14/08/2020

Jerónimo, da tribo dos progressivos [Samuel Jerónimo]


Y 3|DEZEMBRO|2004
música|samuel jerónimo

Os sons, minimais, entranham-se. “Redra ndra Endre de Fase”, de Samuel Jerónimo, é Steve Reich em português. Ele prefere comparar-se a Keith Emerson e venera Gentle Giant.

jerónimo, da tribo dos progressivos


O computador foi a ferramenta utilizada para emular um piano e marimbas. Mais umas fatias finas de eletrónica. O resultado é “Redra Andra Endre de Fase”, três peças minimalistas, uma delas com 33 minutos, onde a imaginação e o vigor estão sempre presentes. O seu autor, Samuel Jerónimo, estudou composição e tocou numa banda rock, os Mystery of Grace. Cresceu a ouvir Debussy, travou conhecimento com a escola minimalista, de Reich e Terry Riley, mas o grande amor é o rock progressivo. “Redra...” terá mais a ver, diz o autor, com a influência dos Tangerine Dream e Emerson, Lake & Palmer do que com quaisquer escolas e erudição. Mas é nos Gentle Giant que vê a perfeição.
            Traçar a génese de um trabalho deste quilate, torna-se fundamental. É um álbum de estreia que queima de enfiada uma série de etapas. Tudo começou com guitarras para acabar em programação. “Há quatro anos andava deliciado com o álbum ‘Discipline’, dos King Crimson, com aquela interligação das guitarras. Comecei a fazer exercícios nessa onda e pedi ao meu professor um programa informático com o qual pudesse continuar a fazer esses exercícios, de forma mais elaborada. A partir daí fui desenvolvendo ideias com base no ‘multilayer’. O piano acabou por surgir como o melhor veículo para as composições”.
            O que espanta é ter criado uma unidade a partir de influências tão díspares como a música clássica, o minimalismo e o rock progressivo. Samuel diz que não foi difícil. Agiu como o empresário esclarecido. “Defini um caminho, como uma empresa escolhe uma missão entre várias hipóteses de bons negócios”. Em termos de forma, “Redra…” está próximo da escola minimalista mas o autor baralha as pistas. “Tem mais a ver com Emerson, Lake and Palmer. Há um ritmo ‘ostinato’ semelhante a um ritmo do ‘Tarkus’”. Mais inserido na estética do minimalismo está o tema “Endre de fase”, baseado no conceito de Reich, de “change as a gradual process”.
            “Fiz um estudo sobre esta teoria, mas não procurei a cópia. Em vez do processo de ‘phasing’, com duas linhas melódicas tocadas em velocidades ligeiramente desfasadas, aumentei o número de vozes, seis, todas à mesma velocidade, só que nalguns compassos introduzi uma pausa de meio tempo. E mais para a frente fui retirando notas para obter uma sensação menos maquinal. Mais ‘chance’, como diria o John Cage”.
            Há marimbas, piano e eletrónica. Tudo no computador. “Uso-o para a composição mas nunca seria capaz de dar um recital. O Ligeti também compôs uns estudos para piano e não tocava este instrumento”. Um processo de clonagem que Samuel explica por motivos, afinal, prosaicos. “Gravei assim porque me saiu mais barato. Não podia pagar ensaios a dois pianistas e três percussionistas. Sairia caríssimo um disco que não sei se tem mercado. Das duas uma, ou vai abrir portas ou nunca terá existido…”.
            “Redra…” parece obra muito pensada, mas há nela uma frescura que sugere boa dose de espontaneidade. “Foi como fazer desenhos animados. Para fazer dez segundos, demorava horas. Tinha uma ideia estrutural mas, chegado a meio, não sabia como iria ser daí para a frente. Acabei por demorar dois anos a fazê-lo. Sempre tentando aplicar o conceito de ‘mudança’. As peças que o compõem são como a trilogia do ‘Star Wars’”.
            “Redra”, “Andra”, termos estranhos. “’Redra’ significa cavar a vinha, é um termo do Norte”. Foneticamente lembra “Phaedra”, dos Tangerine Dream. Faz sentido. “O ‘Phaedra’ foi grande influência na segunda peça, o começo. ‘Andra’ é um termo nórdico que significa ‘mudança’. ‘Redra’ é arrancar as ervas daninhas para vitalizar o processo. Também me inspirei nos textos do ‘I-Ching’ sobre a mudança. A mudança introduz a atividade. ‘De fase’ leva-nos para o ‘phasing’ do Steve Reich.

