Sons
28 de Maio 1999
JAZZ
Camaleões na sombra dos anos 30
THE BEAU HUNKS
The Beau Hunks Play the Original Laurel & Hardy Music (2xCD) (8)
Celebration on the Planet Mars – A Tribute to Raymond Scott (9)
Manhattan Minuet (9)
The Beau Hunks Saxophone Soctette (9)
Basta, distri. Matéria Prima/Ananana
A editora Basta é perita em descobrir objectos discográficos bizarros, sacudir-lhes o pó e devolvê-los como novos, envoltos em brilho e com cheiro a novidade. Primeiro foi Raymond Scott, compositor norte-americano “marginal”, nascido em 1908 em Brooklyn e actualmente residente na Califórnia, de quem a Basta reeditou uma trilogia, dos anos 60, de música electrónica para bebés, e uma colectânea de temas de jazz escritos entre 1937 e 1939 para o seu Raymond Scott Quintette, “Reckless Nights and Turkish Twilights”.
Sessenta anos mais tarde, um grupo holandês, The Beau Hunks Sextette (“sextette”, como o “quintette” – com pronúncia francesa – de Raymond Scott), fascinado pela música deste excêntrico, dedicou-se à interpretação do seu reportório, através da gravação, em 1994, de “Celebration on the Planet Mars – A Tribute to Raymond Scott” e, dois anos mais tarde, de “Manhattan Minuet”.
No caso dos Beau Hunks, o fascínio por Scott ganhou a forma de uma abençoada fobia. Não satisfeitos com recriarem os temas do norte-americano, o grupo holandês foi mais longe e, como um camaleão, confundiu-se com o estilo e o som da sua música, na época em que foi composta.
Quando do seu aparecimento na cena musical dos Estados Unidos, nos anos 30, o choque foi violento, embora Scott tenha trabalhado com nomes como Charlie Shavers, Ben Webster, Frank Sinatra, Bo Diddley, Mel Torme, e Gloria Lynne. O crítico Harold Taylor escrevia em 1939 na revista “Rhythm”, sobre o Quintette: “Não é que sejam maus, mas estão sempre a tocar as composições de Raymond Scott. Suponho que são obrigados a isso, uma vez que Scott é o líder, mas penso que o melhor seria despedi-lo, ou então pedirem-lhe para compor jazz verdadeiro, em vez de patetices.”
As “patetices” soam hoje como alucinações de uma originalidade extrema, à margem dos grandes nomes de então. O jazz de Raymond Scott não respeitava as normas das “big bands” e orquestras de dança mais respeitadas, como as de Benny Goodman, Duke Ellington ou Count Basie. Estava mais próximo de Bugs Bunny e, como os Beau Hunks intuíram, do planeta Marte. Aliás, o próprio Carl Stalling, autor da música das séries da Warner, “Looney Tunes” e “Merrie Melodies”, adaptou temas de Scott.
A sintonia entre os originais de Scott e as interpretações do Beau Hunks Septette é tal que, por vezes, se torna difícil distinguir entre ambos, até porque muitos dos temas da colectânea dos holandeses fazem parte do alinhamento da colectânea “Reckless Nights and Turkish Twilights”, de Raymond Scott. Mais do que uma simples fotocópia, a música dos Beau Hunks é um objecto sonoro que, embora idêntico, é diferente da música de Scott. Exactamente como o “Quixote” de Pierre Ménard, segundo Borges, o era em relação ao “Quixote” de Cervantes. Elvis Costello é outra das personalidades cativadas pela música não só de Raymond Scott, como dos próprios Beau Hunks. Nas notas de capa de “Manhattan Minuet”, conta como se processou o seu contacto com o grupo holandês: “Em 1995, na qualidade de director artístico do Meltdown Festival, em Londres, fiz questão de apresentar a música de Raymond Scott e foi-me dito que os únicos que tocavam a sua música eram um grupo de Amesterdão que, nessa altura, dava pelo nome de The Wooden Indians. Assisti a dois concertos deles a horas tardias. O público ficou ao mesmo tempo siderado, assustado e encantado.”
“Manhattan Minuet” prolonga a estética de identificação com Scott do álbum anterior, constituindo uma verdadeira obra-de-arte de reconstituição histórica e estética de um compositor genuinamente original. Mas é preciso recuar até 1991 para conhecer os motivos que conduziram à génese dos Beau Hunks. O grupo formou-se nesse ano por iniciativa do baixista e produtor Gert-Jan Blom. Na sua primeira apresentação em público, em Janeiro do ano seguinte, os Beau Hunks ressuscitaram a música de Leroy Shield, compositor de dezenas de temas para comédias realizadas por Hal Roach nos anos 30, em particular a série “Laurel & Hardy” (“Bucha e Estica”).
