16/04/2015

Um colóquio para o fado [1º Colóquio Internacional do Fado]



SÁBADO, 24 NOV 2001

Um colóquio para o fado

CONCERTO HOJE À NOITE

O fado e os seus intervenientes foram objeto de estudo, discussão e alguma polémica na Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa

O fado está na ordem do dia. Durante três dias, a Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, em Lisboa, levou a cabo o 1º Colóquio Internacional do Fado, que hoje termina com o sexto e último painel da ordem de trabalhos e teve como intervenientes investigadores, músicos e o próprio público inscrito que praticamente encheu o auditório.
            Falou-se do fado, de onde ele veio ou de onde se pensa que poderá ter vindo. Em todos os quadrantes geográficos o fado parece reivindicar direitos, mais ou menos legítimos. Discutiu-se fado, em bases académicas e científicas, tanto como na palavra inflamada dos seus principais protagonistas, os fadistas, que na tarde se ontem se fizeram representar numa mesa-redonda por Maria Armanda, João Braga, Carlos Zel e Rodrigo, e o guitarrista José Pracana.
Destacar, por um lado, a universalidade do fado – “Reminiscências da cultura árabe na música portuguesa”, “O género portuário” e “O fado nos testemunhos dos viajantes estrangeiros no Brasil” foram três dos tópicos abrangidos pelo painel inaugural do colóquio, “As Origens do Fado” – e, por outro, a sua relação umbilical com a cidade de Lisboa, fora as traves mestras deste colóquio. Uma das fontes citadas pelo musicólogo Rui Vieira Nery, na sua intervenção, “O fado nos testemunhos dos viajantes estrangeiros no Brasil colonial”, descreve mesmo o fado como “sensual e voluptuoso, encenando uma cena de sedução que imita as danças africanas”…
Situação impensável, esta de se debater o fado, se recuarmos duas décadas no calendário, quando o fado era sinónimo de situacionismo retrógrado, com conotações evidentes com o regime político anterior ao 25 de Abril. Por demais se agitou a bandeira dos “três efes”: fado, Fátima e futebol. Hoje sabe-se que a história não era bem essa, ou foi mal contada. Como o folclore, o fado foi na época do salazarismo desvirtuado e usado como forma de propaganda de uma ideologia que pretendeu fazer coincidir conservadorismo e tradição (depois do 25 de Abril o erro consistiu em identificar tradição com reacionarismo…). Conceitos que, em ambos os casos, são absolutamente distintos na sua essência.
Mas não se pense que o fado gozou de vida fácil no tempo da ditadura. Foi preciso chegar Amália para se assistir á dignificação de um género musical até então vilipendiado e remetido para o caixote das músicas menores.
De “rasca”, “abjeto” e “avinhado”, cantado por “rameiras” ou “mulherzinhas aos ais”, como lembrou Appio Sottomayor, jornalista e investigador, no âmbito do painel II do colóquio, “As Vivências do Fado na Cidade de Lisboa”, e citando as palavras de Luís Moita, um velho poeta de Lisboa, o fado, “sem guerras nem frentes de resistência”, foi progressivamente conquistando adeptos e largando o lastro das ideologias gastas. Hoje, mais do que aceite, o fado virou moda, e o desprezo deu lugar ao louvor.

Música do mundo
Ainda assim, não são concordantes algumas das vozes de quem o canta. Durante o debate de ontem, perspetivaram-se dois modos distintos de olhar o fado. Para os mais tradicionalistas, como Rodrigo, o fado é e deverá ser o que sempre foi, modalidade tradicional arreigada a preceitos e formas de composição específicos. “Strangers in the night”, cantado com o arrebatamento e técnicas de interpretação fadistas, bastaria para o transformar num fado? Foi a questão que Carlos Zel lançou à consideração da mesa. Houve ainda quem, como Rodrigo ou Maria Armanda, questionasse a validade de as novas fadistas cantarem os mesmos fados que a voz de Amália imortalizou e que consideram “versões definitivas”.
            Para os progressistas, como João Braga, pelo contrário, o fado é essencialmente expressão e interpretação, encontrando equivalências e insuspeitas cumplicidades com praticamente todas as músicas do mundo. Problema que não se coloca nas casas de fado, onde a oferta se dirige em primeiro lugar ao turista e o amor pelo fado e a boémia cedem aos ditames do lucro fácil
            João Braga alertou para a necessidade de uma mudança radical do sistema, visando acabar com o método, generalizado, dos “três fadinhos seguidos de intervalo para se beber mais um copo e assim fazer aumentar a conta, mais três fadinhos, e novo intervalo de consumo”.
            Opiniões divergentes que não invalidaram um objetivo comum: levar o fado a um número cada vez maior de pessoas, adaptando-o, sem o desvirtuar, aos tempos que correm.
            Porque, afinal, o importante será, ainda e sempre, haver quem saiba e sinta cantar o fado como se fosse tudo. Quando Amália, Carlos Ramos, Teresa de Noronha ou Manuel de Almeida cantavam o fado, o mundo calava-se. Quando Mafalda Arnauth ou Camané cantam o fado, o mundo cala-se. Ouvir a voz que vem de dentro, comover-se com ela, cantar-se a si próprio, eis o que verdadeiramente importa.
            Foram cerca de 60 as inscrições, número que, segundo Sara Pereira, demonstra o êxito do colóquio. Para a gestora da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, representa o “culminar de três anos de atividade e de trabalho em torno da investigação, da promoção e da divulgação do fado”. Três anos de atividade que fizeram da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa uma espécie de santuário do fado, onde acorrem fadistas, simplesmente para “conversar” ou para atuar no auditório do instituto.
            Hoje à noite, pelas 22h, Amina Alaoui dará um concerto de música marroquina, na Sala Santiago Alquimista, do IFICT (R. de Santiago, 19). Oportunidade para escutar ao vivo a música que preenche o álbum “Alcantara”. Talvez outro fado, já não género musical, mas estado de alma.


CINCO ÁLBUNS DE SEMPRE

Alfredo Marceneiro: The Fabulous Marceneiro (1960)
Amália Rodrigues: Amália Rodrigues (1962)
Maria Teresa de Noronha: O Melhor de Maria Teresa de Noronha (1988, gravações originais efetuadas entre 1961 e 1972)
Carlos do Carmo: Um Homem na Cidade (1977)
Manuel de Almeida: Eu Fadista me Confesso (1987)


CINCO ÁLBUNS DO PRESENTE

Camané: Esta Coisa da Alma (2000)
Mafalda Arnauth: Esta Voz que me Atravessa (2001)
Cristina Branco: Corpo Iluminado (2001)
Ana Sofia Varela: Ana Sofia Varela (2001)
Kátia Guerreiro: Fado Maior (2001)

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