01/11/2016

Marlui Miranda, uma leoa na Amazónia

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 4 JUN 2002

Crítica Música
  
Marlui Miranda, uma leoa na Amazónia

Marlui Miranda
Festival Cantigas do Maio
Seixal, Fábrica Mundet
Dia 1, às 22h
Sala esgotada

Não existem leões na Amazónia? Existem leoas, pelo menos uma, Marlui Miranda, que fechou com chave de ouro a 13ª edição do festival Cantigas do Maio, que nos últimos dois fins-de-semana decorreu no Seixal. Com um espetáculo dividido em três partes, imbuído da música e dos rituais dos índios da Amazónia, a cantora brasileira apresentou-se descalça, pintada como uma índia, a juba ruiva de fera a acentuar-lhe o rosto.
Lado selvagem que se mostrou sobretudo na primeira parte, preenchida pela apresentação de “Ihu” (“todos os sons”, na língua dos índios Kamayurá). Com o corpo e a voz emoldurados harmonicamente por teclados e um violoncelo, a cantora entregou-se a uma espécie de dança, espiritual e corporal, que é também uma invocação ao sobrenatural e aos entes mágicos que povoam a floresta da Amazónia. Agitou o ar, os braços e as pernas, pondo a vibrar energias primordiais, a voz ora erguendo-se aos agudos do vento, ora descendo ao barro gutural e aos timbres húmidos da floresta.
Cortando a assombração, a segunda parte, composta por uma homenagem a diversos compositores brasileiros do século passado, com especial ênfase em Heitor Villa-Lobos, esteve a cargo da Camerata Atheneum. Funcionou como um interlúdio clássico, a preparar o público para a síntese final, inteiramente preenchida pela oratória “Kewere” (“rezar”), sobre textos em língua tupi do séc. XVIII do padre jesuíta José de Anchieta.
“Kewere”, na sua versão integral escrita para orquestra sinfónica e coro, é um manifesto ecológico em forma de “suite” que integra elementos da música de câmara, fragmentos vocais “a capella” e trechos instrumentais que tanto remetem para o pós-modernismo barroco de Hector Zazou (da fase de “Géologies” e “Géographies”) como para o trabalho orquestral de Egberto Gismonti, em particular a sua obra também ela com base na cultura da Amazónia.
De um extremo rigor na leitura da complexidade da peça, festiva ou primal na abordagem ritualística das partes “a capella”, Marlui Miranda estabeleceu ainda com o público um tipo de comunicação que não é habitual neste tipo de festivais. Em vez das tantas vezes patéticas palminhas de acompanhamento, a multidão que enchia por completo a Fábrica Mundet viu-se, sem saber bem como, mas completamente enfeitiçada pela proeza, a cantar em contraponto e com afinação mais do que conseguida, partes vocais de alguma complicação, sob a direção de mestre Marlui, “a índia”. Final apoteótico para um concerto diferente, a abrir perspetivas de programação interessantes a edições futuras do Cantigas do Maio.

EM RESUMO

Milagre Ritual, rigor e classicismo fundiram-se numa missa de prodígios em louvor à Amazónia. Um desses milagres — o da comunicação — teve no público um parceiro à altura

Sem comentários: