03/06/2008

Sérgio Godinho - Pano-Cru

Pop Rock

15 de Novembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Sérgio Godinho Pano-cru

Como foi

“É um disco em que – à excepção de um trecho, ‘O homem-fantasma’, com arranjo do Zíngaro – os arranjos são consequência da contribuição dos outros músicos”. Sérgio Godinho, naquele que para muitos é o seu melhor disco de sempre, prefere repartir responsabilidades e dividir os louros por toda a equipa. “Foi um método de trabalho em que peguei numa série de pessoas, nomeadamente o Guilherme Inês, o Zíngaro, o meu irmão Paulo, ou o Pedro Osório, e trabalhámos até encontrar soluções que me conviessem. De uma maneira informal e sem arranjos pré-escritos”. Uma opção “que vinha um bocado de trás” e “consequência de um trabalho que nunca deixou de acontecer mas foi talvez assumido de uma maneira mais funda neste disco”. Desta união de esforços resultaram uma “simplicidade instrumental e arranjos bastante básicos”, mas que o autor considera “bastante eficazes”. “Tem um som, agora com a história do CD, que eu ouvi e achei muito límpido. O próprio som do Moreno Pinto, um técnico que na altura fazia trabalhos muito bons, agrada-me muito”.
Disco de clássicos, “Pano-Cru” corresponde a um pico de inspiração na carreira discográfica de Sérgio Godinho. “Tínhamos saído um pouco da ressaca pós-PREC. Estava-se num período de mudança muito rápido e havia uma energia criativa que sentia à minha volta. A minha energia estava então mais virada para o futuro do que para lamentar o passado. Não gosto de chorar sobre o leite derramado. Havia coisas que se tinham perdido, mas, por outro lado, estavam em elaboração outras que, para mim, eram exaltantes, como o facto de poder trabalhar ao vivo com os músicos que eu queria, algo que na altura do PREC não era possível. Nessa altura, por exemplo, o Zíngaro tocava muitas vezes comigo. Tudo isto se reflecte no disco que foi imediatamente testado ao vivo numa digressão que fiz, de genérico, ‘Sete anos de canções’, correspondente à aparição de uma cooperativa, a Era Nova. Onde estavam o Zeca, o Fausto, o Vitorino, e da qual a primeira iniciativa foi esta digressão, um pouco por inspiração do Camilo Mortágua, que era um bocado a ‘alma pater’ desta cooperativa. Foram 24 espectáculos em 20 capitais de distrito. De uma maneira, para a altura, heróica, e da qual saímos com magros resultados financeiros. Fomos a sítios onde não havia nada e nos chegavam a perguntar se íamos tocar ‘variedades’”.
Entre todas as canções de “Pano-Cru” há uma que permanece, de uma maneira quase obsessiva, na memória: ‘O primeiro dia’. “Curiosamente, não começou por ser um ‘hit’ evidente. Demorou até ser interiorizada”. Sérgio Godinho define-a como “uma canção de ruptura, de repensar as coisas e encontrar uma certa sabedoria para o futuro”. “Nesse aspecto”, diz, “é uma canção que me persegue. No espectáculo ‘Escritor de Canções’ fiz questão de não a cantar, para a deixar repousar um bocado.” [Sérgio Godinho abriu aqui um parênteses para anunciar a edição, já no princípio de Dezembro, de um disco ao vivo, com o título “Noites Passadas”, registando os espectáculos no Coliseu e no S. Luiz, em Lisboa, e no Rivoli, no Porto, do ano passado e no qual se inclui uma versão, ‘muito boa’, de “O primeiro dia”.]
“Balada da Rita”, do filme “Kilas, o Mau da Fita”, é outro momento inesquecível de “Pano-Cru”. Uma canção “assumida no feminino”, e “cantada por um homem”. “Foi composta para ser cantada por uma mulher, a Lia Gama, aliás, como acontece na primeira versão, numa edição raríssima, da banda-sonora, e no próprio filme”. Sérgio Godinho deixou, no entanto, sempre no ar a possibilidade de ser ele a cantá-la. “Agrada-me essa ambiguidade de cantar na primeira pessoa do feminino, uma coisa que, curiosamente, foram sobretudo os brasileiros a fazer, o Caetano, o Chico, mas que não existe muito na música americana ou na francesa. Há uma espécie de pudor em relação a isso”. Uma canção, ainda, que o músico considera de “difícil versificação, porque tem três rimas seguidas diferentes que têm que rimar com outras três”. “Lá isso é”, retomada recentemente pelos Sitiados, é apontada como uma das canções que Sérgio Godinho deixou de cantar. “Há coisas na letra que perderam actualidade, mas isso parece não os incomodar muito. Coisas de pormenor, como uma quadra que diz ‘Há partidos de direita que põem sempre a bola ao centro, mas quem melhor os fintar é que vai marcar o tento’. Eles nem tinham percebido que a bola ao centro era a do CDS”.
Outra canção que Sérgio Godinho nunca cantou ao vivo é “2º andar direito”, a conversa nocturna entre dois amantes que se tornou num dos temas mais apreciados pelos admiradores deste compositor-intérprete. “É uma canção de frases, de diálogo, que curiosamente foi objecto de um exercício da Escola de Cinema, quando o Ricardo Pais era lá professor. Ele propôs aos alunos fazer uma planificação, um ‘script’ a partir dela. Há uma sugestão de diálogo permanente, de situações imagéticas. Houve mesmo um filme de dez minutos feito com esses ‘scripts’ para a televisão, pelo Ricardo Nogueira, que nunca mais vi”.
É a vertente cinematográfica da obra de Sérgio Godinho aqui já a fazer-se sentir e que o autor mais tarde viria a desenvolver através da sua linguagem própria. Como um realizador que planifica a vida em ‘sketches’, Sérgio Godinho observa do exterior, através da lente ou, neste caso, do vizinho que vive no apartamento ao lado do dos amantes. “Aliás, nesse tal filme de dez minutos, eu fazia precisamente de vizinho. Há um volte-face nessa canção. Está a ser contada por um narrador que depois se descobre ser um terceiro personagem. A partir daí, o narrador passa a ser eu, eu compositor, eu autor da canção. A introdução de um elemento inesperado, uma nova personagem, rouba o protagonismo ao casal. Existe um lado ficcional que pode ser cinematográfico”. Um “exercício de ficção”, ao contrário de “O primeiro dia”, que tem “algo de autobiográfico”.

