08/09/2020

Quando um monstro espezinhou o rock [Can]


Y 24|DEZEMBRO|2004
música|can

Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de Colónia soam agora como nunca. É um pacote facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.


quando um monstro
ESPEZINHOU O ROCK

Há anos, numa entrevista a Holger Czukay, mencionámos de passagem o nosso desconsolo pela fraca qualidade de som de grande parte dos discos dos Can editados pela Spoon. Comparando com o som das gravações originais em vinilo, “Tago Mago”, por exemplo, pura e simplesmente era como se não tivesse ficado registado o som da guitarra baixo. Na altura o músico não pareceu dar muita importância ao assunto mas o tempo, felizmente, encarregou-se de repor a verdade sónica dos factos. Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de Colónia soam agora como nunca e até 2006 (tanto tempo!) seguir-se-ão as remasterizações dos oito álbuns seguintes. Até lá fiquemo-nos com este pacote facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.
            Num fórum sobre rock alemão dos anos 70, uma participante veterana insurgia-se contra a leitura que Julian Cope faz do “krautrock”. Segundo ela, a idealização do fã apaixonado que Cope é não corresponde à realidade. O “krautrock”, enquanto movimento estético, nunca terá existido. As bandas alemãs da época, procurando negar o passado traumático do seu país (nisto as opiniões dela e de Cope coincidem), limitavam-se a tentar copiar a música das suas congéneres inglesas americanas. Tudo o que pudesse soar a “alemão” era renegado pelos músicos e desprezado pelo público. Acontece que essas mesmas bandas imitavam mal os ingleses e os americanos, sobretudo porque as raízes no “blues” e no “rock ‘n’ roll” eram inexistentes. O resultado, paradoxal, de tal esforço, foi que a música daí resultante soava mais germânica do que nunca e fora dos parâmetros anglo-saxónicos.
            Claro que não foi bem assim e a própria história e discografias existentes revelaram, se não a existência de um movimento, pelo menos a evidência de uma auto-consciencialização, inclusive política, da parte de bandas e músicos como Amon Düül II, Cluster, Kraftwerk, Neu!, Popol Vuh, Tangerine Dream ou Achim Reichel. Os Ash Ra Tempel preocupavam-se mais com orgias de LSD e em tornar o seu “fake blues” numa viagem cósmica. Os Faust levavam a música de Zappa aos limites do delírio eletro-acústico, muito empurrados – é forçoso dizê-lo – pelo acaso, mas também por uma genial visão do que o futuro haveria de trazer. Sobram os Can.

