07/12/2016

Blondes have more fun [Carla Bley]

JAZZ
CONCERTO
PÚBLICO 20 JULHO 2002

Carla Bley é jazz com rosto de amazona mas também uma sensibilidade exposta ora como liturgia ora como anedota. Virá a Lisboa com a sua big band.

Blondes have more fun

Carla Bley. The "very big Carla Bley", a "muito grande Carla Bley", parafraseando o título de um dos álbuns desta compositora norte-americana que na próxima terça-feira atua no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é uma personalidade ímpar do jazz contemporâneo.
            Quando, no final dos anos 60, muitos perdiam o pulso e o Norte, consumada a sangria do "free" e a retoma dolorosa do "bop", esta natural de Oakland, Califórnia, de cabelos cor de palha e uma sensualidade difusa, hoje com 64 anos de idade, ensinou a trilhar novos caminhos ao mesmo tempo que devolveu ao jazz o sorriso largo e carnavalesco que se perdera com o fecho das portas dos clubes e cabarés de New Orleans.
            Sem renegar a tradição, esta compositora, arranjadora, pianista e líder de orquestra construiu o seu império a expensas de uma descomunal intuição, uma inteligência tão aguda como servida de sentido de humor, e da escolha dos melhores "jazzmen" disponíveis em ambos os lados do Atlântico. O "puzzle", imenso, está longe de ficar resolvido, como provam as suas edições discográficas mais recentes: "Fancy Chamber Music", périplo impressionista pela música de câmara, e "4x4", retoma nostálgica dos "blues" e do mistério em regime de viagem interminável.
            O jazz de Carla Bley pode provocar pruridos nos puristas. Não tanto pela transgressão das regras – as quais, de resto, no jazz, existem para serem postas em causa e logo de novo acatadas, num eterno jogo de revolta e arrependimento – mas pelo pecado, sem perdão, de prender esses mesmos puristas a um sortilégio sem remédio, de uma música que está longe de ser conforme os mandamentos. E, no entanto, quão próxima da liturgia e do sentimento da totalidade e da diversidade sagrada do mundo... Uma música simultaneamente universal e arrebatadoramente personalizada, cuja arquitetura se baseia nos planos desenhados por Ellington e Gil Evans, mas cujas paredes são moldadas na argamassa do humor, do desdém, da cultura, da intuição e da excentricidade da sua autora.
            Bley é uma personalidade complexa, ponto assente, verdade aliás exemplarmente ilustrada pela sua discografia a solo (ver caixa), gravada na sua quase totalidade para a editora Watt. No formato de "big band", o seu preferido, como confessou ao PÚBLICO, aquele com que agora se apresenta entre nós, à frente da sua Big Carla Bley Band, composta por 20 elementos (tendo como elementos de destaque o trio de saxofonistas de luxo composto por Wolfgang Puschnig, Andy Sheppard e Julian Arguelles, o trompetista Lew Soloff, o trombonista Gary Valente e o baixista e seu actual marido, Steve Swallow), ou em formações menos numerosas, a música de Carla Bley tem um sabor e um perfume únicos.
            Mestiçagem espiritual e musical que radica tanto na educação religiosa recebida na infância, como na iconoclastia e no prazer do jogo; numa sensibilidade europeísta por vezes próxima dos impressionistas franceses do fim do século XIX, como na assunção plena das origens americanas e negras do jazz. Carla é o paradoxo tornado evidência. A música dos contrastes, dos rituais e das serpentinas. Dos hinos religiosos e dos "blues". Da nostalgia do paraíso perdido e reencontrado num brinquedo partido.

Da igreja para o jazz, de “skate”

