22/10/2008

Canibalismo 1ª parte [Can]

BLITZ

26.9.89
VALORES SELADOS

Os Can foram, sem dúvida, um dos grupos mais marcantes de toda a década de setenta. Surgidos do caldeirão da cena underground berlinense do final dos «sixties», cedo se demarcaram da orientação estética predominante neste movimento.

CAN
IBALISMO
1ª PARTE

A Kosmische Muzik, por muitos erradamente apelidada de rock alemão, entrava então em cena, logrando implantar-se, anos mais tarde pelo resto da Europa. Um nunca mais acabar de grupos ensopados no psicadelismo da época, projectava todo um misticismo para o cosmos infinito. Era a resposta germânica ao Flower-Power dos jovens hippies americanos. A filtragem electrónica das experiências alucinatórias ou de auto-iluminação, num contexto inovador. Quilómetros e quilómetros de cabos de ligação entre os sintetizadores e os neurónios. A maioria não resistiu à passagem do tempo e das modas e ficou pelo caminho. Para a História ficaram, no entanto, alguns nomes importantes como Popol Vuh, Ash Ra Tempel, Cluster, Guru Guru, Wallenstein ou Neu, para não falar dos hoje superfamosos Tangerine Dream ou do papa da música planante, Klaus Schulze.

FILMES DE MOSTROS

Os Can não foram em cantigas. Sintetizadores, nem vê-los. A única concessão à electrónica era um estranho aparelho utilizado pelo teclista Irmin Schmidt, com o nome ainda mais estranho de Alpha 77. Procuravam o transe mas por outras vias.
Ao contrário dos seus companheiros de armas, alucinados pelos canos e botões dos seus Moogs, A.R.P. e VCS3, era nas percussões hipnóticas e no desregramento da voz que procuravam a libertação. Onde todos os outros se voltavam para o Oriente em busca do novo Katmandou cósmico, os Can mergulhavam nas raízes negras africanas. Onde todos os outros pronunciavam devotamente o OM universal, o vocalista japonês Kenjo «Damo» Suzuki berrava histericamente onomatopeias sem sentido aparente, quando não apenas sons guturais ou gritos lancinantes, numa espécie de regressão às origens da voz humana.
A formação que deu melhor conta de si foi o clássico quinteto constituído pelo já citado «Damo» Suzuki, até então cantor de rua, o teclista Irmin Schmidt e o genial baixista Holger Czukay, ambos ex-discípulos de Stockausen, o baterista e percussionista Jaki Liebezeit e o guitarrista Michael Karoli.
«Monster Movie» de 1969 foi a primeira grande obra, evidenciando uma sonoridade ainda não totalmente liberta das influências da West-Coast americana, com longas improvisações à boa maneira das jam-sessions de grupos como os Grateful Dead ou Jefferson Airplane. Mas já lá estava a batida hipnótica e metronómica característica de toda a sua obra.

GRITOS E SUSPIROS
«Tago Mago» é a primeira obra-prima, um duplo álbum literalmente avassalador. Os ritmos tornam-se mais complexos. A guitarra de Karoli cortando a direito como uma lâmina de aço.
Schmidt produzindo com o seu Alpha 77 sons de insectos mutantes e, claro, a voz e o canto crescentemente alucinados de Suzuki. A par de longas sequências de instrumentais de quase 20 minutos, canções como o clássico «Mushroom» ou a resposta ao misticismo então vigente: «Aumgn», paródia ameaçadora e distorcida à sílaba sagrada OM ou AUM, invertendo a polaridade às sonoridades electrónico-planantes. Imensa e terrífica catedral demoníaca, povoada de ecos cavernosos e repetições angustiantes, num jogo infinito de espelhos. Mas também o humor e o encantamento de Alice no País das Maravilhas de «Bring me Coffee or Tea». «Tago Mago» marca decisivamente o início da década, confirmando os Can como um dos seus grupos mais vanguardistas.
Segue-se «Ege Bamyasi», de 72, levando todas as premissas musicais do grupo aos limites do absurdo e do delírio. «Damo» Suzuki ora gritando até ao paroxismo, revirando-nos as tripas, ora sussurrando ladainhas incongruentes ou de oculto sentido. É o disco da paranóia mais ou menos controlada. Depois dele tiveram mesmo de descansar, gravando «Soundtracks», como o nome indica, uma recolha de temas utilizados em diversas bandas sonoras.

DIAS FUTUROS

1973 vê aparecer «Future Days», para muitos o melhor álbum do grupo, opinião que partilho. É a obra da maturidade. A força e o telurismo até então dificilmente contidos são aqui magistralmente manipulados. A sucessão de clímaxes é substituída por um processo de sublimação, tornando a música infinitamente mais serena. «Bel Air», que ocupa a totalidade do segundo lado, é o apogeu, o ponto culminante de uma música que aqui atinge a perfeição. Afinal os Can também alcançaram o seu Nirvana.
«Limited Edition» é um apanhado de temas originais gravados entre 68 e 74. Esboços de um humor surrealizante («Blue Bag», «Mother Upduff») e a introdução das séries E.F.S. (Ethnological Forgery Series), pequenas peças de aproximação à música étnica (a mais antiga datada de 68!). Entretanto o vocalista japonês abandonava o grupo para se juntar às Testemunhas de Jeová (!). Era de prever a sua loucura definitiva… As vocalizações passaram a estar a cargo de Michael Karoli que tem a parte de leão no álbum seguinte, «Soon Over Babaluma». Álbum essencialmente instrumental em que Karoli dá lições na arte de bem tocar guitarra e se desembaraça razoavelmente no violino. O álbum inclui «Come Sta La Luna», uma inspirada maluquice cantada em espanhol, lembrando um dos descarrilamentos típicos de Kevin Ayers.
«Landed» de 75 e «Flow Motion» do ano seguinte, são os derradeiros trabalhos à altura dos anteriores pergaminhos e os últimos gravados com o então quarteto constituído por Karoli, Schmidt, Czukay e Liebezeit. Ostentam o som habitual do grupo, por esta altura já consagrado em toda a Europa.
«Saw Delight» assinala o início da decadência. Mas esta e outras histórias ficarão por contar até à próxima semana. Assim, no próximo número, não perca: «O célebre concerto no Pavilhão dos Desportos», «Aventuras e desventuras a solo de cada um dos Canibais». Tudo isto e muito mais.

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