            o pacote. Na perspetiva da mimetização dos modelos americanos, pode dizer-se que os Can procuraram de início, como se pode depreender da audição de “Monster Movie” (1969), imitar os Velvet Underground e o pré-punk de Detroit personificado pelos Stooges (há ainda quem cite, com alguma pertinência, a influência do rock de garagem minimalista dos The Monks, que passaram o início de carreira na Alemanha). O fantástico da coisa é que, feitas as contas finais, “Monster Movie” é mesmo um filme de monstros que os próprios Velvets nunca se atreveram a realizar. Típico das bandas alemãs, levar aos limites e, se possível, ultrapassá-los, as premissas de um rock que nunca deixou de lhes ser alheio. Foi também isso que fizeram, além dos Faust com Zappa, os Amon Düül II, ao abrirem o leque onírico do “acid rock” dos Jefferson Airplane ou os Tangerine Dream, ao atirarem a faceta mais planante dos Pink Floyd para a galáxia infinita da eletrónica sequenciada em “Phaedra” e “Rubycon”.
            Mas os Can nunca poderiam ser os Velvet. Czukay e o teclista Irmin Schmidt tinham sido educados por Karlheinz Stockhausen e pelas músicas de transe das civilizações tradicionais (“Cannaxis”, álbum a solo dessa época, de Holger Czukay, apontava já futuros caminhos para o grupo). A batida de “Father cannot yell” tem os pés nos VU, sem dúvida, mas eles, como bons “krautrockers”, vão longe demais e esmagam os edifícios como Godzila. A guitarra não poderia ser mais ácida, os Can escavavam na cabeça e no chão. A anedota é que o seu vocalista da altura, Malcolm Mooney, era negro e americano. Só que, ao contrário de Cale e de Reed, afinal de contas dois intelectuais, o seu canto obedecia às pulsões mais primais. Na ponta oposta, era uma música exposta ao psicadelismo, algo que os Velvet sempre recusaram (os sonhos do LSD não se compadecem com a chapada da heroína). “Mary, Mary so contrary” é a primeira grande canção dos Can, obsessiva e já indicadora da veia minimalista – poética e musical – que tornou o grupo diferente de todos os outros. Os 20 minutos de “You doo right” mostram os Can já na sua veia ritualística, mesmo se ainda iludidos pela grande viagem do “rock ‘n’ roll”.
            “Soundtracks”, gravado em 1969 e 1970, reúne temas compostos para bandas sonoras de vários filmes alemães “underground”. Irmin Schmidt, o único do grupo que viu as imagens, propôs aos outros a aplicação do conceito de “drama” retirado dos filmes (ou “tales”, como o teclista se lhes referia) como base para as suas improvisações. Os ambientes são mais serenos e raiam a paródia pop em “Tango whiskyman”. Damo Suzuki, o “busker” japonês que os Can convidaram para substituir Mooney (que abandonou o grupo para se juntar às Testemunhas de Jeová) e em quem Julian Cope viu uma espécie de Marc Bolan esquizofrénico, canta/declama em “Don’t turn the light on” e o “jazzy” “She brings the rain” possui o “groove” certo e aquele tipo de melodia, tão infantil como perversa, que marcaria as obras-primas “Ege Bamyasi” e “Future Days”. “Mother sky” são perto de 15 minutos de tiroteio percussivo de Jaki Liebezeit, “The human rhythm machine”, em rolamento “motorika” e alucinações tribais. A melodia vocal tem algo dos Stones psicadélicos e a pedrada é monumental.
            Desmesurada, como todo o álbum seguinte, “Tago Mago” (1971), um pedaço de cérebro entornado que convém recolher com certos cuidados. Na altura editado como disco duplo, “Tago Mago” faz o percurso inverso do rock progressivo, concentrando-se nesse “inner space” que deu nome ao estúdio do grupo. Os sons encaixam-se de modo quase mágico uns nos outros seguindo a máxima do “menos é mais” que o grupo poria em prática até “Saw Delight” e ao advento do “punk”, no ponto exato em que as noções de “canção” e “jam” se intercetam. Não uma “space jam”, como aquela onde embarcaram os Amon Düül II nos igualmente monstruosos duplos-álbuns “Yeti” e “Tanz der Lemminge”, mas uma “inner jam” onde as ideias flutuam num espaço acústico que permanece como o mais radical e experimental onde os Can navegaram. “Aumgn” é um lugar desolado, de vibrações elétricas, reverberações abissais, vozes descarnadas, o mesmo fundo do poço onde Peter Hammill desceu em “Magog (in bromine chambers)”, de “In Camera”. Convém levar corda. O próprio “Tago Mago” fornece uma, “Bring me coffee or tea”, o despertar dos mágicos, em mais uma vocalização pop sonambúlica de Suzuki.
            Na altura de “Ege Bamyasi” os Can lideravam a onda do rock “underground” proveniente do continente europeu, com John Peel a servir de anfitrião no Reino Unido. Se houvesse justiça neste mundo, o álbum teria sido “top one” nos “charts”. Não é todos os dias que aparece alguém a mudar a face do rock. Suzuki, fi gura central do disco (impressionado, Mark E. Smith, dos The Fall, intitulou uma das suas canções “I am Damo Suzuki”…) murmura e grita ao ponto de se desfazer em puros exercícios de “gestalt”, as canções são “bubblegum” do séc. XXII, hipnóticas, viciantes, futuristas e tribais. “Ege Bamyasi” ocupa um lugar de destaque na lista dos melhores discos de sempre.

CAN
Monster Movie
8|10
Soundtracks
8|10
Tago Mago
10|10
Ege Bamyasi
10|10
Spoon SACD, import. Ananana

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