19/10/2009

Atirar a melodia ao ar e apanhá-la [Maria João e Mário Laginha]

Sons

1 de Maio 1998

Maria João e Mário Laginha gravam a cores

Atirar a melodia ao ar e apanhá-la

Maria João escreveu todas as letras, todas as palavras. Mário Laginha compôs os sons. “Cor” é uma viagem entre a “confusão indescritível” de Nova Deli e a “felicidade” do canto africano.

“Cor” tem todas as cores da voz de Maria João e do piano de Mário Laginha que unem a Índia a Moçambique. Contou ainda com a bateria e as percussões do indiano Trilok Gurtu e com as guitarras de Wolfgang Muthspiel. Música do mundo, numa encomenda feita pela Comissão dos Descobrimentos para a exposição “As Culturas do Índico”, no âmbito da Expo-98. Na calha está uma remistura de dança de um dos temas.
PÚBLICO – Escolheram a Índia e Moçambique como as duas margens para o álbum. Estiveram mesmo lá? Estudaram as culturas?
MÁRIO LAGINHA – Fomos realmente aos sítios, mas houve a preocupação de não estudar cada estilo, cada raga, por exemplo, o que, provavelmente, resultaria em música indiana pior do que aquela que é feita por músicos indianos. O mesmo em relação a África. Fomos lá, inspirámo-nos, ouvimos música, comprámos discos, cheirámos, passeámos, captámos o pulsar de um país.
P. – Para a Maria João foi mais natural integrar a voz na vertente africana?
MARIA JOÃO – É-me mais familiar. Não tenho estado em África nos últimos anos, nem tenho uma memória presente da música africana, embora tenha ido a Moçambique com a minha mãe, que é natural de lá. Digamos que a África está actualmente mais próxima da minha própria linguagem. Depois do scat e das músicas de vanguarda, a África desaguou na minha personalidade. É uma forma feliz de utilizar a voz e isto tem a ver com a felicidade, com estar bem. Exprimir coisas sem utilizar palavras. Sons próximos dos sons africanos. É o que apetece logo.
P. – E a música indiana? Custou mais?
M. J. – Fiquei em pânico. Eles têm uma maneira de colocar a voz muito matemática que não é a maneira africana de improvisar. Mas esta forma rápida de cantar, característica da Índia, tem estado sempre presente na minha música... As pessoas podem perguntar: “Como é que ela faz, onde é que ela foi buscar?” Não fui buscar a lado nenhum. Ou fui buscar aos milhares de sons que andam no ar, que saem dos CD, das cassetes, das vozes das pessoas, milhões de sons que passam pela nossa cabeça e pelos nossos ouvidos. Uns que ficam, outros não. Depois tudo se traduz naturalmente cá dentro e acaba por ser a minha própria forma de ver as coisas.
P. – Depois da “cantora de jazz” e da “cantora de música contemporânea”, temos a Maria João “cantora de world music”?
M. J. – Esse termo agrada-me. Música do mundo. E a música do mundo engloba também o jazz, onde continuo a ter um pé. E o coração. Foi o género que gerou o meu amor pelo improviso, o meu amor ao som. Cantora de world music? Fixe!
P. – O tema de abertura, “Horn, please”, está cheio de ruídos de trânsito. Foi assim o início da viagem?
M. L. – Foi o que sentimos na nossa chegada à Índia. Mas é um caos mais pacífico que o caos português. O trânsito em Portugal é infinitamente mais agressivo, sendo menos caótico. Gravámos as buzinas em Nova Deli.
M. J. – Não se vê choques, o que é uma coisa fantástica! Nunca vi um acidente na Índia, em Nova Deli, no meio daquela confusão indescritível do trânsito. E, sobretudo, nunca vi ninguém a discutir. Sente-se uma paz, algures, um certo “viva e deixe viver”.
M. L. – Aliás, o título do tema refere-se ao que escrevem na traseira dos carros, “Horn, please” (”Buzinem, por favor”), o que é um contra-senso para um europeu que, quando muito, escreveria algo como: “Por favor, não buzine!”
P. – O tema seguinte chama-se “Há gente aqui”...
M. J. – É uma continuação. Uma pessoa chega à Índia e vê o quê? A primeira coisa, além do calor que nos assalta logo, é, além do tal trânsito, uma enormidade de gente que há na rua. É inacreditável. Há gente em todo o lado!
P. – A África surge em “Rafael ou a cor de Moçambique”, onde a voz percorre os registos agudos, muito africanos. É aí que se sente mais à vontade?
M. J. – É. Talvez o agudo e o grave, nos extremos, seja onde me sinto mais à vontade. O registo médio é onde eu tenho mais complicação a cantar. Mas também se faz (risos)! Mas este nem é dos temas mais agudos. Há um momento, mais à frente, agudíssimo, que foi mal misturado. A minha voz é de soprano, suponho eu. Um soprano com graves. Estas coisas africanas saem porque a voz dispara sem problemas, sem entraves, sem pensar.
P. – Depois há os temas mais “controlados”, mais próximos da balada, como “Nazuk”, em que a felicidade de que falava há pouco é substituída por uma certa melancolia...
