19/09/2016

A jazzar em português é que a gente se entende

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 28 DEZEMBRO 2002

2002 foi um bom ano para o jazz português. Dos melhores, discograficamente falando. Sete propostas.

A jazzar em português
é que a gente se entende

Dos bons músicos que temos é lícito esperar bons discos. Contámos sete, só este ano. Número mágica a prometer um futuro ainda mais risonho. Carlos Baretto reincidiu. Depois de uma “Radio Song”, apimentada com a presença do soprador francês Louis Sclavis, que fica como um dos melhores registos do ano, “Solo Pictórico” mostra o outro lado deste exímio contrabaixista. Solo absoluto, de sons e de cores (cada tema tem correspondência numa obra pictórica também da sua autoria), espraia-se por uma série de “variações” e “deambulações”, entrecortadas por “Round midnight”, de Monk. Contido, de uma depuração extrema, nas execuções “a dedo”, Barretto abre espaços imensos quando opta pelo arco, como nas deambulações com os números 2 e 3, em que de uma certa atitude “new age” percetível na primeira se eleva à pura religiosidade, na segunda. Amplitude tímbrica, refrações oníricas, um sentido universalista da melodia conjugam-se numa obra que dispensa o acessório para se concentrar no essencial, que aqui é canto, mais do que solitário, solidário.
                Cokm dedicatórias a Morris e Goscinny, Edgar Pierre Jacobs, Hergé, Hugo Pratt, Robert Crumb, Gilbert Sheldon, Bilal e Tardi e títulos como “I’m a poor lonesome cowboy”, “Armadilha diabólica”, “As sete bolas de cristal”, “Blues dos freak brothers” e “A mulher-armadilha”, só se poderia esperar balões preenchidos por música de memória longa e leitura rápida. “Filactera”, com “design” sonoro do guitarrista Mário Delgado, é uma homenagem à banda desenhada, projeto ideologicamente próximo de “Vol pour Sidney” ou “Bandes Originales du Journal de Spirou”, ambos editados na NATO. Carregado de citações, respirando a Bill Frisell, quando calha a Delgado ser Lucky Luke, ágil nos tempos mais “bopados”, servidos pelo saxofone dócil de Andrzej Olejniczak e pelo contrabaixo sabido de Barretto, aos encontrões amigáveis com a “gentalha” infetada da editora Recommended (Zero Pop, Orthotonics, Semantics… em “Gatos e corvos”), bem-humorado na aerofagia, salvo seja, do trombone de Claus Nymark, “Filactera” é jazz aos quadradinhos, histórias para ler de ouvido, sem pretensões de inquietar o coração e confundir o pensamento.

Cinema jazz

                A jazzar, a jazzar, José Eduardo, outro contrabaixista de créditos formados, fez obra séria em “A Jazzar no Cinema Português”, gravado ao vivo com a sua “Unit” no cineclube de Faro. Pegar em “standards” conotados com a sétima arte nacional como “Se eu fosse um dia o teu olhar”, de Pedro Abrunhosa, “Balada da Rita” e “Os demónios de Alcácer-Quibir”, de Sérgio Godinho, “Grândola, Vila Morena” e “Os índios da meia-praia”, de José Afonso, “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco, “Peregrinações”, de Fausto ou “Verdes anos”, de Carlos Paredes, não é tarefa para todos. Operação de alquimia, mudar o fato e refazer o feito. Eduardo não esquece em nenhuma ocasião a trave mestra melódica que sustenta cada composição mas constrói tão longe e tão fortes quanto pode as paredes. Jesus Santadreu, no saxofone tenor, tem técnica e intuição apuradas, o que lhe permite fazer, com brilho, o que faz em “Grândola, Vila Morena”. O que para outros seria armadilha mortal, nele é via de “free”, fazendo jus à revolução. O longo medley formado pelo par “Os demónios de Alcácer-Quibir”/”Eu vi este povo a lutar” junta o espírito dos Lounge Lizards, o grande jazz de costela “bluesy” swingante e uma grande intervenção, a rasgar, do contrabaixista. Que também é pianista, em segundo plano ou à boca de cena (“Peregrinações”).
                Santadreu reaparece em “Ciclope”, no quinteto do baixista Nelson Cascais. Notável a clareza e limpidez do fraseado, aqui mais “cool”, modulado e cantante a fogo, bem secundado pelo trompete de Avishai Cohen, para nós, uma revelação. Cascais assina a quase totalidade das composições e fá-lo com os pés bem assentes nos principais capítulos da história. Jazz-modelo, clássico mas vibrante.
                Na mesma editora de Cascais (que, por sinal, gravou o seu CD em Paris), surgiu igualmente “O Osso”, registado ao vivo num único “take” no Hot Clube de Lisboa, por um quinteto sob a liderança do guitarrista André Fernandes. De novo a tradição a fazer valer os seus direitos, agora com os ouvidos postos, mas não colados, ao jazz mais fino que se fez nos anos 50 e 60, linhas de tecelagem de novas malhas. Fernandes é um Montgomeriano por afeto, quer-nos parecer, mas, enquanto compositor, a sua música atinge uma elaboração e um requinte extremos, apesar da sua aparente simplicidade. O piano elétrico Fender Rhodes de Peter Rende confere à música um colorido e delicadeza especiais, fazendo lembrar os Nucleus, Gordon Beck e o Canterbury-jazz de Steve Miller ou de uns Gilgamesh, com a guitarra de Fernandes a condizer. Melhor dizer um bordado. Julian Arguelles, nos saxes tenor e soprano, sopra com descontração e boa temperatura. Bernardo Moreira, no baixo, swinga como um safado. Ouçam-no a surfar nas notas de “Zing”.
                Um dos grandes discos do ano tem a assinatura de Bernardo Sassetti e foi gravado em ambiente de “verdadeira magia”, diz o próprio, na Quinta de Belgais, de Maria João Pires. Homem de muitas músicas, fez mais uma das suas incursões pelo jazz. Pela porta grande de Bill Evans. Em trio com Carlos Barretto (quem mais?) no contrabaixo, e Alexandre Frazão, na bateria. Jazz voltado para dentro, atento aos movimentos mais íntimos e secretos. Melancolia, uma despedida, um tempo além do tempo que faz sorrir tristemente sem se saber bem porquê. “Reflexos”, o “Sonho dos outros”, um “Olhar” e uma “Música callada” são quadros com azul molhado de lágrimas e nuvens. “Quando volta o encanto”, pergunta-se? Está sempre presente. E um aceno e trocadilho a Monk (“Monkais”). Paisagens impressionistas (“Sonho dos outros” e Satie, Chopin, Debussy, de uma beleza soluçante, sagrada, emocionante) pintadas com pontos, traços, sugestões e luzes. “Reflexos” soa como música de um filme por filmar, pinceladas de sentimentos em imagens de ouvir, melodia ao mesmo tempo familiar e estranha. Os diálogos com Barretto e Frazão são para se acompanhar como um segredo – experimente-se escutar “Cançon nº7” com as luzes apagadas e a saudade bem acesa. Sassetti é um grande pianista, já o sabíamos. Desconhecíamos era que estivesse e soubesse conviver tão perto e de forma tão tocante com o silêncio.

Em transe

                Para acabar em beleza. Para acabar – porque não? – o ano, em grande, nada melhor do que um bom desacato. E proclamamo-lo com a máxima veemência: Rodrigo Amado, Marco Franco e Paulo Curado (todos saxofonistas), Pedro Gonçalves, no contrabaixo, e Acácio Salero, na bateria, os cinco Lisbon Improvisation Players, sabem melhor do que ninguém como criá-lo. Gravado ao vivo no Teatro Tivoli, em Lisboa, o álbum dos LIP obedece a alguns dos princípios “harmolódicos” preconizados por Ornette Coleman na enunciação do “free jazz” e da conjugação entre método e liberdade criativa, a saber, a possibilidade de em simultâneo solar e enquadrar esse discurso individual na matemática do coletivo. Claro que por vezes não é fácil destrinçar a ordem do caos, a aleatoriedade da “imposição cósmica” que determina, ao mais alto nível, a improvisação. Música independente desta natureza é também música dependente da fortuna e do acaso. Viver do encontro do momento implica admitir a possibilidade do desencontro. Os LIP arriscam, mesmo assim, conversar, gritar, tropeçar e avançar. Imaginamos até onde poderiam ir, se estimulados, por exemplo, por um Evan Parker. Não é preciso, porém, imaginar onde já estão – num lugar de aventura mas também de conhecimento. Quando um deles enfrenta o precipício, saltam todos. Quando um deles alcança a grande ordem oculta sob a aparências, alcançaram todos. Lisboa, cidade de terramotos.


Carlos Barretto
Solo Pictórico
Ed. e distri. CBTM
8|10

Mário Delgado
Filactera
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Cinema Português
Ed. e distri. Cineclube de Faro
8|10

Nelson Cascais Quintet
Ciclope
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Quinteto André Fernandes
O Osso
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Bernardo Sassetti
Nocturno
Clean Feed, distri. Trem Azul
9|10

Lisbon Improvisation Players
Lisbon Improvisation Players
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10


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