22/11/2016

Violinos para Bartók [Festival Noites Celtas]

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 9 ABR 2001

Crítica Música

Violinos para Bartók

João Afonso e Muzsikas
Porto, Coliseu. Às 22h

Sala praticamente cheia

Parou de chover no Porto. Parou a chuva mas os buracos, não. Chegaram violinos entretanto. Dos Balcãs. Do grupo húngaro Muzsikas. Primeiro grande concerto do festival "Noites Celtas" que na sexta-feira teve início no Coliseu do Porto.
Mas coube ao português João Afonso abrir o festival. Não foi propriamente abrir, mas mais entreabrir. A música do sobrinho de um dos músicos mais importantes de sempre da música popular portuguesa (ele não gosta que citemos o seu nome, para evitar comparações, mas podemos adiantar que o apelido era também Afonso) pede licença para se fazer ouvir. Evoca passarinhos, sininhos, estrelinhas, florzinhas e outras coisas acabadas em "inho" e "inha". Uma musicazinha agradavelzinha que mal se ouve, logo se esquece. Causa até uma certa apreensão, sobretudo quando não há bombeiros por perto, de tal modo dá a sensação de que se pode quebrar ou desmaiar a qualquer momento.
Assim entreabertas, as "Noites Celtas" abriram de facto com os Muzsikas, grupo húngaro que já atuara no Intercéltico há algumas edições atrás. Márta Sebestyen, cantora cujo nome se tornou indissociável dos Muzsikas, não esteve presente desta vez, mas não se pode dizer que a música se tenha ressentido muito.
Em termos técnicos, qualquer dos quatro músicos dos Muzsikas é um executante de exceção. Mas um dos dois violinistas, Mihály Sipos, então, abusa. O solo arrebatador que rubricou ainda na primeira parte do concerto, fez a assistência saltar como uma mola (não é vulgar aplaudir-se de pé, antes de um concerto acabar). Oscilando entre o lúdico e o didático – por duas vezes fizeram-se ouvir velhíssimas gravações de campo recolhidas por Béla Bartók, compositor omnipresente na música húngara do século passado, a quem os Muzsikas dedicaram o seu disco mais recente, "The Bartók Album" – estas releituras do folclore dos Balcãs incluíram, além dos instrumentais delirantes, baladas de uma beleza e delicadeza melódica infinitas. Aliás, por mais extraordinário que possa parecer, é possível saborear a música sem ser com as mãos. A marcar, ou a desmarcar, o compasso com as inevitáveis palmas. Usando os ouvidos da alma, acreditem, encontram-se mil e uma delícias mesmo nos temas lentos. Vale a pena experimentar.
É verdade que os próprios Muzsikas nem sempre foram tão ascetas. Quando Péter Istvan Éri sugeriu que se encontrava à venda no átrio do Coliseu a versão húngara de "The Bartók Album" (com o bónus apelativo que é a inclusão de um livrete inteiramente redigido na língua magiar) estava-se longe dos altíssimos cumes espirituais da música balcânica. Ou quando o convidado especial, Alexander Balanescu, que já tinha tocado com os Muzsikas em "The Bartók Album", apresentado de forma coloquial como "Alex", subiu ao palco, visivelmente bem disposto, para dedicar o seu primeiro solo – improvisado – de violino ao vinho do Porto. Balanescu é o 1º violino e líder dos Balanescu Quartet, sendo considerado um dos principais solistas deste instrumento, na música contemporânea, da atualidade.
Quer nesta primeira e longa improvisação, quer nos diálogos com Mihály Sipos, na execução de um par dos complicados e tecnicamente exigentes "Duetos para violino" de Bartók, Balanescu não deixou os seus créditos por mãos alheias, mesmo se, quiçá por causa da dose extra de entusiasmo proporcionada por essa poção mágica que é o vinho do Porto, os fios de crina de cavalo do arco do violino tenham sofrido um pouco, soltando-se do arco como os cabelos de uma cabeça com seborreia. E cá para nós, que nem ele nem mais ninguém nos ouve, a sonoridade aguçada do seu violino não se sobrepôs de modo algum às tonalidades quentes e ao engenho harmónico de Mihály Sipos.
Terá tocado mais perto no absoluto e sangrado mais – do estilo, "tocar até morrer" – a anterior atuação dos Muzsikas no Porto. Esta terá sido mais contida e elegante, cuidando dos aspectos formais e da gestão do equilíbrio arquitetónico do espetáculo, em detrimento da pura animalidade e da vertigem da outra. Ainda assim, grande música, a dos Muzsikas.

DESTAQUE

Duelo de violinos Mihály Sipos e o convidado Alexander Balanescu teceram armas nos duetos para violino de Béla Bartók. O tradicional venceu o contemporâneo.

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