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31|AGOSTO|2001
música|nonsense
brinquemos
ou quê?
Provoca a gargalhada boçal, mas o
pior de tudo é que não há maneira de evitá-lo. Chame-se-lhe rock-gozo, um
desvairado exercício de nonsense ou, simplesmente, música para divertir. Os
Cebola Mol são os últimos de uma linhagem encetada em Portugal pelos Afonsinhos
do Condado e prosseguida pelos Irmãos Catita. Quando julgamos ver neles meros
arautos do mau gosto e da piada fácil, eis que uma fulguração subtil deita por
terra o julgamento.
Artigo conjunto de FM e Miguel Francisco Cadete que escreve
sobre os Afonsinhos do Condado e Irmãos Catita
cebola mol
o fenómeno musical deste verão
As
canções explodem na rádio. O público enlouquece nos concertos. As vendas do
álbum “Samba-Roulotte” disparam. O fenómeno musical deste Verão dá pelo nome de
Cebola Mol. Eles são dois irmãos espirituais, Phil e Eddie Stardust. Herdeiros
do rock de “Chico fininho”, praticantes de free-jazz, amantes do psicadelismo e
de uma boa patuscada, influenciados pelos Sigur Rós e pelos Thievery
Corporation, com quem mantêm afinidades musicais impressionantes (pelo menos é
o que dizem e uma audição atenta do álbum permite comprovar), eles são, acima
de tudo, dois gozões de primeira cuja música não tem rigorosamente nada a ver
com o que atrás foi escrito. Exceto que o seu novo álbum, “Samba-Roulotte”,
existe de facto e que as suas vendas já estiveram mais longe de lhes garantir
uma moldurazita com um disco de prata na galeria de honra da EMI-VC.
“Samba-Roulotte” descende de uma linhagem
de rock-gozo encetada em Portugal pelos Afonsinhos do Condado e prosseguida
pelos Ena Pá 2000 e pelos Irmãos Catita, sob a batuta do grande mestre e
candidato à Presidência da República Manuel João Vieira (bem haja!). Quando o
nome Cebola Mol começou a ser pronunciado nos meios melómanos do país, através
da canção “O homem que mordeu o cão”, fizeram-se comparações com o então
emergente Zé Cabra. Nada mais injusto e afastado da verdade. A Phil e Eddie
Stardust custa desafinarem. Quando tal acontece, é mais uma “boutade” a juntar
às muitas outras que fazem de “Samba-Roulotte” um desvairado exercício de
“nonsense”.
Uma fulguração subtil. Gravado metade ao vivo, no Café Luso, em
Lisboa, metade em estúdio, “Samba-Roulotte”, para quem tiver ouvidos e cultura
humorística, é uma homenagem aos Monty Python e à canção nacional. O
“nonsense”, naquilo que o define como anarquia da palavra e do espírito. Quando
julgamos ver nos Cebola Mol meros javardos, arautos do mau gosto e da piada
fácil, eis que uma fulguração subtil deita por terra o julgamento. Mas se, ao
invés, os tomamos por autores shakespeareanos para quem o riso é um ornamento
da alma, rococó e sofisticado, logo a palavra “errada” e o “sketch” inusitado
apagam quaisquer considerações antecipadas.
Assim, o melhor mesmo é ouvir
“Samba-Roulotte” de fio a pavio. E rir. Com o cérebro ou com o barrete saloio
enfiado, pois o disco fornece alimento suficiente para ambos. Tem temas
desopilantes. Apartes desconcertantes. E até – imagine-se – canções que se
grudam como ostras ao ouvido. Há paródias a António Variações, David Bowie e
Luís Represas. Ao fado e ao “rock sentimentalão”, ao psicadelismo e à música
brasileira.
“Os meus irmões baterem-me” é qualquer
coisa de brutal e de alarmante. Provoca a gargalhada boçal, mas o pior de tudo
é que não há maneira de evitá-lo. Nas festas e “vernissages”, o tema faz furor.
A comunidade cigana, dando provas de sentido de humor, não se ofendeu. Aliás,
todas as comunidades, localidade e géneros de música portugueses, incluindo o
“raga” instrumental que fecha o CD, são contemplados pelos Cebola Mol em
“Samba-Roulotte”. Contemplação é, aliás, a palavra de ordem. Não há pai para
eles. O que significa que não há respeito.
“Joli (o cão da malta)” é um hino. “Sugar
honey baby, baby”, apesar do estruturalismo da letra, por vezes de difícil
leitura, chega na mesma às massas, sobretudo as menos cultas e as mais cultas,
aquelas que conhecem Elvis Presley e o mal que isso lhes fez. “Pessoal do meu
bairro” apela à libertação de Nelson Mandela e de Xanana Gusmão e, em geral, de
todos os pássaros engaiolados.
Mas os Cebola Mol também tocam – e bem –
Thelonious Monk. E o título-tema, gravado em estúdio, inclui efeitos
eletrónicos disparatados no que é uma análise inteligente da música brasileira,
cantarolável em último grau. Mas genial mesmo é “Eu chovo”, caracterizado por
ter duas letras diferentes cantadas em simultâneo, cada um num dos canais de
estereofonia. E mesmo aqui a lógica…
Os Cebola Mol têm um site na Net
(www.cebolamol.com) onde se pode ficar a saber tudo ou quase nada sobre eles.
Até se pode consultar as letras. “Assim poderem cantar nos bares com os amigos,
naqueles sistemas de cariocas, porque nós pormos aqui as letras para vocês
aprenderem!”, dizem os dois irmãos Stardust, apesar de não saberem escrever
“caraoque”.
O quarto disco. Mas deixemos que sejam eles a
explicarem-se e a explicarem a sua arte.
“Samba-Roulotte”, o que é? Phil e Eddie
são claros na resposta. “Isto é o quarto disco, não temos é o primeiro, não
conseguimos aguentar a pressão do primeiro disco, mas para trás há uma história
de dois irmãos que são gémeos, um tem 28 anos, o outro 26 (o mais velho).
Quisemos experimentar o estúdio, mas ao vivo é que é a essência disto. É assim:
cria-se um mecanismo, dentro da desordem e o caos que são os nossos espetáculos
há uma espinha dorsal, ou seja… É como jazz. Tem a ver com a lógica das nossas
cabeças, quando parece que mais ninguém está a ver lógica naquilo… Sem querer
entrar em grandes porcarias técnicas.
“Em ‘Eu chovo’, foi uma das poucas vezes
em que houve discórdia, cada um de nós queria uma letra e nenhum arredou pé. A
sorte foi termos só uma viola. Somos superfanáticos dos Monty Python, sobretudo
do Eric Idle, estivemos para fazer uma versão do ‘Always look on the bright
side of life’. Gostamos muito de música brasileira, quisemos fazer uma
homenagem que fosse ao mesmo tempo um disparate sem sentido. ‘Pessoal do meu
bairro’ começou por ser uma homenagem ao Luís Represas, é todo um espírito da
música de intervenção, o Bowie surge por causa do nosso pai Ziggy Stardust, o
Variações aparece por acaso. ‘Os meus irmões baterem-me’ só existe graças à
ingestão de muito leite… e bagaço… No fundo, não é nada que os Napalm Death não
tivessem já feito, nós optámos por um ‘unplugged’, mas os The Gift foram a
banda que mais nos influenciou. No último concerto, foi tal a desbunda que
saímos os dois em cuecas!...”
Nesta altura apareceu o fantasma de
Graham Chapman, dos Monty Python, disfarçado de polícia, a gritar: “Corta!”
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