05/12/2016

O herético da sanfona eletroacústica

CULTURA
DOMINGO, 30 SET 2001

O herético da sanfona eletroacústica

Valentin Clastrier assume-se como herdeiro espiritual dos trovadores cátaros da Idade Média. O músico francês inicia amanhã uma minidigressão pelo país

Experiência arrebatadora, presenciar um concerto deste músico-trovador dos tempos modernos, herético da folk, do jazz e da música contemporânea. A sua sanfona eletroacústica permite-lhe dialogar com Deus sem necessidade de intermediários. Diálogo frontal, no limite do dilaceramento e do êxtase.
            Não é a primeira vez que Valentin Clastrier atua em Portugal. Esteve numa das edições dos Encontros Musicais da Tradição Europeia. Os poucos que estiveram presentes nessa ocasião jamais esquecerão aquilo a que assistiram.
            Valentin Clastrier, considerado o melhor executante e maior inovador de todos os tempos, da sanfona, nome de culto com igual prestígio entre os adeptos da música folk e da música contemporânea, entregou-se nessa noite a uma força transcendente, a mesma força que na Idade Média permitia aos místicos gnósticos dispensarem a mediatização da Igreja para chegarem a Deus. Cavaleiros do amor, por oposição a cavaleiros de Roma, os cátaros entregavam-se à ascese enquanto revolução espiritual. Sediados sobretudo na antiga Occitânia (sul de França), eram os cavaleiros do Amor e como tal foram perseguidos e condenados como heréticos pela Igreja Católica. Mas sobreviveram até aos dias de hoje, sob o disfarce da modernidade.
            Quando Valentin Clastrier faz soar a sua sanfona divina, eletrificada e modificada, em improvisações orgásticas (já lhe chamaram o Paganini e o Hendrix da vielle-a-roue...) ou desenrolando longas “drones” encomendadas aos anjos, desencadeia em si próprio e no ouvinte um magma de emoções que não se compadecem com a normal relação músico-ouvinte. Somos arrastados em conjunto. Fomos arrastados nessa noite em Algés, quando Valentin fez gritar e chorar a sua sanfona, da qual arrancou sons inacreditáveis, sons de outro mundo e de outros tempos, sons do fim do mundo. O céu e o inferno. Rugidos e explosões. Preces e murmúrios. O compasso marcado pelos pés em hecatombe contra o palco num arrebatamento sem limites.
            Já depois do concerto terminado, nos bastidores, denotando uma serenidade a contrastar com a possessão a que se entregara minutos antes, Valentin Clastrier falou suavemente de lendas, de santos e demónios, do estudo e da vivência da espiritualidade trovadoresca aos quais há anos se dedica, da gnose espiritual e musical, do tempo e da eternidade, da sua posição de “outsider” no seio da indústria. Loucura santa. Nessa altura jurámos que haveríamos de o ver “atuar” de novo em Portugal. Era obrigatório que muitos mais do que aqueles poucos que saíram com a cabeça nas estrelas nessa noite em Algés, recebessem esta música detentora do poder da transfiguração. Essa oportunidade chegou. E com ela a claridade.
            Valentin Clastrier toca sanfona eletro-acústica desde 1983. Ele próprio idealizou e construiu um modelo original deste instrumento muito popular na Idade Média, e adoptado pela cultura trovadoresca. O modelo que inventou possui mais cordas que o modelo tradicional e a sua ligação a vários pedais eletrónicos permite-lhe a reprodução de sonoridades de violino, violoncelo, baixo ou guitarra elétrica. Com base na música tradicional francesa e italiana, o jazz europeu e a música contemporânea, a par das potencialidades técnicas e expressivas desta sanfona protótipo, Clastrier desenvolveu um estilo único que o torna num dos músicos mais originais e radicais da atualidade. Actuou ao lado de Henri Texier, Michael Riessler, Gérard Siracusa, Michel
Godard, Carlo Rizzo, Joëlle Leandre e fez parte do grupo contemporâneo de sanfonas, Viellistic Orchestra. Gravou os álbuns “Chants de la Mémoire”, “Hérésie”, “Le Bûcher des Silences”, “Palud” e a caixa de dois CD, “Hurdy-gurdy from the Land of the Cathars”.
            De todos eles, “Heresie” é o mais conhecido e o único que teve distribuição em Portugal. São vários os títulos deste álbum que Clastrier tocará para o público português nesta sua mini-digressão por Abrantes, Santiago do Cacém, Silves, Ponte de Sor e Estremoz, no âmbito do festival Sete Sóis Sete Luas.
            “Fin’amors de flamenca” fala do amor idealizado, a partir de um romance occitano do séc.XII. “Comme dans un train pour une étoile” — “Se apanharmos um comboio para nos encontrarmos em Tarascon ou em Roma, é como apanhar a morte para viajar no interior de uma estrela” (excerto de uma carta de Van Gogh ao seu irmão) — foi escrito para uma peça de teatro em homenagem ao poeta e dramaturgo Antonin Artaud. “Endura” designa o jejum até à morte dos prisioneiros cátaros, prática à qual se submetiam como forma extrema de escapar à tortura da Inquisição. Valentin Clastrier apresentará ainda os inéditos “Au fond des temps” e “Gala”, dedicado à mulher de Paul Éluard e, posteriormente, Salvador Dali. E “Et la roue de la vie”, do álbum “Le Bûcher des Silences”, jogo de palavras continuamente repetidas até “roue de la vie” se transformar em “vielle-a-roue”, “sanfona”.
            Transformação da vida em música. Alquimia suprema a de Valentin Clastrier, mestre na verdadeira aceção da palavra.

DIGRESSÃO

ABRANTES, dia 1, Cineteatro São Pedro
SANTIAGO DO CACÉM, dia 3, Biblioteca Municipal
SILVES, dia 4, Igreja da Misericórdia
PONTE DE SÔR, dia 5, Teatro Municipal
ESTREMOZ, dia 6, Teatro Bernardo Ribeiro

Todos os concertos às 21h30.
Entrada livre.

Sem comentários: