16/12/2015

Pedras no espaço [Space rock] + The dark side of Saturnia



Y 1|FEVEREIRO|2002
space rock|música

O rock descolou nos anos 60 e ainda não aterrou.
Guitarras e sintetizadores planam entre galáxias e neurónios.
Em Portugal, os astrorockers habitam em Saturnia.

pedras no espaço

Quando o cérebro incha, a música pede uma casa maior. Foi isso que aconteceu nos anos 60 e 70, quando o psicadelismo, alimentado a quantidades mais do que razoáveis de LSD, obrigou a tirar novas medidas ao espaço e ao tempo. Kubrick realizou “2001 – Odisseia no Espaço”, a mesma “space oddity” que fez com que David Bowie se perdesse no vácuo… Além de Bowie, muitos músicos embarcaram no filme. “Space is the place” apregoava o jazzman alienígena Sun Ra, líder de uma Astro Intergalactic Infinity Arkestra e navegador anarca, a bordo do sintetizador Moog, dos espaços mais obscuros da música improvisada. Ainda no jazz, John Coltrane alimentou a sua alma de estrelas e cometas. Ele próprio o sol de um sistema solitário. O rock nem sequer precisou de bilhete – teve sempre a cabeça fora do lugar.
            O ácido lisérgico faz com que tudo se passe mais devagar e com cor. As faixas dos LPs esticaram de duração. As emanações eletrónicas dos sintetizadores Moog, A.R.P., VCS3 ou SEM, naves espaciais para a mente, a par do arsenal de distorções proporcionados pela guitarra elétrica, como foram revelados ao mundo por Jimi Hendrix, contribuíram para fazer vibrar os neurónios dos músicos das décadas do psicadelismo e do rock progressivo, em frequências desfasadas da pop e do rock mais convencional.
            O “space rock”, firmamento sónico suficientemente vasto para albergar fantasiosas viagens, explodiu como uma supernova. Em Londres, em clubes como o U.F.O., onde os Pink Floyd e os Soft Machine alucinavam graças à droga, à loucura de rapazes digamos que fora do normal, como Syd Barrett e Daevid Allen, e a shows de luzes que iluminavam as paredes e as cabeças de arco-íris. Por essa altura já a guitarra em chamas de Hendrix voava em direção aos locais mais escuros do firmamento, até se volatilizar num buraco negro.
            Na costa Oeste dos EUA, onde a trip avançou com maior rapidez, tornada movimento sociocultural nos “love ins” ou nas desvairadas sessões de “acid rock” levadas a cabo em São Francisco com a presença de bandas como os Grateful Dead e Jefferson Airplane, e a tutela do papa do LSD, Timothy Leary. O espaço tornara-se “o lugar”. Um lugar que, na Alemanha, se estenderia até mais longe. Foi um ditador iluminado, Rolf-Ulrich Kaiser, patrão da editora Ohr (“ouvido”), o impulsionador da viagem.
            Rolf-Ulrich Kaiser, a quem Julian Cope (na foto) – ex-Teardrop Explodes, “acid head”, um dos genuínos psicadélicos do milénio, autor de uma obra incendiária de rock e visionarismo – chama simplesmente “Kaiser”, no seu livro sobre krautrock, “Krautrocksampler”, criou os conceitos da “kosmische musik” (“música cósmica”) e “kozmisch couriers” (“carteiros cósmicos”). A Ohr foi uma janela aberta por onde passaram, quais Peter Pans empanturrados de ácido, espaçonautas como Klaus Schulze, Ash Ra Tempel, Mythos, Agitation Free, Annexus Quam e Wallenstein. Destes, os Ash Ra Tempel e os Wallenstein foram os que conseguiram manter a cabeça ao mesmo tempo no rock e no espaço.