Precisamente, “The Beau Hunks Play the Original Laurel & Hardy Music” constitui a estreia discográfica da banda. No início editado em dois volumes separados, com o intervalo de um ano, a presente edição apresenta um pacote duplo com a totalidade das 76 composições que, pela primeira vez, reproduzem com absoluta fidelidade as partituras dos temas originais de Leroy Shield e das orquestrações de Marvin Hatley. Escutar os efeitos sonoros e a veia cómica ou dramática (a edição inclui um “Shield suspense medley”), deste swing tresloucado significa entrar num mundo a preto e branco que, de súbito, se abre em fulgurações de cor, num constante cruzamento de épocas diferentes. Bizarra coincidência em que, uma vez mais, o pecado original se confunde com o pecado da actualidade.
Robert Crumb, autor famoso de banda desenhada (“Fritz, the cat”, por exemplo) é outro dos que se ajoelham aos pés dos Beau Hunks: “Esta é a música por que tenho esperado toda a minha vida!”
Por isso, Robert Crumb assinou o “cartoon” que serve de capa a “The Beau Hunks Saxophone Soctette” (agora uma formação alargada de 18 elementos), o mais recente trabalho do grupo holandês. Voltaram a pegar em reportório de segunda linha e a confundirem-se, de forma que para alguns poderá parecer doentia, desta feita com sete arranjos originais escritos entre 1938 e 1939, por Nathan Van Cleave para a Paul Whiteman’s Sax Soc-Tette, formação de nove saxofonistas liderados por Whiteman, o inventor de uma espécie de “jazz sinfónico” que procurava rivalizar com a música clássica erudita.
Utilizando a sua estratégia habitual de reproduzir com máxima fidelidade os mínimos detalhes das fontes originais, os Beau Hunks recorreram neste disco a técnicas e material de gravação antigos, explicando que estas interpretações, ao vivo, do reportório de Paul Whiteman, mas também de, entre outros, Irving Berlin, Leon “Bix” Beiderbecke, Harry Creamer, Rube Bloom, Ralph Erwin e … Raymond Scott (com o já obrigatório “The toy trumpet”), foram “gravadas segundo uma técnica pioneira de regresso às origens”.
28 de Maio 1999
JAZZ
Camaleões na sombra dos anos 30
THE BEAU HUNKS
The Beau Hunks Play the Original Laurel & Hardy Music (2xCD) (8)
Celebration on the Planet Mars – A Tribute to Raymond Scott (9)
Manhattan Minuet (9)
The Beau Hunks Saxophone Soctette (9)
Basta, distri. Matéria Prima/Ananana
A editora Basta é perita em descobrir objectos discográficos bizarros, sacudir-lhes o pó e devolvê-los como novos, envoltos em brilho e com cheiro a novidade. Primeiro foi Raymond Scott, compositor norte-americano “marginal”, nascido em 1908 em Brooklyn e actualmente residente na Califórnia, de quem a Basta reeditou uma trilogia, dos anos 60, de música electrónica para bebés, e uma colectânea de temas de jazz escritos entre 1937 e 1939 para o seu Raymond Scott Quintette, “Reckless Nights and Turkish Twilights”.
Sessenta anos mais tarde, um grupo holandês, The Beau Hunks Sextette (“sextette”, como o “quintette” – com pronúncia francesa – de Raymond Scott), fascinado pela música deste excêntrico, dedicou-se à interpretação do seu reportório, através da gravação, em 1994, de “Celebration on the Planet Mars – A Tribute to Raymond Scott” e, dois anos mais tarde, de “Manhattan Minuet”.
No caso dos Beau Hunks, o fascínio por Scott ganhou a forma de uma abençoada fobia. Não satisfeitos com recriarem os temas do norte-americano, o grupo holandês foi mais longe e, como um camaleão, confundiu-se com o estilo e o som da sua música, na época em que foi composta.
Quando do seu aparecimento na cena musical dos Estados Unidos, nos anos 30, o choque foi violento, embora Scott tenha trabalhado com nomes como Charlie Shavers, Ben Webster, Frank Sinatra, Bo Diddley, Mel Torme, e Gloria Lynne. O crítico Harold Taylor escrevia em 1939 na revista “Rhythm”, sobre o Quintette: “Não é que sejam maus, mas estão sempre a tocar as composições de Raymond Scott. Suponho que são obrigados a isso, uma vez que Scott é o líder, mas penso que o melhor seria despedi-lo, ou então pedirem-lhe para compor jazz verdadeiro, em vez de patetices.”
