06/10/2008

O escultor do silêncio [Brian Eno]

Pop Rock

5 JUNHO 1991

O ESCULTOR DO SILÊNCIO

Com o lançamento de oito títulos em CD, nos próximos dois meses, completa-se entre nós a reedição da discografia de Brian Eno – um dos poucos génios verdadeiros da música das duas últimas décadas. Entre as plumas e o silêncio, fica traçado o percurso fascinante de um cultista da perfeição, em constante demanda do segredo que existe para além da música.

A dialéctica pressupõe a existência de opostos. Afirmar algo é afirmar sempre em oposição a qualquer coisa. Todo o pensamento ocidental obedece aos ditames da dialéctica. E, por conseguinte, a música – linear, escravizada pela História. No rock e na pop é o império da canção. Brian Eno começou por escrever canções em que parodiava a banda onde ganhara notoriedade, os Roxy Music, mas cedo desistiu – “não tinha nada para dizer, nenhuma mensagem para transmitir.” Se “Here Come the warm Jets” não diz nada, é genial na forma como o faz.
Anulada a oposição e a contradição, desaparece o conflito e, logicamente, o discurso. O próprio imobiliza-se, aprisionado na cruz dessa cessação. No centro da cruz, emerge, glorioso, o silêncio.
Toda a música de Brian Eno, da fase dita “ambiental”, representa essa anulação da dialéctica, recuperando o silêncio como matriz geradora de uma nova realidade, eterna e instantânea, que radica na reencontrada pureza do olhar e do ouvir.


Música espacial

Não por acaso, a palavra foi progressivamente abolida dos seus discos (“Quando canto, penetro na música e impregno-a da minha personalidade. A partir desse momento o ouvinte passa a observar-me e esquece o resto, provocando o contrário do efeito pretendido – projectar quem ouve na música.”), ou então despojada de qualquer racionalidade, seguindo o devir aleatório das cartas, como em “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” (1974), ou “Another Green World” (1975).
“Discreet Music” (1975), “Music for Films” (1976), e toda a obra posterior a solo (“Music for Airports, 1978, “On Land”, 1982, “Apollo Atmospheres and Soundtracks”, 1983, e “Thursday Afternoon”, 1985), funcionavam como “espaços”, habitáveis pelo ouvinte, actualizando finalmente, em termos mediáticos, o conceito anteriormente enunciado por LaMonte Young com o seu “teatro da música eterna”. O relevo desde então concedido às “instalações” (musicais, escultóricas, vídeo – “In Harmonic Space”, 1987, Florença, “Spaces” 1 a 20, “Relics, Charms & Living Rooms from the recent past found hidden among strange Trees”, 1988, Berlim, “Tropical Rainforest Sound Installation”, 1989, Nova Iorque, etc.) ou ao “muzak” aprofundam e reorientam ainda essa noção da “obra de arte” como espaço intemporal que permite uma relação interactiva entre o indivíduo e o ambiente.
Espaço de ordem/desordem (de uma harmonia natural, primordial), à semelhança de um jardim Zen. Nele, o artista já não cria, no sentido tradicional do termo (e neste aspecto frequentemente se alude ao facto de Brian Eno “apenas” desenvolver ideias alheias), antes desempenha o papel de ajudante, daquele que auxilia o movimento natural das coisas, a sua manifestação. Como um jardineiro que apara as sebes e ajuda as plantas a crescer. Em “On Land” (dos discos preferidos pelo autor) a natureza torna-se autónoma, ideal – “a grande libertação será quando os humanos se tornarem insignificantes e o mundo girar sem precisar deles.”
Desaparecido o sujeito, altera-se o ritmo do real e da arte. No vídeo em formato vertical, “Thursday Afternoon”, a câmara filma a passagem das nuvens pelo céu de Nova Iorque, limitando-se o artista a um trabalho de filtragem e enquadramento.


