PÚBLICO / POP ROCK
26 de Setembro de 1990
O APELO DO SANGUE
MÃO MORTA
Corações
Felpudos
LP,
Fungui
Sangue, muito sangue! – clamam, sedentos, os Mão Morta. A banda de Adolfo Luxúria Canibal não faz a coisa por menos: faixa sim, faixa não, escorre hemoglobina a rodos, tornando o coração mais felpudo numa massa ensopada de vermelho. A ideia que têm das atividades geralmente designadas de "amorosas" consiste basicamente em espetar facas na barriga do parceiro(a). Tudo é escuridão e terror. "Corações Felpudos" (título sugerindo coisas como Gremlins sequinhos ou bichos de peluche) esconde horrores inomináveis, abomináveis, perversões. "Gritos e lâminas afiadas / tingem de sangue os lençóis", crimes, reais ou sublimando uma sexualidade cruel, em que o prazer se alcança inevitavelmente pela dor. "Este punhal uma ilusão / que seguro firme contra o corpo / metal frio de carne sedento". Enquanto os Xutos se divertem e enriquecem à custa da Pepsi e os UHF militam no combate a velhos fantasmas - os Mão Morta encarnam a violência e o vazio urbanos do final do século.
Adolfo
Luxúria Canibal não canta – berra, vocifera, blasfema, esbofeteia os preconceitos
auditivos, destila ódio, como no tema do mesmo nome, um dos melhores do disco,
fazendo de cada palavra uma faca, cada entoação uma punhalada dirigida ao âmago
das pequenas e grandes coisas que fazem da vida um inferno. No limite do ódio,
a paranóia absoluta - "As trevas estão por aí escondidas / à espera que eu
apague a luz / para se lançarem sobre mim" ou a violência ritual
exemplificada no tribalismo onomatopaico de "É Uma Selvajaria" (outro
dos grandes temas do disco). "Facas em Sangue" sumariza na perfeição
as cores prevalecentes: negro e vermelho, o sangue e a noite, onde se gritam
blasfémias e se ama até ao aniquilamento. "Das trevas nasce a luz / mas a
luz sempre às trevas regressa" – eterna e cíclica viagem sem redenção
possível, que só a morte liberta.
Musicalmente,
"Corações Felpudos" investe no furor das guitarras, no ruído
controlado, na repetição angustiada, na brutalidade dos arranjos. Em alguns
temas notam-se algumas influências ou meras semelhanças, nada de grave, se
considerarmos a excelência das mesmas: Pere Ubu (o desfalecimento das guitarras
nos instrumentais "Olho da Máscara" e "Santana Menho"),
Einsturzende Neubauten (nalgumas vocalizações de A.L. Canibal e na organização
do ruído, como em "Ventos Animais") ou, curiosamente, Snakefinger (em
"Freamunde, Acapulco" e no instrumental final "Arlequim").
Com
"Corações Felpudos" os Mão Morta situam-se definitivamente do lado
mais negro e marginal do rock português. Onde outros procuram a claridade dos
tops, alcançada quase sempre à custa de cedências, Adolfo Luxúria Canibal,
Joaquim Pinto, Zé dos Eclipses, Carlos Fortes e Miguel Pedro escolhem
deliberadamente mergulhar no abismo. Acompanhá-los no mergulho pode ser penoso.
Como apertar a mão a um cadáver e senti-la latejar.
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