M. J. – “Nazuk”, que significa “frágil”, foi o único tema composto em Nova Deli. É acerca de um elefante. Um elefante que anda pelas ruas carregado de pinturas e de coisas no meio daquela confusão de gente. Um pobre elefante com ar perfeitamente submisso. Fez-me impressão. Andei no elefante no meio da rua, descalça, subi para cima dele. Mas aquilo tocou-me. É um elefante fora do sítio.
P. – “Saris e capulanas” regressa a um lugar pouco determinado.
M. L. – É um tema com uma história engraçada. Eu tinha um balanço para o que se deveria chamar “O meu sari amarelo” (como se percebe, um título inventado pela João, aliás como todos os outros), mas não estava a sair nada indiano. O Trilok estava a tocar tablas e só me dizia: “I don’t know what to do here...”
M. J. – Até que às tantas desci a voz, ouvi o ritmo, e pus-me a dançar samba. E logo o Trilok: “Ah, brazilian! Now I know what to do!” No fim do tema há uma percussão vocal minha e dele que me deu muito gozo fazer.
P. – O solo de guitarra no meio de “Preto e branco” foi composto ou improvisado?
M. L. – É um improviso. Continuamos a ser, para todos os efeitos, músicos ligados ao jazz. E é isto, aliás, que nos afasta um bocado da world music, que é muito mais fechada, não tão livre como a música que nós fazemos.
M. J. – E onde eu mudei a melodia, das coisas que maior gozo me dão. Não dar cabo da melodia mas moldá-la, dar-lhe voltas, atirá-la ao ar e apanhá-la outra vez.
P. – Quem é o Charles de “Charles on a Sunday with Sunday clothes”? É o tema que se aproxima mais da típica balada de jazz.
M. L. – Aqui a ideia tem a ver com a Inglaterra que está completamente presente no tema. Chegámos a perguntar à Comissão dos Descobrimentos se não havia problema em focarmos um aspecto que fugia um pouco à temática principal.
M. J. – O meu filho, no Natal, fez um desenho para dar ao pai que dizia: “Carlos, no Natal, com roupa de Natal.” Achei o título delicioso. Então comecei a imaginar um inglês, em 1920 – quando os ingleses ainda estavam na Índia –, com as suas roupas escuras, que leva com aquele bafo de cor, bafo de gente. Mas é alguém que fica absolutamente apaixonado, viciado na Índia.
P. – É verdade que já houve uma proposta para fazer uma remistura de música de dança para “Nhlonge yamina”, o tema seguinte?
M. J. – Sim, uma dance remix, proposta pela Polygram.
M. L. – Temos que ouvir primeiro antes de dar uma opinião. É que a versão do álbum já é dançável, não tem é aquela vertente de discoteca. Mas atrai-me a ideia do tema ser dançado numa discoteca.
P. – Nunca se interessaram pela electrónica?
M. L. – Não tenho nenhum preconceito contra. Só que neste momento há muita gente a tocar teclados, toda a gente toca. Acabo por achar que sou mais especial, que tenho uma “voz” mais identificável, enquanto pianista acústico.
M. J. – As cantoras de vanguarda que tenho ouvido, já desde a Flora Purim, utilizam a electrónica como extensão da voz para conseguir efeitos. Isso irrita-me! O que gosto de fazer é usar as minhas reais capacidades e levá-las ao limite. Mas se calhar, daqui a cinco anos, vai-me apetecer imenso fazer algo nesse campo... As vozes das pessoas têm n cores. A maior parte dos e das cantoras tendem a cantar numa só direcção, numa cor e voz, e a instalar-se aí. Eu posso cantar em todas as cores. Todas as que me passam pela cabeça. Do mais claro ao mais escuro.
P. – A viagem fecha com “Forbidden love affair”, de novo com acompanhamento de buzinas...
M. L. – É um dos temas mais indianos e um dos que concretizam uma ideia central deste trabalho: não entrar por jogos de palavras pseudo-intelectuais, mas sim contar histórias bem e de uma forma musical.
M. J. – Foi um tema que aprendi no estúdio e o último a ser feito. Havia um sítio para improvisar, só que não me apetecia nada improvisar aqui, improvisar o quê? Então decidi improvisar com uma letra. Veio-me à cabeça uma série que passou na televisão há muito tempo, “A Jóia da Coroa”. Lembro-me que havia a história de um indiano e de uma inglesa, passada em 1908, que se chamava, precisamente, “A forbidden love affair” (“Um amor proibido”). Havia a dificuldade de eles atravessarem uma ponte para se encontrarem.


Lobos Sinfónicos

Além de “Cor”, Maria João e Mário Laginha têm outro disco já pronto. Chama-se “Lobos, Raposas e Coiotes” e foi gravado com a Orquestra Sinfónica de Hannover, dirigida por Arild Remmereitt. A apresentação ao vivo está marcada para 2 de Junho, no Dia de Honra da Siemens, na Praça Sony no recinto da Expo. A 4 de Junho os “Lobos, Raposas e Coiotes” irão até ao Europarque, em Vila da Feira, Porto. O quarteto de “Cor”, com o percussionista indiano Trilok Gurtu e o guitarrista alemão Wolfgang Muthspiel, actua, por sua vez, a 10 de Junho, no palco das docas, também na Expo.

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