29/09/2021

Ladino no alto da montanha [Dave Douglas]

JAZZ
ENTREVISTA
PÚBLICO 19 MARÇO 2005
 
Ladino no alto da montanha
 

Mountain Passages é o novo álbum do trompetista Dave Douglas. Inspirado na figura do pai, montanhista e cartógrafo, foi apresentado ao vivo em plena montanha. A música ladina atravessa grande parte do reportório. Conversa com este músico.
            Explique, por favor, a génese de “Mountain Passages”.
           O álbum foi feito especificamente para responder a uma encomenda de um festival no Norte de Itália, o “Sound of the Dolomites”. Pediram-me para criar uma “suite” que pudesse ser tocada no cume das montanhas. Todos os instrumentos tinham que ser carregados até lá, logo não havia piano, nem contrabaixo. Até que comecei a ouvir música na minha cabeça, uma divagação de uma “travelling band”. Daí a instrumentação: trompete, clarinete, tuba, violoncelo, percussão… Também me deram alguma música “ladina”, completamente louca, metade é muito calma, a outra metade é música de copos. No CD tentei oscilar entre estes dois extremos. Mas o mais importante foi imaginar a sensação que seria tocar nas montanhas.
            Que sensação foi essa?
            É difícil de descrever. Sempre que algum de nós tenta descrever o espetáculo, é como um sonho. Foi maravilhoso. Ainda tive receio que o ar fosse demasiado rarefeito para tocar trompete, mas estava tão excitado que não houve problema. E o público também estava quente — é preciso ver que também ele teve que subir a montanha a pé até ao local do concerto.
            Qual foi a influência do seu pai (montanhista e cartógrafo) na criação do álbum?
       É difícil dizer. Ele influenciou-me de tantas maneiras diferentes… Mas o meu pai morreu precisamente quando estávamos a fazer esta música… Foi ele que me fez ter lições de música, quando eu era muito novo…
            “Mountain Passages” pode ser encarado como um mapa?
            Como uma paisagem… Mas voltando ao meu pai: quando estava a escrever a música, pensei na minha própria experiência nas montanhas, o que tinha muito a ver com a minha relação com ele, e, só me apercebi que o álbum lhe era dedicado, quando morreu. Nunca ouviu o disco.
            Como definiria o termo “música da montanha”?
           Penso que toda a boa música fornece mais perguntas do que respostas. Neste caso questões sobre o que nos aconteceria, como seres humanos, ao tocar num local tão longínquo, desligados de tudo. Sem “pager” nem computador…
            A sua música tem elementos étnicos muito fortes. De onde vêm eles?
            Estou aberto a ouvir qualquer coisa. A minha educação como músico de jazz não impediu que estivesse exposto a vários estilos de música. Por exemplo, os álbuns que gravei com os Tiny Bell Trio são jazz, mas influenciados por folk, por uma folk imaginária.
            “Mountain Passages” é um dos seus álbuns formalmente mais tradicionais. Concorda?
           Sim… Segui uma regra que foi a de não ter muitas páginas de música. Arranjei umas folhas mais pequenas e cada peça está confinada a seis linhas de música. Depois passei tudo para uns cartões, mais pesados, para não voarem quando estávamos nas montanhas. Foi este o limite que impus às composições, daí parecerem mais simples.
            Qual é a sua relação com o jazz tradicional? Está dentro ou fora da tradição?
           Estamos todos dentro da tradição. Todos. É impossível não fazer parte dela, mas ao mesmo tempo somos livres para fazermos o que queremos. Por isso a questão é: o que fazer com a tradição? A impressão que tenho é que devemos puxá-la para a frente e continuarmos a desafiar-nos.
            Como é que estende esses limites?
            Cada vez que componho uma peça de música, ponho a mim próprio uma série de questões. Penso sempre previamente no que poderei fazer. É por isso que os meus CD são tão diferentes uns dos outros. Antes de escrever penso sempre no conceito. Tive um ano para pensar em “Mountain Passages”.
            Por que motivo aceitou tocar em álbuns de Suzanne Vega ou de Sheryl Crow?
            Muitos dos discos pop em que toquei foi a convite do produtor Michael Froom. Também toquei no álbum dele. Gosto bastante de pop, não tenho qualquer preconceito quanto a isso. Gosto muito de Björk, Radiohead, Timbaland… Mas com Michael Froom era sempre interessante, não era aquele tipo de sessão em que dizem “toca isto” e depois vamo-nos embora. Não, falávamos muito de cada canção, havia sempre diálogo.
            Fale-nos da sua relação com a eletrónica, que já vem do tempo em que tocava com os Doctor Nerve…
            É uma nova linguagem que está disponível. Na maior parte da minha música tanto uso o computador, como instrumentos mais antigos como o Wurlitzer, o Fender Rhodes ou o “ring modulator”. Mas o que se pode fazer com o computador é fascinante, penso que é tão excitante como tocar saxofone ou cantar. Neste momento um dos meus projetos com o grupo elétrico os Keystone é criar bandas sonoras para filmes mudos de Roscoe “Fatty” Arbuckle, ator e realizador, uma estrela de cinema de 1915/16. Também participa o DJ Aleph.
            Quais são as suas influências?
            Sou influenciado pela pop e pela “world music”. No jazz, Charles Mingus, Thelonious Monk, Eric Dolphy, Ornette Coleman, Cecil Taylor, Wayne Shorter, Woody Shaw, Julius Hemphill, Henry Threadgill, Anthony Braxton… Tudo gente importante para mim. Não pretendo copiar ninguém, mas apenas aproveitar as suas lições. No início de carreira compus jazz moderno mainstream, ao estilo de Joe Henderson e Woody Shaw, mas ao longo dos anos fui descobrindo novas maneiras de me expressar, até fazer um álbum como “In a Lifetime”, uma homenagem a Booker Little.
            A fase elétrica de Miles Davis?
            Claro, foi muito importante. A fase elétrica e a acústica. Gosto de todos os períodos de Miles. Não compreendo as pessoas que apenas ouvem a fase elétrica. É horrível. O homem trabalhou tanto! Dêem-lhe uma chance, por amor de Deus!
            Quais são as suas motivações?
            As motivações são sempre um pouco misteriosas. Neste ponto posso dizer que é ser fiel, honesto comigo próprio, dizer a minha verdade através da música. Gostaria de comunicar aos outros a minha realidade pessoal e, quando se faz isto, há sempre algo de universal no processo.
            Disse que todos os seus discos são diferentes uns dos outros. Há alguma unidade na sua obra?
            Somos o que somos, não há maneira de escapar. A razão por que fiz discos tão diferentes foi por tentar ultrapassar os meus limites. Porque é que tenho de ser isto ou aquilo? Mas, olhando para trás, não são assim tão diferentes. Há em cada álbum uma linha qualquer que passa para o álbum seguinte, há uma sequência. Não espero que toda a gente conheça todos os meus álbuns, mas, à medida que forem conhecendo a minha obra para trás, verão que existe um caminho.
 