            carteiros cósmicos. Os Ash Ra Tempel eram o templo. Manuel Göttsching e Klaus Schulze, os sacerdotes. Como o LSD fornecido pelo “kaiser”, partiram para uma “trip” que Cope, no seu livro, considera “assustadora”. Os Ash Ra Tempel colaram os fundamentos do rock e os blues à eletrónica mais “out”, em intermináveis improvisações que, na versão completa, o patrão da Ohr editou em quatro álbuns assinados pelo coletivo The Cosmic Jokers. Enquanto Ash Ra Tempel, o grupo lançou cinco álbuns em que a “desbunda cósmica” adquiriu contornos de loucura (o baixista, Hartmut Enke, viria a ficar preso no “lado de lá”…): “Ash Ra Tempel”, “Schwingungen”, “Seven-up” (com Timothy Leary, “the acid priest”), “Join inn” e “Starring Rosi”. Não se explica a dimensão desta trip por palavras.
            Ainda mais alto, Kaiser e os Ash Ra Tempel subiram aos Alpes para gravar com o poeta suíço Sergius Golowin “Lord Krishna von Goloka”. Outro álbum mítico, “Tarot”, conta com a presença do mago cigano Walter Wegmuller que desenhou um baralho inteiro de cartas Tarot para acompanhar o disco.
            Sobreviveram ao cataclismo os que conseguiram sobrepor as suas qualidades de músicos à ousadia das explorações lisérgicas: Manuel Göttsching, o guitarrista mais planante do mundo, Klaus Schulze, um dos pioneiros da eletrónica cósmica, autor de uma vastíssima discografia onde longuíssimas paisagens de sintetizador se fundem com o romantismo de Wagner, e Harald Grosskopf, baterista dos Wallenstein, a segunda banda mais importante do “space rock”. Em França, Richard Pinhas, com os Heldon, e Cyrille Verdeaux, com os Clearlight, destacaram-se de uma plêiade de bandas que pesquisaram o firmamento (Pôle, ose, Lard Free…). Foi assim, até ao “crash”.
            O regresso à Terra foi duro. O punk chegou para apagar a luz. O espaço encolheu. As estrelas foram tapadas com ferrugem. A viagem terminou na lama, nas guitarras mal tocadas, no assassínio dos sintetizadores. O ácido coalhou e foi trocado por anfetaminas e heroína. Deixou de haver espaço para visões.
            Foi preciso esperar 20 anos para que a nave voltasse a descolar. Começou na tecno, subiu pelo “trance” e desapareceu de vista com o pós-rock. O espaço é novamente um bom lugar para se estar, habitado pelos Stereolab, Biosphere ou Gorky’s Zygotic Mynci. E ao ouvirmos Cope cantar em 1996 “Spacerock with me”, como um hino de libertação do rock ‘n rol, percebe-se que hoje, como na mítica saga de Kubrick, o limite é o infinito.


15 viagens The Byrds: Fifth Dimension (66) • Pink Floyd: A Saucerful of Secrets (68) • Amon Düül II: Yeti (70) • Guru Guru: U.F.O. (70) • Hawkwind: X In Search of Space (71) • Ash Ra Tempel: Schwingungen (71) • Wallenstein: Blitzkrieg (72) • Khan: Space Shanty (72) • Agitation Free: 2nd (73) • Kingdom Come: Journey (73) • Gong: You (74) • Cosmic Jokers: The Cosmic Jokers (74) • Clearlight: Clearlight Symphony (75) • Julian Cope: Interpreter (96) • Stereolab: Emperor Tomato Ketchup (96)


The dark side of saturnia

“Space rock” à portuguesa tem um nome: Saturnia. Projeto de Luís Simões e Francisco Rebelo do qual foi editado há pouco o segundo álbum, “The Glitter Odd”, é, de acordo com Luís Simões, uma “mistura de coisas super contemporâneas, eletrónica, psicadelia e ‘head music’”. Primeiro aspeto curioso: saiu numa editora neo-zelandesa, depois de uma crítica ao disco de estreia publicada na revista “Progression”. Há promessas de edição em selo português mas, por enquanto, quem o quiser adquirir sem ter o incómodo de se deslocar até ao continente australiano, poderá fazê-lo através da internet, com o endereço www.cronium.co.nz.
Mais personalizado e “dark” que o álbum anterior, “The Glitter Odd”, liberto da nave Hawkwind, não dispensa o zumbido psicadélico dos Pink Floyd, ainda sintonizados em LSD, do álbum “Ummagumma” e o odor agridoce e as emissões telepáticas dos Gong. Aliás, é um gongo que figura em lugar de destaque na capa do álbum e é um gongo que ressoa na última faixa, “The Glitter Odd”, uma das mais tripantes – “até à data, o tema mais experimental dos Saturnia, relacionado com a ‘musique concrète’ [N.R.: música concreta, como foi teorizada e posta em prática pelo compositor francês Pierre Schaeffer], mas também com os Tangerine Dream, da fase ‘Zeit’”.
Luís Simões paira numa dimensão alguns degraus acima da consciência normal. Fala em “atmospherics”, “pássaros” e “ambientes espaciais”, a propósito da faceta mais floydiana de “The Glitter Odd”. Um tipo de sonoridades que cada vez mais está a ser recuperado por bandas contemporâneas, como faz notar. É o lado mais “etéreo” dos Saturnia que, com o groove do “ambient tecno” e do “trance”, se traduz no apelo da dança – “da cabeça, claro!”.
Embora ache legítima a opinião dos que o acusam de saudosista, Simões não se preocupa. Tudo depende da forma de compreender os “lapsos do tempo” e como estes se coadunam com os aspetos “musicais” e “socio-musicais”. No fundo, “os anos 60 são uma coisa perfeitamente atual, historicamente aconteceram apenas há uns minutos…”.

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