25/09/2008

Márta Sebestyén - Apocrypha

Pop Rock

13 MAIO 1992

PRIMEIRO ESTRANHA-SE, DEPOIS ENTRANHA-SE

MÁRTA SEBESTYÉN
Apocrypha

CD, Rykodisc/Hannibal, distri. MVM

A primeira audição confunde, desnorteia, coloca interrogações. Neste contexto, faz todo o sentido a frase de Pessoa. Habituámo-nos à pureza do rosto de Márta Sebestyén e, por analogia, a ver nela e na sua música um território demarcado, um reduto indestrutível, um santuário de ortodoxia na paisagem inflacionada das músicas tradicionais.
A audição de “Apocrypha” começa, pois, por ser um choque. Mais para os nossos hábitos e preconceitos do que outra coisa, pois a experiência até nem é inédita. Márta decidiu arriscar e ser diferente. As “Muszikas” passaram a ser outras e com outros intérpretes. Para o lado ficou arredada a Hungria profunda e cigana de “The Prisoner’s Song”, “Muszikas” e “Transylvannia Blues”, substituída pela poesia, de outro tipo, dos computadores. O rosto de Márta, esse, continua resplandecente, iluminado por um sorriso onde agora julgamos ver um toque de ironia.
“Apocrypha” é então um disco de música electrónica na mesma medida que “Rosensfole”, de Agnes Buen Garnas com Jan Garbarek, “Gula Gula”, de Mari Boine Persen ou “Sagn”, de Arild Andersen, o são: efabulações imaginárias da tradição, delineadas sobre novos mapas e segundo modelos de sensibilidade moldados no convívio com a tecnologia electrónica.
No caso particular de Márta Sebestyén e da música folclórica da Hungria – que continua a ser o material base de todas as composições de “Apocrypha” –, poderia pôr-se reservas que se prendem às formas muito próprias desse mesmo folclore, ao arrebatamento dos intérpretes, sobretudo nos rasgos e síncopes arrancados aos instrumentos de corda. Diga-se desde já, e segundo esta perspectiva, que os computadores, manipulados por Károly Cserepes, estão longe de possuir a elasticidade e a riqueza expressiva de um violino cigano, de uma bombarda ou de uma gaita-de-foles, qualquer destes instrumentos fazendo parte da panóplia dos Muszikas.
A voz de Márta Sebestyén passou então a movimentar-se num terreno diferente. Se, nos Muszikas, se permitia entregar-se a maiores transportes dramáticos, agora inflectiu nos acentos poéticos, jogando na contenção e a uma espécie de jogo subtil do gato e do rato com os estímulos e automatismos propostos pelo computador. Táctica que resulta em pleno ao longo de todo o disco – onde, diga-se, a instrumentação tradicional não está de todo ausente, desempenhando embora um papel secundário – e que em “Betlehem, Betlehem” atinge o máximo de depuração e elevação.
Arrede-se, pois, para o canto, por esta ocasião, o que pensámos ser definitivo e reconheça-se, entre o pulsar dos sequenciadores, o que aprendemos a amar nos álbuns anteriores: uma voz com a energia do sol e o fascínio da lua, e uma música nascida das entranhas do tempo que aqui foi capaz de obter a mais difícil das vitórias: da ideia contra a prisão das sombras transitórias. (8)

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