As “patetices” soam hoje como alucinações de uma originalidade extrema, à margem dos grandes nomes de então. O jazz de Raymond Scott não respeitava as normas das “big bands” e orquestras de dança mais respeitadas, como as de Benny Goodman, Duke Ellington ou Count Basie. Estava mais próximo de Bugs Bunny e, como os Beau Hunks intuíram, do planeta Marte. Aliás, o próprio Carl Stalling, autor da música das séries da Warner, “Looney Tunes” e “Merrie Melodies”, adaptou temas de Scott.
A sintonia entre os originais de Scott e as interpretações do Beau Hunks Septette é tal que, por vezes, se torna difícil distinguir entre ambos, até porque muitos dos temas da colectânea dos holandeses fazem parte do alinhamento da colectânea “Reckless Nights and Turkish Twilights”, de Raymond Scott. Mais do que uma simples fotocópia, a música dos Beau Hunks é um objecto sonoro que, embora idêntico, é diferente da música de Scott. Exactamente como o “Quixote” de Pierre Ménard, segundo Borges, o era em relação ao “Quixote” de Cervantes. Elvis Costello é outra das personalidades cativadas pela música não só de Raymond Scott, como dos próprios Beau Hunks. Nas notas de capa de “Manhattan Minuet”, conta como se processou o seu contacto com o grupo holandês: “Em 1995, na qualidade de director artístico do Meltdown Festival, em Londres, fiz questão de apresentar a música de Raymond Scott e foi-me dito que os únicos que tocavam a sua música eram um grupo de Amesterdão que, nessa altura, dava pelo nome de The Wooden Indians. Assisti a dois concertos deles a horas tardias. O público ficou ao mesmo tempo siderado, assustado e encantado.”
“Manhattan Minuet” prolonga a estética de identificação com Scott do álbum anterior, constituindo uma verdadeira obra-de-arte de reconstituição histórica e estética de um compositor genuinamente original. Mas é preciso recuar até 1991 para conhecer os motivos que conduziram à génese dos Beau Hunks. O grupo formou-se nesse ano por iniciativa do baixista e produtor Gert-Jan Blom. Na sua primeira apresentação em público, em Janeiro do ano seguinte, os Beau Hunks ressuscitaram a música de Leroy Shield, compositor de dezenas de temas para comédias realizadas por Hal Roach nos anos 30, em particular a série “Laurel & Hardy” (“Bucha e Estica”).
Precisamente, “The Beau Hunks Play the Original Laurel & Hardy Music” constitui a estreia discográfica da banda. No início editado em dois volumes separados, com o intervalo de um ano, a presente edição apresenta um pacote duplo com a totalidade das 76 composições que, pela primeira vez, reproduzem com absoluta fidelidade as partituras dos temas originais de Leroy Shield e das orquestrações de Marvin Hatley. Escutar os efeitos sonoros e a veia cómica ou dramática (a edição inclui um “Shield suspense medley”), deste swing tresloucado significa entrar num mundo a preto e branco que, de súbito, se abre em fulgurações de cor, num constante cruzamento de épocas diferentes. Bizarra coincidência em que, uma vez mais, o pecado original se confunde com o pecado da actualidade.
Robert Crumb, autor famoso de banda desenhada (“Fritz, the cat”, por exemplo) é outro dos que se ajoelham aos pés dos Beau Hunks: “Esta é a música por que tenho esperado toda a minha vida!”
Por isso, Robert Crumb assinou o “cartoon” que serve de capa a “The Beau Hunks Saxophone Soctette” (agora uma formação alargada de 18 elementos), o mais recente trabalho do grupo holandês. Voltaram a pegar em reportório de segunda linha e a confundirem-se, de forma que para alguns poderá parecer doentia, desta feita com sete arranjos originais escritos entre 1938 e 1939, por Nathan Van Cleave para a Paul Whiteman’s Sax Soc-Tette, formação de nove saxofonistas liderados por Whiteman, o inventor de uma espécie de “jazz sinfónico” que procurava rivalizar com a música clássica erudita.
Utilizando a sua estratégia habitual de reproduzir com máxima fidelidade os mínimos detalhes das fontes originais, os Beau Hunks recorreram neste disco a técnicas e material de gravação antigos, explicando que estas interpretações, ao vivo, do reportório de Paul Whiteman, mas também de, entre outros, Irving Berlin, Leon “Bix” Beiderbecke, Harry Creamer, Rube Bloom, Ralph Erwin e … Raymond Scott (com o já obrigatório “The toy trumpet”), foram “gravadas segundo uma técnica pioneira de regresso às origens”.
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