23/10/2009

"Não fazemos 'apartheid' entre o Norte e o Sul" [Frei Fado D'El Rei]

Sons

29 de Maio 1998

“Não fazemos ‘apartheid’ entre o Norte e o Sul”

Na Lua procuraram os Frei Fado d’el Rei a dama que iluminasse com o seu sorriso a música do novo álbum do grupo, “Encanto da Lua”. Lua cheia, lua lisa, lua sorridente. Eles acham que não e defendem o direito à loucura. Mas a Idade Média que cantam não é propriamente a idade das trevas. Haja luz.

Carla Lopes e Quico, respectivamente vocalista e teclista e autor das programações dos Frei Fado d’el Rei, defenderam diante do PÚBLICO a sua causa. Estão longe dos Madredeus e de uma pose que apenas apela à serenidade, garantem.
PÚBLICO – A quem se deve a temática lunar deste vosso novo trabalho?
QUICO – Ao José Martins (baixo e bandoloncelo), que é o elemento mais sonhador do grupo. A ele se deve a pesquisa de textos e o nome do álbum.
CARLA LOPES – O título-tema fala do encanto do Sol pela Lua. O contraste entre a noite e o dia. Não sei se é uma Lua demasiado bonitinha, como escreveu na crítica ao disco...
P. – Não acham então que é uma Lua bastante calma e sem grandes relevos? Ao nível da produção, por exemplo.
Q. – Mesmo ao vivo, o grupo faz este tipo de som, a base são duas guitarras de nylon, um baixo acústico e percussão. Como teclista, nunca poderia fazer nada agreste, tinha de ser algo que encaixasse. Não há propriamente no disco um trabalho de produção, de limpeza ou de limagem de arestas. Num tema como “Encanto da Lua” não há, de facto, picos, é uma coisa muito polida e planante. Mas tenho que reconhecer que por mais que grave, os sons gravados não são a mesma coisa que os sons feitos ao vivo. E este grupo, ao vivo, tem outra vida.
C.L. – Há músicas que não demonstram essa calma, como a “Bailia de Vigo”, que tem muita vivacidade e bastante percussão. Está cheia de energia. Ao vivo ainda se nota mais.
P. – De que forma estabeleceram a vossa relação com a Idade Média?
Q. – Foi, uma vez mais, através do José Martins, que tem uma ligação grande a esse tipo de música, assim como também é um fã dos Dead Can Dance. E de Pedro Caldeira Cabral e dos La Batalla. É algo que nos toca. Eu também sou um bocado apaixonado por essa área e reconheço os estilos, enquanto harmonia no tempo. “Mediantal”, por exemplo, é um tema épico, gótico à maneira dos Dead Can Dance.
P. – A gaita-de-foles de Amadeu Magalhães, dos Realejo, traz a vertente celta. É outra das vossas ligações?
Q. – Sim, tocar gaitas sintéticas não é propriamente a nossa ideia...
P. – E a presença da convidada galega, Uxia?
C.L. – É uma bonita voz. O tema em que canta, “O anel do meu amigo”, pertence ao cancioneiro galaico-português, a letra é em galego.
Q. – Sou amigo da Uxia. Assim como também já trabalhei com os Vai de Roda, em tempos. A verdade é que andamos sempre entre Portugal e a Galiza. O Porto, o Norte, a Galiza, está tudo misturado.
P. – O que não impediu de também convidarem dois homens do Sul, Vitorino e Janita Salomé...
C.L. – Porque algumas músicas têm muito a ver com o Sul, com a parte árabe de Portugal. Não fazemos “apartheid” entre o Norte e o Sul... Pegamos e ligamos influências de vários sítios, dos celtas aos árabes.
P. – São um grupo de fusão?
Q. – Não propriamente. Conseguimos sempre sentir as raízes da música, popular ou outra qualquer.
C.L. – O conceito do grupo passa por esse agarrar em diversas influências. Por exemplo, no outro disco, havia alguma mistura com o fado ou com o flamenco. Agora inflectimos noutras direcções.
P. – Têm sido frequentemente comparados com os Madredeus, embora este disco marque um afastamento em relação a eles. Essa comparação prejudica-vos?
C.L. – As pessoas fazem essa relação talvez pela afinidade de instrumentos, mas quando ouvem o disco ficam espantadas com a diferença. E temos percussão, um trunfo nosso, por assim dizer.
P. – Os Frei Fado d’el Rei são um grupo discreto de que só se ouve falar quando sai um novo disco. A que se deve tanta discrição?
Q. – Somos um grupo complicado, em termos do tempo de que cada elemento dispõe. Conseguimos uma disciplina engraçada, ensaiamos religiosamente duas vezes por semana. Mas não podemos vir todos a Lisboa, não podemos tocar todos os dias da semana. É complicado.
C.L. – Eu acho que é por outras razões. Não fazemos uma música consumista. Se calhar não tem passado na rádio tanto como nós gostaríamos que passasse. Mas as pessoas que nos ouvem nos concertos ficam a gostar bastante. E voltam sempre.
P. – Finalmente, o que vos chocou mais quando caracterizámos a vossa música como “bonitinha”, pretendendo falar de uma beleza apenas superficial?
C.L. – O sarcasmo...
Q. – O álbum tem algumas coisas muito profundas. Uma das preocupações que tenho com este grupo é manter uma sonoridade rude. Se as guitarras estão desafinadas, muitas vezes vão desafinadas para a gravação. Sinceramente, estou cansado dos discos “perfeitos”.

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