Como é

O que distingue um disco bom de um disco mágico é esse pequeno nada capaz de desencadear emoções, de accionar maquinismos escondidos da imaginação, de estabelecer, enfim, cumplicidades várias com o auditor. “Pano-Cru” é um disco mágico. Equilibrando, sem custo aparente, o registo popular (“O galo é o dono dos ovos”, Venho aqui falar”, “Lá isso é”) com o intimismo (”O primeiro dia”, “2º andar direito”), a sátira de costumes (“A vida é feita de pequenos nadas”, “O homem-fantasma”) e a crónica de amores ou de personagens (“Feiticeira”, Balada da Rita”), sente-se nele o domínio da arte da narração, o casamento perfeito entre a intenção, o som e a palavra. Gerado num período conturbado da nossa História, três anos passados sobre o golpe de Abril, a densidade e a tensão presentes em cada canção ocultam-se por detrás da fluência e facilidade com que se desenrola esta espécie de “thriller” psicológico do português ainda tonto da revolução. Se o microcosmos de “2º andar, direito” – reflectindo as preocupações e dúvidas existenciais de quem acordara estremunhado da opressão dos corpos e dos sentimentos e redescobrira a liberdade e o prazer da fala – desencadeia de imediato um “feedback” emocional em todos os que acompanharam de perto esses tempos de mudança, “O primeiro dia”, uma das melhores canções de sempre da música popular portuguesa, é o tema intemporal por excelência, relógio implacável da nossa própria existência. “Pano-Cru” é ainda a confirmação de Sérgio Godinho como organizador não só de palavras, como de imagens. Aqui realizador de um filme em corrida eterna contra o tempo. Um filme, como se pode escutar no genérico final, ainda e sempre “por acabar”.

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