23/12/2016

Amélia Muge derrota frieza do público

cultura DOMINGO, 11 JULHO 1999

Festival Sete Sóis Sete Luas, em Pontedera

Amélia Muge derrota frieza do público

Pontedera assistiu na noite de sexta-feira ao terceiro espetáculo de música portuguesa em terras italianas, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas. Depois dos Realejo e das Danças Ocultas, foi a vez de Amélia Muge encher a noite toscana com os sons, por vezes difíceis, do seu álbum mais recente, "Taco a Taco". Uma entorse num pé e a sisudez de um público que parecia formado por estátuas constituíram os principais obstáculos que a cantora ultrapassou com a força da sua voz e o carisma da sua presença.

O público italiano, pelo menos o de Pontedera, pequena cidade situada em plena região Toscânia, é assim: quando gosta, bate palmas, mas mais nada. Se uma canção lhe agrada especialmente bate durante mais tempo. É tudo. Nem um grito, um assobio, a mais pequena agitação na cadeira, "niente". A polidez e o recato absolutos. O cenário para o concerto de Amélia Muge estava montado no jardim da villa Malaspina, em Montecastello, o mesmo local onde há dois anos atuou Teresa Salgueiro, acompanhada pela guitarra de António Chainho. A paisagem parece decalcada de um filme de Ermano Olmi, feita no silêncio das estrelas e dos ciprestes. Amélia Muge veio perturbar esta serenidade. Mesmo não havendo "paredes para fazer tremer", como ela gosta que aconteça nas suas atuações.
            Antes do concerto, o azar bateu-lhe à porta. Uma queda pelas escadas abaixo do hotel teve como consequência uma entorse num pé. Mas mesmo o pé afetado não impediu a cantora portuguesa de passar o exame com uma perna às costas. Porque de um exame pareceu tratar-se, diante daquela série de figuras rigidamente postadas em frente ao palco mas que, no final, aprovaram com distinção.
            Amélia entregou-se, como sempre fez, de alma e coração. Mesmo fatigada, mesmo com o pé a doer, mesmo com o som e as luzes sem serem as melhores, conseguiu que a sua música se insinuasse, primeiro nos ouvidos, depois no coração, de uma plateia empedernida.
            "O mal-lavado", "Cantigas a Rosalia" e "A roupa do marinheiro" criaram ambiente mas não derreteram o gelo. Ambiente de estranheza que o público italiano não soube muito bem como lidar antes de chegar à conclusão de que estava perante uma voz e uma música diferentes do que é costume associar-se à música portuguesa. "O tolinho da aldeia" reforçou esta aparente incompatibilidade entre quem esperava a facilidade e quem ofereceu a coerência e a intransigência em pactuar com qualquer espécie de truques.

Portunhol fluente

            Em "Taco a Taco" a cantora procurou explicar, num portunhol fluente, o teor da canção, acabando, no entanto, por encolher os ombros e reconhecer que mesmo os portugueses não percebem do que é que se trata. Até que chegou o momento mágico da noite. A senha foi o nome de Fernando Pessoa, autor da letra de "Nevoeiro", mas a magia aconteceu com a soberba interpretação vocal, plena de emotividade, como se a hora do poema verdadeiramente chegasse naquele instante. O público não teve outro remédio senão entregar-se, aplaudindo com uma salva de palmas interminável.
            Nesta altura foi possível perceber que é pela duração do aplauso e não por qualquer outro tipo de manifestação emotiva que se deve aferir a aprovação, ou não, do público de Pontedera. Se aplaude muito tempo é porque gosta. Se permanece imóvel como uma vedação de estacas, o melhor a fazer é arrumar as malas. No caso de Amélia Muge pode dizer-se que, segunda esta bitola, a assistência entrou em delírio, já que aqui e ali se chegaram a ouvir "bravos" (mais sussurrados do que gritados...) de incitamento.
            A partir de "Nevoeiro" tudo se tornou mais fácil. Em "Cantiga de segada" os italianos tiveram mesmo direito a um momento de identificação, uma vez que a polifonia vocal criada pelas vozes de José Manuel David e Amélia Muge navega nas mesmas correntes mediterrânicas que passam pela Córsega, ou ainda mais perto, pela Sardenha.
            José Manuel David foi, de resto, o motor instrumental de todo o concerto, passando da gaita-de-foles para a flauta, do kissange para o piano e, no último tema, "A saia da Carolina" – entre a música antiga, o folclore português e ressonâncias árabes –, para uma cromorna da Renascença. José Martins e João Lobo rubricaram um interessante dueto de percussões, em "Moby Dick", e Rui Pereira, "Dudas", soltou-se em "A saia da carolina", num dos seus idiomas preferidos, o jazz, neste caso executado num alaúde árabe, solando com a alma e os dedos de um Rabih Abou-Khalil. Yuri Daniel foi o esteio seguro, no contrabaixo.
            Voltaram todos ao palco, apesar de alguma hesitação (a reação de Amélia Muge às palmas finais, embora mantendo-se a compostura de sempre, foi perguntar se isso significava um pedido de encore...). O público queria mesmo mais. Amélia acedeu, oferecendo-se num exercício intimista, interpretando a solo "Se não tenho outra voz", sobre um poema de José Saramago, terminando, já com todos os músicos de novo em palco, com "A avó Emília". Foi o cabo dos trabalhos para explicar a palavra "avó" ("nonna", em italiano). Uma luta taco a taco contra a distância e o comedimento da qual a música portuguesa e, em particular Amélia Muge, saíram vencedores.

Sem comentários: