02/09/2020

Não jazz dos Spring Heel Jack põe a cabeça em água


CULTURA
TERÇA-FEIRA, 7 DEZ 2004

Crítica Música

Não jazz dos Spring Heel Jack põe a cabeça em água

Spring Heel Jack
COIMBRA, Teatro Gil Vicente
Sábado, 4. 21h30. Sala praticamente cheia (até ao intervalo…)

Na boa tradição dos génios incompreendidos, o concerto que os Spring Heel Jack deram no sábado, a fechar o festival Jazz ao Centro, em Coimbra, provocou reações extremas. Metade da sala aplaudiu entusiasticamente a difícil proposta apresentada por John Coxon, Ashley Wales e companhia. A outra metade saiu a meio. “O tipo [John Coxon] não toca nada” e “isto não é jazz, jazz” foram alguns dos comentários ouvidos na sala. De um ponto de vista tradicional, John Coxon não toca nada. Ao piano, onde alinhavou algumas sequências de notas avulsas, ou na guitarra, da qual se entreteve a arrancar ruídos e acordes do tipo com que Derek Bailey ou Keith Rowie fizeram ciência, Coxon mostrou ser um executante limitado. O outro mentor do projeto, Ashley Wales, também não é propriamente um “virtuoso”, embora no seu caso, dada a natureza dos artefactos utilizados, sampler e parafernália eletrónica variada, se note menos. E sim, ou por outra, não, a música que os Spring Heel Jack fazem não é “jazz, jazz”. E, no entanto, tudo o que envolve a estética Spring Heel Jack passa pelo trabalho deste dupla que um dia se fartou de tocar “drum ‘n’ bass”.
Coxon e Wales têm um papel bem definido na economia do som. Cabe-lhes desenhar os contornos ou o espaço de manobra onde se vão desenrolar as contribuições dos solistas convidados. É a estes que compete romper as barreiras, ir mais além, ou simplesmente colorir os esboços desenhados pelos dois. Em Coimbra só foi pena não ter estado presente Evan Parker para a formação do novo álbum “The Sweetness of the Water” ficar completa. No disco, Parker garante que a lava escorra do vulcão.
Sem ele, coube ao trompetista Wadada Leo Smith alinhar fraseados mais imediatamente conotáveis com o que nos habituámos a considerar “música de jazz”. Smith tentou sempre criar brechas e singulares direções para as improvisações coletivas. Mas o ás da noite foi John Edwards, imaginativo e criativo nos solos de contrabaixo. Edwards tocou no limite do volume, com os dedos ou com o arco, arrancando “staccatos” nevróticos, gemidos, altercações guturais, implosões e explosões, fazendo-se sentir alguma raiva. Foi o único a descobrir espaços virgens. O concerto decorreu entre a livre improvisação e cenários previamente estabelecidos em “The Sweetness of the Water”, respeitando-se, mais ou menos subrepticiamente, o alinhamento do disco.
“Lata” destacou-se com a sua quase citação aos Suicide, sentindo-se, todavia, a falta de Evan Parker, “Track one” teve Coxon a balbuciar na harmónica e o fecho coincidiu com o último tema do álbum, “Autumn”, com Wales a encher a sala de acordes de órgão religioso. Houve mesmo uma espécie de “blues” atormentados o que, juntamente com o curto “encore” (não pedido) constituiu a única cedência aos hábitos auditivos mais enraizados. Bom ou mau concerto, a questão nem sequer se põe. O que os Spring Heel Jack propõem é um espaço aberto à imaginação. Ou se está lá dentro e se sonha, ou nada feito.

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