23/10/2016

Sonhos traídos

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 19 OUTUBRO 2002

Onde o jazz passa a ser outra coisa. Tudo depende de cada página nova do livro fazer ou não sentido em relação à anterior. Nesta semana há páginas que caem, como as de Haden, páginas que ardem, como a de Schweizer, páginas finas, como as dos Thirteen Ways, páginas talvez já de um outro livro, como as de Dresser.

Sonhos traídos

Charlie Haden é uma figura. Do contrabaixo e do jazz. Mas mesmo as figuras têm que fazer pela vida e ganhar o seu sustento. A "American Dreams" só falta ter vindo atado com um laçarote e levado um banho de perfume, de tal forma tudo nele grita – ou melhor, sussurra, para não espantar a freguesia –: "comprem-me!". É difícil pensar nos tempos da Liberation Music Orchestra e em declarações com a força de "The Ballad of the Fallen" ao ouvir as carícias de cetim e caramelo deste disco que funcionará otimamente como pano de fundo de atividades românticas e, ainda aqui, na condição de não darem luta. Note-se que "American Dreams" é fruto de uma partilha com Michael Brecker o qual, como é sabido, quando toca à pieguice, consegue levar uma múmia às lágrimas com o seu saxofone. Dito isto, o disco é bonito, como conseguem ser bonitos a maior parte dos discos que se deixam enfeitar com uma grande orquestra, neste caso de 34 elementos, carregada de violinos e violoncelos, o piano de Brad Maldhau oscila entre a música de variedades e algo mais suculento ("Prism") e a bateria de Brian Blade segura as pontas com uma perna às costas. Mas ao escutarmos um tema como "America the beautiful", a meio caminho entre a dor de alma e o postal ilustrado, pensamos que talvez a dita América precise neste momento, para afastar o trauma, de discos como este, que a façam esquecer e sonhar.
                Porém, há questões às quais o coração se afeiçoa mas que a razão desconhece. Não que seja exigido muito ao cérebro no contacto com o terceiro álbum como líder, neste caso de um quarteto (com os irmãos Alex e Nels Cline, Joel Hamilton e David Witham) designado Goatette, do violinista Jeff Gauthier. "Mask" serve de comprovativo de que o jazz rock permanece vivo, mostrando Gauthier como um violinista elétrico na linha de Jean-Luc Ponty, ou de Jerry Goodman, quando a música deriva para o misticismo em alta energia da Mahavishnu Orchestra, como é o caso de "Ephemera" ou dos 17 minutos do título-tema, ambos com a assinatura de Gauthier. "Waltz for K.P." é uma homenagem sentida ao baixista e compositor Eric Von Essen, recentemente falecido, mas é em "Enfant", de Ornette Coleman que o violino, o piano de Witham, o baixo de Hamilton e a bateria de Alex Cline ganham direito de cidadania e requisitam a participação dos neurónios, fora do centro apinhado do jazz rock.
                Portanto não os desliguem já. Os neurónios. A música do baixista Mark Dresser assim o exige. São dois os álbuns deste notável das "novas músicas" a ostentar o selo Cryptogramophone, editora capaz do melhor (Steuart Liebig, Nels Cline...), como é o caso, e do pior (Alex Cline, Don Preston...). "Aquifer", em trio com Mathias Ziegler (flautas eletroacústicas, da gigantesca contrabaixo à andorinha piccolo) e Denman Maroney ("hiper" piano) pretende ser a transcrição musical dos fluxos de água subterrâneos que fertilizam o planeta. "Acumulação", "trânsito" e "libertação" funcionam como metáforas telúricas que Dresser e os seus dois companheiros transformam em circulação de frequências, modulação de timbres e planificação de texturas assimétricas cuja energia parece provir, de facto, das entranhas dessa matriz aquática que alimenta a Terra. O baixo de Dresser, dedilhado ou com arco, é gruta e lago borbulhante, água escura em ebulição, a conduta que espalha o líquido ao qual as flautas e o piano vão beber. Mas estes são lugares mais próximos da música contemporânea do que do jazz, constituindo o discurso mais "cantabile" e de contornos melódicos mais facilmente identificáveis, das flautas de Ziegler ("Digestivo", "Pulse field", "FLAC" e "Modern pine") a alavanca onde jazz é capaz de se apoiar.
                Em relação a "Sonomondo", de Dresser em duo com a violoncelista Frances-Marie Uitti, esqueçam tudo aquilo que aprenderam nos compêndios. Se é jazz é jazz nos limites. A viagem decorre por entre um relevo acidentado onde aquilo que parece raramente é. Dito de outra forma, tanto Dresser como Uitti fazem apelo a toda a espécie de "extended techniques" de modo a que os respetivos intrumentos façam aquilo que o seu construtor nunca pensou que fossem capazes de fazer. Diálogos, lutas, uníssonos, gritos, lamentos passam como entidades bizarras nesta música ordenada em forma de "suite" em cuja carnalidade alguns julgam distinguir (e talvez os ouvidos o distingam claramente no modo como Uitti faz o violoncelo rasgar o tempo como um homem dilacerado, em "La finestra"...) as chagas de Albert Ayler.
                O jazz, enfim, mais confortável, mais normal, chega com "Physique", de Christophe Schweizer e o seu Normal Garden. Schweizer é um trombonista razoável, pujante qb, em cuja música se conseguem distinguir o som das buzinas e a intensidade do tráfico de Nova Iorque, no modo "downtown". E "física" é como soa de facto esta encruzilhada onde a cada momento chocam ou seguem em cortejo os sopros de Donny McCaslin (sax tenor e soprano), Alexander Sipiagin (trompete, fliscorne) e Eric Rasmussen (sax alto), na grande artéria do contraponto. Jazz ainda talvez demasiado preso à necessidade de falar alto, mas jazz forte e convicto, apostado em dar à tradição um novo corpo. Não se procura a revolução mas defendem-se causas. A partir deste ponto, ou se recua na direção dos aplausos ou se avança e se arrisca a solidão.
                Terminemos com calma e tranquilidade. Contemplemos, irmãos, e sigamos as treze vias que nos são propostas pelos Thirteen Ways, trio de luxo composto por Fred Hersch (piano), Michael Moore (sax alto, clarinete e clarinete baixo) e Gerry Hemingway (bateria e percussão). A editora não é a ECM mas poderia ser. Porque o jazz, com o título de "Focus", faz-se aqui com a cabeça um pouco aérea, um pouco triste, um pouco como quem quer voar mas tem medo das alturas. Com a minúcia de cirurgiões da emoção. Pequenos címbalos trémulos, flores com cores e forma de saxofones e clarinetes, um piano lento e violeta tocado num salão escuro numa tarde de chuva, silêncios nos sítios certos em que mais vale parar. Lembram-se da "a vida de um trio" da semana passada? "Focus" é a vida de um outro trio que parece ter dentro de si a vida do outro.

Charlie Haden & Michael Brecker
American Dreams
Gitanes/Verve, distri. Universal
6|10

Jeff Gauthier Goatette
Mask
Cryptogramophone, distri. Sabotage
7|10

Mark Dresser Trio
Aquifer
Cryptogramophone, distri. Sabotage
8|10

Mark Dresser & Frances-Marie Uitti
Sonomondo
Cryptogramophone, distri. Sabotage
7|10

Christophe Schweizer Normal Garden
Psysique
Omnitone, distri. Trem Azul
8|10

Thirteen Ways
Focus
Palmetto, distri. Trem Azul
8|10

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