23/02/2017

Acordar com o buzinão [Tony Conrad]

cultura SEGUNDA-FEIRA, 13 MARÇO 2000

Tony Conrad espanta e convence no Museu de Serralves, no Porto

Acordar com o buzinão

Ocultos por uma cortina, como dois fantasmas, Tony Conrad e Alexandria Gelencser refutaram todas as noções tidas por seguras sobre a música e a sua interpretação. Não foi a música das esferas, mas o magma anterior à criação que revelaram ao público do Porto. O som em estado bruto.

Um buzinão em estereofonia. Foi assim que soou a música do norte-americano Tony Conrad, na sua primeira e única apresentação em Portugal, sábado, no Museu de Serralves, no Porto, no âmbito do ciclo On/Off, paralelo à exposição "Andy Warhol – A Factory". Um buzinão produzido em simultâneo por um parque automóvel inteiro e uma frota de navios.
            Durante cerca de uma hora e um quarto, Tony Conrad e a sua companheira Alexandria Gelencser "executaram", respetivamente no violino e no violoncelo, uma "drone" ininterrupta em que todas as noções convencionais de "composição" e "interpretação" se diluíram no "continuum" sonoro.
            Nem Tony Conrad, nem a sua companheira são intérpretes no sentido tradicional do termo. Nem sequer artistas com uma presença convencional em palco. Atuaram todo o "concerto" ocultos por uma cortina onde eram projetadas as suas silhuetas, como sombras chinesas. Ela sempre imóvel, ele num estranho bailado com o violino, e com um chapéu estilo Freddy Kruger.
            Utilizaram-se ambos dos respetivos instrumentos para instalarem na sala um som sem princípio nem fim, neste ponto de acordo com os princípios enunciados pelo guru La Monte Young, a quem Conrad esteve umbilicalmente ligado e cujas teorias procurou refutar. Alexandria tocou sem uma pausa sistematicamente a mesma nota, mais ou menos amplificada (aliás, foi essa capacidade em se manter fiel a uma única nota que terá seduzido Conrad em primeiro lugar e o terá levado a convidar para o palco a "violoncelista"...). Sobre esta nota, Tony Conrad acrescentou um molho de outras, arranhadas, arrancadas em postas de sangue ao violino. As únicas alterações sensíveis eram provocadas pelo aumento ou diminuição do volume e da carga de distorção provocada por meios eletrónicos. E assim, durante um período de tempo impossível de ser medido segundo os parâmetros normais, todos – músicos e público – aguentaram com estoicismo este "happening" descolado da fonte primordial do som.
            Diga-se que, embora radical pelo lado da insistência numa única tónica, por vezes no limite do suportável, esta música encontra parentesco estético em músicos como Charlemagne Palestine, Steve Reich (nas primeiras obras, como "Four Organs" ou "Phase Patterns", embora num quadro de sistematização que Conrad em absoluto dispensa) e o próprio La Monte Young. Uma música que, partindo de uma síncrese inicial, pretende, pela libertação sistemática de harmónicos, induzir o ouvinte num segundo nível, superior, de audição, levando-o a ouvir uma espécie de "música secreta" formatada pelo seu próprio subconsciente. Exemplo magnífico: há anos, na Gulbenkian, Steve Reich criou um nirvana virtual sustentado unicamente pelos harmónicos de seis pianos verticais.

            Mas Conrad não é Reich. Para que este salto qualitativo aconteça é necessário, quer se queira quer não, virtuosismo da execução. E foi por aqui, e só por aqui, que o "concerto" de Conrad e da sua companheira revelou a sua dissidência. Não aconteceu uma segunda música, sobreposta à da superfície, porque tanto o violino como o violoncelo nunca vibraram em sintonia com a música das esferas que os minimalistas almejavam. Como um Boeing que em vez de asas tivesse lagartas. Em lugar de harmónicos em suspensão, ouviu-se um ranger de dentes, um som que, insistentemente, rasou o chão. Mas essa é, afinal, a intenção de Tony Conrad – a desmistificação do minimalismo, amarrando o auditor à estaca zero da música. Desta opção poderá resultar outra espécie de transe, um estado de entorpecimento provocado pela monotonia e pela opacidade do som. Mas fosse qual fosse o modo como cada um, no auditório do Museu Serralves, interiorizou esta recusa sistemática do politicamente correto, a verdade é que a resposta final foi um prolongado aplauso de que o próprio Conrad, provavelmente, não estaria à espera. Só no final, ele e Alexandria se mostraram fisicamente ao público, para agradecer. Um homem gorducho com ar de avô bonacheirão e uma quase criança de olhar assustado. Sós, sem qualquer proteção, expostos perante uma hipotética e afinal não confirmada agressividade ou indiferença do público, conseguiram o prodígio de dar a ouvir o fluxo do som anterior a toda a música e mostrar o gesto que antecede a sua interpretação. O buzinão teve, afinal, o condão de nos acordar.

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