            Nascida em 1938 em Oakland, na Califórnia, Carla Bley passa os primeiros anos de vida a ouvir música em casa e a ouvir sermões religiosos dos pais. Aos quatro anos já toca piano e canta no coro da igreja local, e toca órgão em casamentos e funerais ("A Genuine Tongue Funeral" é uma das suas primeiras gravações, num álbum com assinatura do vibrafonista Gary Burton). Aos 12, abandona momentaneamente os teclados e a catequese para se dedicar ao "skate", a cuja prática se entrega com afinco e durante três anos. Hoje, pode dizer-se que o "skating" está presente no modo como contorna os obstáculos que se deparam à sua música.
            Aos 15, encontramo-la como empregada de uma loja de música, daí transitando para o acompanhamento de uma anónima cantora folk da cidade, antes de começar a tocar piano em bares. Encontra o jazz aos 19. Em Nova Iorque, obviamente. Vende cigarros no Birdland (mítico clube de jazz situado na Broadway, entre as ruas 52 e 53) e trava conhecimento com o pianista Paul Bley, com quem virá a casar, em 1957. Começa a compor e a ouvir professores como George Russell, Jimmy Giuffre, Art Farmer e, claro, o marido.
            Já nos anos 60 e bem rodada nos árduos caminhos do jazz, cruza-se com o trompetista Michael Mantler (com quem também contrairá casamento...) e entra na Jazz Composers' Guild, mais tarde Jazz Composers Orchestra, ao lado de Roswell Rudd, Archie Shepp e Milford Graves.
            É com esta formação que assina a ópera "Escalator over the Hill" (composta e gravada entre 1968 e 1971), verdadeiro "who's who" do jazz contemporâneo da época, com as participações de Roswell Rudd, Gato Barbieri, Charlie Haden, Michael Mantler, Enrico Rava, Paul Motian, Howard Johnson, Don Cherry, Sheila Jordan, Bob Stewart, Don Cherry, Jack Bruce, Don Preston e John McLaughlin, entre outros, como a cantora de "country" Linda Ronstadt.
            O caminho estava traçado para esta mulher de armas que sempre recusou o compromisso em nome de uma liberdade nem sempre bem compreendida (as incursões, nos anos 80, numa música aparentemente superficial e conotada com o "entertainment" de casino se, por um lado, são coerentes com o seu passado e com o gosto pela ironia que desde sempre perfilhou, não deixam, por outro, de revelar algumas fragilidades na deslocação da ênfase na composição estruturalmente mais "nobre" para o domínio da execução, lúdica e linear, ainda que formatada nos espirituais e do "rhythm 'n' blues") mas que finalmente encontrará o equilíbrio entre a "boutade" e o confessional, o paradigma da "big band" traçado como regra de ouro por Duke Ellington e a sua desmontagem, a exteriorização, enfim, de uma paixão absolutamente assumida como "modus vivendi" musical, mas que amiúde se disfarça nas delícias do "nonsense".

Big Carla Bley Band
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
Dia 22 de Julho às 21h30
Telef. 21 3612 444


DISCOGRAFIA SELECIONADA

Escalator Over the Hill (1971)
A reedição em CD tem uma apresentação luxuosa. Toda em ouro, como os cabelos e a música da sua autora. É uma ópera com partitura de Paul Haines composta e gravada entre 1968 e 1971 cuja “audácia” alguma crítica comparou à de “Sgt. Peppers...”, dos Beatles, mas com “melhores músicos”. Música grandiosa e triste, mudou a face do jazz da sua década.

Tropic Appetites (1974)
De novo as palavras de Paul Haines para um álbum de clima Durasiano, marcado pelo exotismo de paisagens distantes. “In India”, “Caucasian bird rifles”, “Indonesian dock sucking supreme”, “Song of the jungle stream” introduziram o sorriso numa música da qual se desprende algo parecido com... “saudade”. O sax de Gato Barbieri e a voz de Julie Tippetts. Os sons de cristal de Bley (Celesta, sinos, marimba...) mantinham o brinquedo intacto.

Dinner Music (1977)
Emerge a ambiência “fin de siècle”, parisiense e melancólica (Paris foi sempre lar adotivo do jazz americano), num álbum onde as fanfarras e o espírito dos “blues” erguem os copos numa saudação a Dyonisius. Porque será que cada nota escrita por Bley soa sempre como um adeus e um olá?

Musique Mecanique (1979)
Obra-prima absoluta do jazz contrajazz contemporâneo, por muito que custe a engolir a alguns. O humor e a imaginação postos ao serviço da grande aventura “para fora de”. Ambivalências folk, o dedo “cubanizante” de Charlie Haden, o estrabismo visionário de Eugene Chadbourne, o trombone mais free que o free de Rudd, o sax igual a angústia do malogrado Gary Windo. É funky, tem “Jesus Maria” e termina no título-tema, magnum opus surreal celebrado num carrocel de pé-quebrado. Com assombrações de sobra por onde escolher.

Social Studies (1981)
Entre um “tango reacionário” e uma “valsa sinistra”, ficam patentes alguns dos interiores que Bley povoa com as suas obsessões (levadas ao extremo na sequência serial da BSO, “Mortelle Randonnée”) e obliterações. Os sopros ostentam uma vez mais o timbre necrófago de Michael Mantler num álbum que ostenta já o balanço que haveria de conduzir a música de Bley ao salão de variedades de David Lynch.

The Very Big Carla Bley (1991)
Rodeada por muitos dos músicos que estará presentes em Portugal, Bley obtém aqui um dos seus trabalhos mais apurados na confecção da difícil arte combinatória das “big bands”, atingindo o expoente contrapontístico nos fabulosos “United States” e “All fall down”.

Fancy Chamber Music (1998)
Carla encontrou Satie e Debussy numa tarde de Outuno, junto ao Sena. Reunião de várias composições escritas por encomenda num registo assumidamente “clássico”, com as cordas a desempenhar pela primeira vez papel preponderante, “Fancy Chamber Music” é rosas lívidas e Champagne derramado, chuva e luz velada em dia de circo sem público. Duas “Romantic notions” explicam muita coisa...

