01/11/2016

Entre o aborrecimento e o sublime [Terry Riley]

CULTURA
QUINTA-FEIRA, 30 MAI 2002

Crítica Música

Entre o aborrecimento e o sublime

Terry Riley
26ºs Encontros de Música Contemporânea
Lisboa, Grande Auditório da Gulbenkian
Dia 28, 19h
Pouco público

Antiacadémico por natureza, amador no sentido nobre do termo, Terry Riley é unanimemente considerado um dos papas da escola minimalista americana dos anos 60 e 70, género que ajudou a implantar, curiosamente junto das camadas consumidoras do rock.
Alguns dos álbuns seminais que gravou nessa época, em particular “In ‘C’”, “A Rainbow in Curved Air” e “Persian Surgery Dervishes”, são clássicos por direito próprio, mas uma longa estadia na Índia sob a influência e os ensinamentos do músico e professor Pandit Pran Nath fizeram com que a sua música infletisse em territórios contíguos aos da “new age”. Se a filosofia de vida lucrou com a mudança, a música nem por isso.
Motivo pelo qual a segunda de duas apresentações em Lisboa, terça-feira, no Grande Auditório da Gulbenkian, no âmbito dos 26ºs Encontros de Música Contemporânea, este ano subordinados ao encontro entre o Oriente e o Ocidente, para interpretar em piano solo peças do seu próprio reportório, deixasse um sabor ambíguo, fruto da alternância entre o aborrecimento e os “clichés” mais estafados da “minimal repetitiva” e o sublime.
Terry Riley está longe de ser um “virtuose” do piano, mas nada fazia adivinhar a redundância do seu fraseado, ao longo de praticamente toda a primeira parte. Apoiada na segurança de uma mão esquerda há muito habituada a traçar os característicos ciclos de notas que se tornaram imagem de marca do minimalismo, a direita fracassou, sucumbindo ao lugar-comum, à ocasional falha de ritmo e ao floreado inconsequente.
Nos piores momentos, a música roçou o romantismo pindérico do Wim Mertens “para vender” ou do Michael Nyman de “O Piano” (recusamo-nos a fazer menção a Richard Clayderman...), buscando refúgio no ragtime, nos blues com adornos e na nostalgia do teatro da Broadway.
Mas Terry Riley também cantou — com uma voz cuja fragilidade pode soar a encanto — uma canção pop, a recordar o timbre moribundo de Robert Wyatt e uma faixa, “The soul of Patrick Lee”, incluída numa antiga colaboração com John Cale no álbum “Church of Anthrax”. Confrangedor.
Mas foi também através da voz que o compositor, já no final da primeira parte, conseguiu ir buscar alento e inspiração, numa litania que recorreu às técnicas de canto tradicionais indianas do “raga”. Sentiu-se que o vento mudava de direção...
E mudou de facto, soprando de feição ao longo de toda a segunda parte. Aí sim, aconteceu a libertação. Como no “raga”, Terry Riley encontrou o lugar certo dentro do som. Uma maior utilização dos pedais conferiu, por outro lado, à música, uma dimensão espacial (cósmica?). Em estado de graça, deixou de ser o músico a tocar a música para passar a ser a música que tocava o músico. A mão direita, como que por milagre, soltou-se e começou a voar, desenhando com agilidade estonteante arabescos e ideias que antes se tinham mantido teimosamente aprisionados na quadratura das escalas.
Terry Riley transformara-se numa espécie de Keith Jarrett em viagem por um céu interior sem nuvens, atravessado por uma paz imensa. Tombaram as reservas, as dúvidas e as suspeições, o coração comoveu-se. Perdido já de vista o horizonte de uma música que, por fim, quebrara as amarras.

EM RESUMO
O pior Os clichés minimalistas da primeira parte
O melhor Uma segunda parte feita de liberdade e comoção.
Só aí Terry Riley foi papa

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