Dave Douglas
Mountain Passages
Greenleaf Music
8 | 10
 
Tudo se confunde no ar rarefeito da montanha. Em “Mountain Passages”, de Dave Douglas, a memória do pai cruza-se com as sensações de ter tocado ao vivo na montanha para um público que, tal como os músicos, teve que subir a pé até ao local do concerto, situado a 3000 metros acima do nível do mar. Um “concerto imaginário”, pelas sensações irreais que provocou, mas que, em última análise, revelou ser o ponto de partida para a criação de um álbum que será dos mais convencionais na carreira do trompetista, embora encerre em si não poucas virtualidades. A faceta étnica é uma constante, com temas de música ladina (dos judeus hispânicos do Sudoeste da Península Ibérica) a serem tocados com o recurso a uma instrumentação que resume bastante bem a designação “música da montanha”: a tuba, sobretudo, confere um ar alpino a estas sonoridades, que parecem respeitar, mas ao mesmo tempo desafiar a natureza. Sons que passam como o vento, se erguem como a rocha, correm como a água, se elevam como árvores. Um tema como “Gnarly schnapps” radica no “free” para se libertar num corrupio de sopros selvagem, mas logo a seguir “Gumshoe” tem a delicadeza de um tradicional, com a linha melódica perfeitamente definida e um solo de trompete de rara beleza. “Twelve degrees proof” tem ar de circo e fanfarra e “Palisades”, com precipitação de percussões, a consistência de troncos sobrepostos num padrão abstrato. “Mountain Passages” é a passagem através da altitude e do ar da montanha e uma experiência bem sucedida no campo do jazz alternativo.

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