4x4 (2000)
Ao fim de 30 anos, o jazz clássico, redimido e transfigurado num périplo com passagem pela Noruega (estação principal), Malta, Sardenha, Sicília, França, Suíça, Áustria e Dinamarca. Ou como os “blues” se tornaram património anímico da humanidade. Carla (clara, num “baseball” pleno de “groove”, no órgão de Larry Goldings), claro, coloriu-os a seu bel-prazer. Com as tintas usadas pelo pintor impressionista francês Henri Matisse, que serviu de inspiração à suite “Les trois lagoons”. O piano do fim é dos mais tristes que alguma vez tocou.

Nick Mason’s Fictitious Sports (1981)
Corpo estranho, espécie de tumor benigno, incrustado numa obra que primou sempre pela heterodoxia, “Fictitious Sports”, escrito integralmente por Bley para um projeto do baterista dos Pink Floyd, é Carla Bley “in rock”, em registo da mais pura demência. Os músicos são os mesmos do seu grupo de jazz, mas as canções entraram para o imaginário pop de um planeta alienígeno onde reina a voz de Robert Wyatt, dominando o cenário de loucura desbragada. Em “I’m a mineralist” convém segurar uma cadeira para não se ser sugado pela sua alucinação.

Todos os CD, menos “Fictitious Sports”: Edição Watt, com distribuição pela Dargil


CARLA BLEY DIXIT

Em plena digressão que a trará a Portugal, o Mil Folhas recolheu de Carla Bley algumas declarações que a seguir transcrevemos.
         Sobre os seus casamentos sucessivos com os músicos Paul Bley, Michael Mantler e Steve Swallow:
            Cada homem com quem vivi influenciou-me musicalmente.
         Sobre os puristas:
            Não faço a mínima ideia do que os puristas de jazz pensam de mim, nem quero saber.
         Sobre o “free jazz”:
            Fui um membro de aluguer da comunidade do free jazz. Não sabia nada sobre mudança de acordes até Steve Swallow me ensinar, foi por isso que passei grande parte do tempo a escrever para os músicos do free.
         Sobre o humor no jazz:
            Gosto da versão curta de “Star spangled banner”, é a minha anedota musical favorita. Também aprecio Victor Borge e Spike Jones. E sou fã dos Monty Python...
         Sobre “Escalator over the Hill”:
            Tornou-se uma obra em larga escala porque nunca parei de lhe acrescentar novas partes, enquanto esperava que alguma editora me desse dinheiro para a poder gravar. Como nenhuma se interessou, acabou por se tornar algo grandioso mesmo antes de ter os meios para avançar.
         Sobre “Fictitious Sports”, cuja música compôs para Nick Mason, baterista dos Pink Floyd, e onde Robert Wyatt canta o tema “I’m a mineralist”:
            Estas canções nunca teriam sido gravadas se não fosse por causa do Nick. A minha banda tocou-as algumas vezes mas nunca pensámos em preservá-las para a posteridade. Robert Wyatt não é um “mineralista”, mas um “animalista”. Adoro “Rock Bottom”.
         Sobre “The Hapless Child and Other Incrustable Stories”, de Michael Mantler:
            A única coisa de que me lembro desse disco é de ter descoberto uma “String machine” partida, que aproveitei para acrescentar às partes de teclados.
         Sobre a banda sonora “Mortelle Randonnée”, dificílima de encontrar:
            Eu própria não consegui arranjar uma cópia. Lembro-me de ter gravado uma quantidade de material que depois o realizador selecionou para o filme. Mas não escrevi a música de propósito para ele. Arnold Schoenberg disse em certa ocasião: “Só escreverei música para um filme se a música for feita primeiro e o filme vier depois.”
         Sobre “Musique Mecanique”:
            Em criança, levaram-me uma vez a uma exposição de máquinas de música mecânica, num museu em São Francisco. Influenciaram muito a minha música. Gostei especialmente das máquinas quebradas, aquelas que já não funcionavam muito bem.
         Sobre “Fancy Chamber Music”:
            Gosto de pensar neste álbum como maravilhoso e impressionista. Escrevi-o para músicos clássicos, pertencentes a um território muito diferente, que tanto eu como Steve mas acabáramos de visitar.
         Sobre “4x4”:
            Foi escrito para uma big band norueguesa e toda a gente sabe como os noruegueses são tristes.
         Sobre a América atual:
            O meu próximo álbum falará da América no ano 2002. Muitas das peças planeadas para este álbum serão apresentadas em Lisboa, incluindo o hino americano.
         Sobre o mundo:
            Adoro visitar lugares exóticos, em especial os do Sul. Lisboa será a etapa final da atual digressão. Depois seguirei para casa para escrever mais música.
         Sobre se as louras “have more fun”:
            Qualquer característica física fora de comum é uma ajuda para a carreira. Muito alto, muito baixo, muito claro, muito escuro, muito magro, muito gordo... Eu nasci com o cabelo preto. Aos 13 anos pintei-o de verde, mas à medida que foi crescendo, ficou louro...

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