05/09/2009

Na linha do fado [Camané]

Sons

20 de Fevereiro 1998

Camané lança segundo álbum

Na linha do fado


“O Fado retrata a vida como ela é, de uma forma muito profunda”, diz Camané. Por isso, “Na Linha da Vida”, segundo álbum do fadista, é o mesmo que dizer “na linha do fado”.

“Na Linha da Vida” sucede a “Uma Noite de Fado” na carreira de Camané, um jovem fadista que faz do fado profissão de fé. Fados tradicionais, composições de José Mário Branco, José Luis Gordo, João Ferreira-Rosa e textos de Fernando Pessoa, Antero de Quental e Manuela de Freitas contribuem para a renovação de um género, com “espírito” e “sabor” próprios que vivem da “comunicação” e da “interpretação”.

PÚBLICO – O que fez no intervalo de dois anos entre o disco novo e o antigo?
CAMANÉ – Canto no Senhor Vinho. Entretanto, tenho feito espectáculos, no país e no estrangeiro, em festivais de música como o de Granada, na Holanda, em França, em Vigo...
P. – Prefere cantar numa casa de fado ou num desses espectáculos de maiores dimensões?
R. – É muito importante cantar-se o fado numa casa de fados. Há coisas que aprendo nos espectáculos, mas continuo a preferir as casas de fado. No fado não há escola; então, nas casas de fado, como tenho oportunidade de cantar lá quase todos os dias, vou descobrindo aspectos novos na forma de cantar.
P. – À semelhança do que aconteceu com o anterior “Uma Noite de Fado”, a produção volta a estar a cargo de José Mário Branco.
R. – Ele é uma pessoa muito musical que sabe separar muito bem as coisas. E sabe também que o fado é uma música espiritual. Uma maneira diferente de estar na música.
P. – Um dos temas, “Sopram ventos adversos”, da autoria de José Mário Branco e Manuela de Freitas, tem uma sonoridade diferente de todos os outros. É quase new age...
R. – Aí gostei muito da letra, como já tinha gostado de ouvir o tema no disco do José Mário, o “Ser Solidário”. Para o meu disco o José Mário fez um arranjo diferente para guitarra, viola e contrabaixo. Não é fado mas canto como se fosse, com a minha maneira normal de entoar.
P. – E o que é ser fadista?
R. – É uma maneira diferente de cantar a vida, a vida portuguesa. Não é uma coisa racional. Nunca me consegui sentir bem noutro tipo de música. O fado é a música que interiorizei desde miúdo, desde os dez anos. Conheço todos os fados tradicionais que existem, às vezes não me lembro dos nomes, mas basta dizerem-me a primeira frase para me vir a música. Estão cá dentro. Não me reconheço em mais lado nenhum a não ser no fado.
P. – Quis dizer alguma coisa quando escolheu para título do disco “Na Linha da Vida”?
R. – Este título surge na sequência de uma série de espectáculos que tinha feito no Inatel. “Na Linha da Vida” é na “linha do fado”.
P. – Linha da vida é também, na quiromancia, a linha do destino... Acredita na fatalidade?
R. – Acho que o destino somos nós que o fazemos diariamente, a forma como a gente vive no dia-a-dia, que se pode reflectir no futuro.
P. – É uma pessoa triste?
R. – Sou uma pessoa normal, nem muito triste nem muito alegre. Aliás, ou sou muito triste, ou sou muito alegre! O fado é falarmos da tristeza de uma forma que nos emociona. Aprendemos com isso; falar das coisas tristes é uma maneira de as deitar cá para fora, de exorcizá-las. É uma maneira de as pessoas crescerem.
P. – Nos tempos que correm, acha que o fado é uma música que toca nas gerações mais novas?
R. – Nas casas de fado onde canto vai muita gente nova. Muitas vezes só para curtir... Mas são as pessoas que há. Não tenho muitas ilusões quanto a isso. É o sítio onde é necessário haver gente nova a cantar, é mesmo o único sítio onde as pessoas novas podem começar a cantar fado. Mas sinto muitas vezes é que o fado deixou de fazer parte da vida das pessoas, as pessoas já não crescem com essa vontade, têm outras energias e se calhar querem ouvir outro tipo de música.
P. – Acha que um fadista como o Paulo Bragança segue pelo caminho certo, no sentido de levar o fado às gerações mais novas?
R. – O fado tem um espírito, um sabor que não se pode perder. Toda a emoção do fado é de dentro para fora. A maneira de cantar do Paulo para mim é fado. Tem a voz e a alma de um fadista.
P. – Fala-se na crise do fado. Não será melhor falar de uma crise de fadistas?
R. – Sim, não há fado sem fadistas. O fado vive da comunicação, da interpretação, da capacidade criativa das pessoas que o cantam. Há várias opções musicais quando se quer meter um texto numa melodia de fado; interessa é escolher o melhor caminho com coerência e com alma.
P. – Qual é o seu caminho?
R. – Escolher a partir da musicalidade das palavras, que são mais importantes do que tudo, mais importantes do que eu a cantar. É um processo que às vezes demora muito tempo. Os poemas da Manuela de Freitas, neste disco, são uma coisa complicada, descobrir o que é que liga e o que não liga. Interessa é que seja um processo natural. Não vou forçar as palavras numa música. Todo este disco já tinha sido cantado várias vezes nas casas de fado, embora talvez não tantas como eu gostaria, porque estive afastado delas durante algum tempo. Os fados que estão aqui gravados hoje já não os canto da mesma maneira.

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