Estados hipnogógicos

Elucidativas são as notas impressas na contracapa de “Discreet Music”, onde Brian Eno descreve todo o processo que, na imobilidade de uma cama de hospital, o levou à “descoberta” de uma “nova maneira de ouvir música – como parte integrante do ambiente circundante, tal qual as tonalidades da luz ou o som da chuva”. As dualidades emissor-músico/receptor-ouvinte, exterior/interior anulam-se nessa “música discreta”, que tudo unifica e apazigua. Para Brian Eno, compositor, o rock e a pop ficavam enterrados para sempre, pelo menos até John Cale, anos mais tarde, o convencer do contrário, a ponto de gravarem juntos “Wrong Way up”, ou de, em entrevista recente, se declarar rendido à sedução do ruído.
Nos tempos que correm, a música e atitudes de Brian Eno acabam por revelar-se revolucionárias, na medida em que se assumem como alternativa radical ao paradigma do rock’n’roll – “o rock’n’roll não passa de negócio” – dizia em 1983 – “já não se bate contra nada”, ou “quando toda a gente grita, são aqueles que murmuram que são subversivos.” Para Eno, acaba por ser “mais interessante incitar os jovens a sentarem-se e a reflectir do que a reagirem de forma primária ao mínimo estímulo”. Refere-se a este estado de relaxamento interior como “hipnogógico”, entre o sonho e a vigília. “No Pussyfootin’” (1973) e “Evening Star” (1975), de parceria com Robert Fripp, são duas obras-primas da música hipnogógica, com o diabo à espreita.


Viagem infinita

Mas para este diletante da arte, que uma vez se autodefiniu como “não-músico”, talvez o mais importante seja a constante descoberta, novas maneiras de olhar e de interpretar o mundo. Desde as estratégias oblíquas da fase pós-Roxy Music (“Taking Tiger Mountain”, “Another Green World”, “Before and after Science”) às imagens vídeo verticais; da produção das músicas “obscuras” de Michael Nyman, John Cage ou Gavin Bryars à modernidade pop dos Devo, Talking Heads, Carmel e U2; das desafinações controladas dos Portsmouth Sinfonia aos espasmos niilistas de “No New York”; das músicas imaginárias do “quarto mundo” de Jon Hassel e Laraaji ao manifesto cibernético da trilogia com Bowie “Low”/”Heroes”/”Lodger”; das cintilações luminosas da Harold Budd, Michael Brook e o irmão Roger ao som abrasivo dos Neville Brothers e às colagens infernais de “My Life in the Bush of Ghosts” (1981, com David Byrne), é sempre a mesma busca do novo e de novas formas de o representar.
Viagem interminável, pelas formas de que hão de vir – “a imaginação é exactamente isso: pegar em factos e ideias e organizá-los para exprimirem algo. Quando era criança, havia um canto debaixo da escada que, conforme os nossos jogos, podia ser o centro de controlo de uma base militar ou o esconderijo secreto de um bando de piratas. Cada ideia nova era uma nova maneira de olhar a mesma coisa.” Eis o segredo.


Discreet Music (1975) ****
Brian Eno estava de baixa, numa cama de hospital. Na época, alimentava-se mal e dormia pouco, procurando cultivar uma imagem de romântico, tísico e iluminado. Uma amiga ofereceu-lhe um disco, para o entreter. Acontece que a aparelhagem tinha um defeito num dos canais, para além do volume reduzido ao mínimo. Fraco de mais para se levantar e aumentar o som, Eno foi obrigado a apurar o ouvido. Então, no seu espírito febril, fez-se luz. A música, no limite da audibilidade, confundia-se perfeitamente com os sons do ambiente, formando um todo sonoro coerente e, para os seus ouvidos treinados, extremamente musical. Acabava de ser inventado o conceito de “música discreta”. Mais tarde, no estúdio, talvez por se sentir ainda demasiado fraco para pegar num instrumento, acoplou dois gravadores, juntou-lhes um equalizador e uma unidade de eco e alimentou todo o sistema com um sintetizador. Ao músico bastava, de vez em quando, carregar num botão. No papel, parece simples, mas, na prática, nunca as “Three variations on the canon in D major”, de Pachelbel, haviam soado tão fantasmagóricas. Quanto a Eno, nunca mais voltou a ser o mesmo.


