. Manager», novamente de parceria com o seu amigo Bikaye; um exercício de Funky, género que não aprecio particularmente, mas do qual reconheço ser este um exemplo brilhante. Finalmente, o recentíssimo e mais acessível «Guilty», álbum em que Zazou e Bikaye se divertem e nos divertem, pondo-nos a dançar das mais variadas maneiras. Com «Guilty» Zazou veio dar ao mesmo lugar onde, por outras vias, vieram, também, desembocar os suíços Yello.

Resta, por último, acrescentar que toda a discografia mais recente deste músico tem sido regularmente importada pela discoteca Contraverso (passe a publicidade), isto para os interessados, é claro. E pronto, foi uma breve história de Hector Zazou, o homem cujo talento consegue ainda ser maior do que as orelhas.

Skeleton Crew - The Country Of Blinds


LP

2 DE FEVEREIRO DE 1989


SKELETON CREW
THE COUNTRY OF BLINDS
Recommended, imp. contraverso

Fred Frith está em todas. Presente em quase tudo o que de mais importante e original se vai fazendo em música por este mundo fora. Seria fastidioso enumerar todos os discos e projectos de que Frith fez, de algum modo, parte. Citemos apenas alguns dos mais importantes: Henry Cow, Art Bears, Massacre, Etron Fou Leloubaln, duos com Chris Cutler ou Henry Kaiser, colaborações com Robert Wyatt, Brian Eno, um nunca mais acabar de ramificações por variadíssimos ramos da música actual. Uma coisa é certa: por onde passa deixa bem vincada a sua marca, seja como compositor, produtor ou simples intérprete. E claro que a par de toda esta actividade com outros músicos, Fred Frith conta já com uma impressionante discografia a solo, donde se destacam obras-primas como os álbuns «Gravity», «Speechless» ou o recente duplo «The Technology of Tears».
Os Skeleton Crew são um dos seus mais recentes projectos colectivos. Têm no activo dois álbuns: para além deste, a estreia com «Learn to Talk». Constituem o grupo, mestre Frith que toca neste disco guitarra, baixo, violino e bateria, para além de cantar, mais dois outros excepcionais músicos: Tom Cora, o Jimi Hendrix do violoncelo electrificado e Zeena Parkins na harpa, também electrificada. Cada um destes dois toca ainda mais alguns instrumentos, enfim, são só três mas parecem muito mais.
«The Country of Blinds» é mais radical que o seu antecessor «Learn to Talk», tanto ao nível dos textos como ao da música. Aqueles podem ser classificados como de intervencionistas, politicamente empenhados, no sentido mais nobre do termo. Denunciam, de um modo não panfletário, os pobres do poder nas sociedades pró-totalitárias em que vivemos. As nossas fraquezas também não são poupadas. «The Country of Blinds», «Man or Monkey», «Dead Sheep» e sobretudo «The Hand That Bites» são alguns títulos de faixas deveras elucidativos. Musicalmente os Skeleton Crew retêm do jazz e do rock o melhor de cada um. Do primeiro, a riqueza rítmica e a capacidade de improvisação; do segundo, uma energia enorme. Predominam as cordas, claro. É preciso não esquecer o facto de Fred Frith ser um dos mais geniais guitarristas da actualidade. Este disco demonstra-o à saciedade. Também Tom Cora e Zeena Parkins não deixam os seus créditos por mãos alheias, nos respectivos instrumentos principais, o violoncelo e a harpa. Há também canções, espalhadas ao longo deste álbum. Canções estranhas, amarguradas, com as vozes a gemerem ou a gritarem, por vezes à beira da histeria. Sons e palavras que nos arranham a consciência e nos arrancam do conforto e preguiça com que tantas vezes contemporizamos, ao escutar discos que nos pedem muito mais. Habituámo-nos a encarar a audição de um disco como algo de passivo. Está mal. É necessário educar os ouvidos e o gosto, espicaçar a sensibilidade, arriscar novas experiências e sons desconhecidos. É preciso procurar a originalidade e a qualidade onde elas verdadeiramente estão. A inovação transcende sempre o tempo, quanto mais as modas!...
A música do país dos cegos acorda os sentidos e sacode a inteligência. Confunde e espanta. Atrai e repudia. Brinca connosco a sério. Muitos detestarão este disco, outros encontrarão nele o estímulo para o experimentar de novos percursos e novas músicas, menos populares, é certo, mas de certeza mais ricas e compensadoras.
Abram os olhos, apurem o ouvido! Em terra de cegos…