            descoberta ou nostalgia? Antes de “Redra...” e da computação o músico de Valado dos Frades já tinha composto uma peça de meia-hora para grupo rock. Foi feita para os Mystery of Grace, em 1998, “uma coisa a puxar para o rock progressivo, com baixo, teclados e bateria”. “Redra”, o tema, dura 33 minutos. Nada mau para um estreante. “Podia ser pior!”, ri-se, “tinha 43, mas reduzi, para ficar mais coeso. O Mike Oldfield fez o ‘Amarok’ com uma hora e quatro segundos” (risos).
            Oldfield, Tangerine Dream, King Crimson, Emerson, Lake and Palmer. Tantas referências ao progressivo fazem pensar. “Redra…” está a ser bem recebido pelos dois lados da barricada. “E as pessoas do rock progressivo estão a reagir bem. Numa entrevista, o Paul McCartney, sobre o ‘Mull of Kintyre’, dizia que as pessoas ou iriam achar antiquado ou então o pessoal dos Beatles iria agarrar aquilo. Foi um sucesso. No meu caso, acho que o álbum está mais voltado para o Progressivo. Fui muito influenciado pelo Keith Emerson, muito mais do que pelo Rick Wakeman, que sempre achei bombástico”.
            Mas como chegou um jovem de 25 anos ao rock progressivo dos anos 70? Samuel admite que é acusado de “revivalista”. “Como é que um puto chegou ao rock progressivo, não é?” (risos) ‘Foste à discografia do teu pai?’ (risos). Nada disso. O que gostei sempre no rock progressivo foi de haver tempo para desenvolver as coisas. Também tem a ver com uma forma de estar na vida. Depois comecei a comprar discos, procurando edições em vinilo. Da música atual gosto de Massive Attack. Não sou nostálgico. Quando compro um disco dos aos 60, 70 ou 80, para mim é descoberta. Tudo me soa a fresco. Um disco dos anos 90, dos Oasis ou do ‘grunge’, que ouvi quando andava no Ciclo e no Preparatório, isso sim, soa-me datado”.
            Os gostos dirigem-se aos Pink Floyd, King Crimson, Van Der Graaf Generator e Gentle Giant. “’Octopus’ é uma obra-prima, os Gentle Giant tratavam cada peça como uma sinfonia, a maneira como jogam com os instrumentos é inigualável, em cinco minutos metiam tudo”. Diga-se, de passagem, que Samuel já compôs uma versão de “Raconteur troubadour”, tema de “Octopus”, precisamente.
            Dos minimalistas, cita Reich, “Music for 18 Musicians”, “Different Trains”. De Terry Riley elege “In C”, “peça onde se aprende muito, nunca é tocada da mesma maneira, podemos acrescentar o nosso próprio ‘input’”. Já na música clássica, um nome salta de imediato: Claude Debussy. “Derreto-me no sofá a ouvi-lo”.
            “Redra, Andra, Endre de Fase” vai ser apresentado ao vivo. Contará em palco com músicos. “Não faz sentido estar à frente de um computador e saírem de lá sons orgânicos. Se ‘Redra…’ é um ‘statement of art’ então vamos levá-lo às últimas consequências”.
            É cedo para se avaliar o impacte de “Redra, Andra, Endre de Fase” na música portuguesa não comercial. Para já os mil exemplares editados pela Thisco vendem a bom ritmo. Para um álbum com três longas peças de uma música não imediatamente apreensível, é obra. Samuel continua otimista: “Sim, as peças são longas, mas então o Wagner não compôs ‘O Anel dos Nibelungos’”?

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