Music for Films (1978) *****
Recolha de fragmentos compostos previamente para bandas sonoras e não só. Da música discreta, Eno passava a um expressionismo que, mais que no cinema, buscava na pintura a sua inspiração. Cada tema configura-se como esboço sonoro que exige do ouvinte a criação de enredos ou sonhos paralelos. Faixas ambientais alternam com miniaturas rítmicas talhadas a cinzel, construindo estruturas delicadas prontas a habitar. Como o palácio vazio, num filme de Duras. Uma lista de nomes que inclui Phil Collins, Bill MacCormick, Dave Mattacks, Fred Frith, Robert Fripp e John Cale ajuda a tornar “Music for Films” um clássico de antologia.


Plateaux of Mirror (1982) *****
Primeira colaboração com o pianista Harold Budd e a que se seguiria, dois anos depois, “The Pearl”. Transposição das teorias de Eno para o cenário romântico, meticulosamente encenado pelas filigranas pianísticas de Budd, que alia pequenas parcelas de emoções e fragmentos de sonhos à música microscópica, aprendida com mestre Satie. “Plateaux of Mirror” exemplifica de forma brilhante as mil maneiras de a sensibilidade escapar às malhas da razão. Discurso aquático, palaciano, intemporal. Gotas de orvalho atravessadas pelo primeiro raio de sol da madrugada. Um piano ao centro da sala, sem outra mobília. A janela aberta. Cortinas enfunadas pelo vento. Imagens de uma arquitectura sonora como sinónimo de espaço, neste disco, infinito, banhado por intensa claridade. Casamento perfeito do rigor formal e técnica pianística apurada de Harold Budd com a intuição e os tratamentos de estúdio, de Brian Eno. Deste cruzamento resultou uma obra-prima – transparente e, como todas as obras-primas, vitoriosa sobre o tempo.


On Land (1982) *****
Aprofundamento do conceito espacial, entretanto tornado quase obsessão, ao nível das estratégias de composição, cujo ponto de partida radica, segundo o seu autor, em “Another green world”. Neste, a cada peça corresponde um ambiente ou uma paisagem particular, que irá determinar “o tipo de actividades que possam eventualmente ocorrer”. Trata-se, ainda nas palavras do autor, de “exagerar” ou de “inventar” espaços musicais, em vez de os “reproduzir” ou “imitar”. A música de “On Land” nasce a partir da escuta atenta não das “músicas do mundo”, mas do “próprio mundo”. No Gana, Eno pretendia gravar o canto dos indígenas. Acabou por apontar o microfone ao céu, deliciar-se de gravar os sons do próprio ar e da sua música, quase imaterial. “On Land” constitui um universo à parte, terra de ninguém aberta à intuição de cada um. Bill Laswell, Michael Beinhorn, Jon Hassel e Michael Brook ajudam a delinear o território.


Thursday Afternoon (1985) ***
Primeiro disco editado exclusivamente no formato compacto. Para muitos representa o culminar sublime das premissas estéticas anteriormente enunciadas; para outros, o supra-sumo, pela negativa, da música hipnogógica. Uma hora inteira de sons constantemente à beira do silêncio, capazes de fazer adormecer a cafeína. Eno descreve-os como paradigma daquilo a que chama “música holográfica”, em que cada parte é representativa do todo. Refere como exemplo o acto, excitante, de observar a passagem das nuvens no céu. Diz ele tratar-se uma experiência “consistente no seu todo”, mas de “detalhes imprevisíveis”. Para aqueles, então, que gostam de observar as nuvens, de contar formigas ou de música minimal repetitiva, “Thursday Afternoon” é o disco (e vídeo) ideal.

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