12/12/2010

XTC - Apple Venus, Volume One

Sons

30 de Abril 1999
DISCOS – POP ROCK

O que se esconde na pena de um pavão

Libertos finalmente da Virgin, editor para a qual gravavam há mais de 20 anos mas com a qual entraram em diferendo depois da edição de “Nonsuch”, em 1992, os XTC regressaram para se cobrir de glória. “Apple Venus, Volume One” é o melhor álbum da banda, agora reduzida ao duo formado por Andy Partridge e Colin Moulding (embora Dave Gregory ainda tivesse participado nas gravações), desde “Skylarking”, produzido por Todd Rundgren e considerado o seu trabalho mais sofisticado.
Para os ouvidos é um manjar dos deuses. Andy Partridge assina aqui o seu diploma de herdeiro legítimo dos mestres sagrados da pop, enquanto arte de encantamento supremo: Paul McCartney, Ray Davies e Brian Wilson. Equipado com uma orquestra e com toda a artilharia sónica do estúdio e, sobretudo, a atravessar uma fase de inspiração como já não se via desde os magistrais “English Settlement” e “Mummer”, Partridge montou o seu palácio de ilusões com o requinte e o engenho de um artista renascentista, fazendo com que cada canção soe como uma entidade completa, carregada de cores e de sabores.
O estúdio é usado como uma paleta, ou como um laboratório do alquimista, com o objectivo de descobrir e concretizar a quinta-essência da pop. Harmonias vocais intricadas e esculpidas até ao mais ínfimo detalhe, a par de orquestrações sumptuosas (que podem ir do pastoril ao épico, numa mesma canção) e de uma criatividade constante na procura de arranjos originais, tornam “Apple Venus, Volume One” numa catedral que se começa a admirar pelo lado de fora para, progressivamente, se deixar ver pelo interior, enquanto organização espacial e temporal de um entrançado de emoções e ambiguidades semânticas que a cada audição se vão organizando subjectivamente num “puzzle” de luxúria.
A quantidade de elementos e memórias musicais com os quais Andy Partridge vai montando os seus quadros atinge, nalguns casos, a esquizofrenia iluminada, como em “Greenman”, onde o sinfónico, o psicadelismo, a complexidade harmónica e o barroco das ornamentações se unem num corpo de medusa, um pouco à maneira do que fizeram, nos seus tempos áureos, os Gentle Giant. Mas, logo a seguir, a simplicidade de uma melodia que parece ter estado connosco desde sempre, como “Your dictionary”, irrompe com a força de uma evidência. Ou de um raio de luz. “Fruit nut” faz a demonstração de que os anos 60 não tiveram o exclusivo da criatividade em estado puro, aquela que dispensa todos os artifícios menos os da imaginação, para criar raízes e voar.
Não faz sentido perguntar o que há de novo na música dos XTC. Trata-se tão-só de uma nova forma de manipulação dos sentimentos, do reencontro do classicismo e da confirmação de uma forma única de dispor os ingredientes que fazem de uma canção pop algo de especial e indefinível. Não por acaso, em entrevista recente ao PÚBLICO, Colin Moulding referia-se, a propósito da construção de “Apple Venus, Volume One”, ao facto de as canções parecerem, em alguns casos, ter saído de uma grande produção teatral, ou de um musical dos tempos de ouro de Hollywood. Canções como “I can’t own her” nascem, de facto, com a vocação do palco, com enredos intricados, mas onde a acção se desenrola, como num passe de mágica, através dos sons.
Como quase todos os álbuns dos XTC, “Apple Venus” não se revela numa primeira audição. Exige tempo e atenção. A recompensa vale, porém, o esforço. Os XTC convidam-nos para a descoberta das formas que se escondem, como segredos, no âmago de outras formas. Como a vulva, a maçã ou o olho que são possíveis de vislumbrar incrustados no centro de uma pena de pavão.

XTC
Apple Venus, Volume One (9)
Cooking Vinyl, distri. Megamúsica

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