25/08/2016

Demónios da Transilvânia [Muzsikas e Leilia no Intercéltico]

PÚBLICO
cultura DOMINGO 27 MARÇO 1994

Intercéltico, no Porto

Demónios da Transilvânia

Concertos como o dos Muzsikas no segundo dia do Intercéltico do Porto não se descrevem. Quem lá esteve assistiu à viragem de uma página dourada na história do festival. Quem não esteve deverá lamentar-se até ao fim dos seus dias. Na primeira parte, as Leilia mostraram o avanço que nisto da música tradicional a Galiza leva sobre nós.

Pois, o impossível aconteceu. Até cerca das onze horas de sexta-feira o concerto do ano passado dos Chieftains neste mesmo festival parecia constituir uma barreira intransponível, a bitola de qualidade pela qual se poderiam aferir as atuações dos outros, miseráveis mortais. Os Muzsikas deitaram por terra esta teoria.
            Antes dos húngaros vieram da Galiza as Leilia dizer que é possível obrar com o passado de uma terra. Quando o amor celebra núpcias alquímicas com o trabalho. Seis mulheres vestidas a rigor com trajes tradicionais, armadas com pandeiretas e o canto coletivo de quem se entregou à vida naquilo que esta tem de mais autêntico e visceral, ritualizaram no Cinema do Terço a re-ligação, sob a forma de muiñeiras, mazurkas e jotas, a uma matriz ouro, verde e sangue – a “Galicia”, de Maeloc, Rosalia e Álvaro Cunqueiro.
            Cantaram como o crepitar de uma fogueira ou os sussurros de um rio, fazendo acompanhar as vozes pelo batimento sincronizado nas pandeiretas ou em instrumentos do quotidiano – uma sertã, uma lata de pimentos, enxadas percutidas com pedras. Mulheres de corpo nítido, reais como árvores, ou rochas ou aves – mulheres só – que ora coravam de timidez, ora deslizavam pelo palco conversando entre si, trocando de posições e sorrisos, alternando o canto com a vontade de explicar a sua pátria e ao mesmo tempo de encurtar o fosso que separa duas culturas – a protuguesa e a galega – que nasceram irmãs.
            Depois, bem, depois é que foram elas, ou melhor, eles. Quatro demónios com forma humana desceram das montanhas dos Cárpatos trazendo consigo um vento de loucura que varreu por completo a música que ficara para trás. Dániel Hámar, Miháli Sipos, Péter Heri e Sándor Csoóri – os Muzsikas – deixaram de rastos uma assistência literalmente siderada que no final saiu do recinto em estado de choque. Torna-se impossível descrever o que se passou em palco. Os Muzsikas não atuam no sentido vulgar do termo. Eles vivem, deixam-se arrastar enquanto tocam pelas cadências por vezes infernais da música, dos próprios ritmos interiores que brotam da alma dos Cárpatos, da Transilvânia e da Moldávia assombradas por seres e sons do outro mundo.
            Miháli Sipos é um violinista assombroso. Quando a improvisação o levou para as regiões a que só ouvidos com coração conseguem aceder, era ver no seu rosto um sorriso de felicidade, no transe de quem se abandona aos imperativos do movimento puro. Por vezes o violino não resistia uma corda desistia, separando-se do corpo de madeira. Sipos prosseguia, ainda com maior velocidade, fúria, ternura. Num dos temas, “Vonat” (“o comboio”), ele, juntamente com um prodigioso Sándor Csoóri na gaita-de-foles húngara – “ainda há pouco tempo era uma cabra”, dizia um dos músicos, enquanto Sándor mostrava o fole coberto de pelos, afrastando a gaita pelo chão como se esta fosse ainda um animal vivo – e Péter Éri na harmónica, dispararam em aceleração. Os ânimos dos presentes entraram em combustão espontânea com a entrada em cena do casal de bailarinos, Ildiko Tóth e Zoltan Farkas, corpos de alegria, danças de paixão. Ainda mais alucinante – e estou prestes a esgotar os adjetivos – foi a corrida de Sipos com o “gardon” (um falso violoncelo de formas angulosas utilizado como istrumento de percussão) de Daniel Hámar. Quem, na assistência, os conseguiu acompanhar, chegou à meta exausto.
            No meio deste frenesim coletivo, a cantora por quem todos ansiavam, Márta Sebestyen – e é quase escandalosa esta afirmação – pouco faltou para passar despercebida. Cantou apenas por três vezes, numa delas alternando a vocalização com a execução numa “flauta mágica” com apenas um buraco na extremidade, além da embocadura, e noutra tocando “tin whistle” num diálogo com o bouzouki de Péter Eri, de colorações “irlandesas”. Com o público em delírio aplaudindo de pé, os sete artistas regressaram ao palco para um “encore” em que a própria Márta acabou a dançar perante um público nesta altura já com a cabeça a andar à roda.
            Por fim, algumas linhas de descanso: os Muzsikas acabaram de lançar novo álbum, “Szóla A Kakas Már”, à semelhança do anterior “Máramaros”, dedicado à música dos judeus da Transilvânia. De tarde, no cinema Jardim, o jornalista Xoán Manuel Estévez, da publicação galega “A Nosa Terra” proferiu uma conferência sobre a música tradicional e popular da Galiza. De madrugada andaram fantasmas à solta pelo castelo onde se encontra alojada a comitiva do festival.

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