02/01/2015

Transe totó [12º Festival Cantigas do Maio]



CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 28 MAI 2001

Transe totó

Festival Cantigas do Maio
Fábrica Mundet, Seixal
25 e 26 de Maio, 22h
Lotação esgotada

Carlos Nuñez e Totó la Momposina foram os primeiros triunfadores do 12º Festival Cantigas do Maio, que este fim-de-semana teve início no Seixal. Na sexta-feira, o gaiteiro e flautista galego mostrou que a sua música não está afinal tão como o seu último álbum, “Mayo Longo”, fazia crer. No sábado, a cantora colombiana demonstrou que a idade não lhe pesa, transtornando positivamente o público com uma sessão história de “cumbia” que teve laivos de cerimónia tribal.
Membro de pleno direito do European Forum of Worldwide Music Festivals, o Cantigas do Maio estará a atravessar a sua primeira crise de crescimento. A tenda Chapitô onde decorre a maioria dos concertos já não chega para albergar a mole humana que, na sexta e no sábado, encheu, até transbordar, o recinto. Não só de entusiasmo, como de suor, fumo e encontrões, criando uma atmosfera pesada que, por vezes, impede de apreciar condignamente a ótima música que se tornou timbre do certame.
Tudo começou em calmaria, com a música de câmara para quatro concertinas seletas dos Danças Ocultas. Durante cerca de uma hora, Artur Fernandes e os seus três companheiros criaram climas em deriva por um romantismo de valsa musette, tremores piazollianos, conjugações mais complexas com o minimalismo e a “naïveté” desestruturalista de Pascal Comelade e, mais do que é costume, floreados folk de proveniência europeia, portuguesa mas também da França e dos Balcãs. A apontar apenas alguma prisão de movimentos – houve respirações dos foles que pareceram curtas…
Carlos Nuñez e a sua banda, pelo contrário, explodiram. Ou melhor, sobretudo ele, Carlos, um dos maiores solistas do momento, não só da gaita-de-foles galega, como de uma panóplia imensa de flautas de bisel, “tin whistles”, ocarinas, etc., parecia ser maior que a própria música. “Showman” assumido, fez acompanhar com gestos largos todo o seu virtuosismo, demorando-se pouco no lirismo das baladas, para disparar em loucas correrias de tecnicismo.
Muiñeiras galegas, jigs irlandeses ou, no derradeiro encore, um “Music for a found harmonium” tocado em “mach 3” (três vezes a velocidade do som…), tudo serve para Carlos Nuñez testas os limites da sua febre. Destaque ainda para a cantora Anabela – excelente a voz, um pouco despropositado o tom de fado que emprestou a uma balada da Galiza –, que interpretou o mesmo par de temas aos quais dá voz em “Mayo Longo” e para as duas encantadoras violinistas do grupo, Paloma Trigas e Begoña Riobo, com o seu ar de celtas chiques. Desgraçadamente, uma delas, a loura, foi utilizada para substituir Roger Hodgson, dos Supertramp, que canta um dos temas de “Mayo Longo” de forma horripilante. O único elogio que se pode fazer à menina é que conseguiu ser tão horripilante como o seu homólogo masculino.
Já no final, com o público e os músicos em euforia, juntou-se à companhia galega o grupo vocal feminino português Segue-me à Capela, para interpretar um tema de José Afonso.

Euforia “cumbia”
Sábado, a alegria instalou-se mesmo antes dos concertos, com a passagem ribombante do grupo de Zés Pereiras e gigantones, Ida e Volta. Um tom popular que prosseguiria com a atuação das três irmãs madasquenhas, Tiharea. Trajadas a rigor com vestes tradicionais, alternaram harmonias vocais “a capella”, marcadas por percussões no corpo e por guizos atados aos tornozelos, com outras apoiadas em tons percussivos mais fortes. Não tiveram a sofisticação de umas Zap Mama, mas a força e genuinidade das suas histórias mantiveram aceso o interesse da assistência.
A fechar este primeiro fim-de-semana das Cantigas, Totó la Momposina e a sua banda de colombianos vestidos de gaúchos deram uma verdadeira lição prática de história dos ritmos que construíram a tradição da “cumbia”, género híbrido onde confluem o batuque africano e as flautas índias.
Toda a primeira parte foi preenchida pelas raízes africanas, correspondente ao período rural em que “cumbia” vivia da percussão e do canto. Um festim de percussões que roçou o cerimonial de transe. Totó, septuagenária sem idade, dançou e cantou, possuída pelo frenesim da dança. A certa altura, juntou-se-lhe um dos músicos, num ritual com velas que transformou a tenda em local de cerimónia religiosa. Dois elementos da assistência, um de cada sexo, saltaram por seu lado para o palco, dançando à vez com Totó e o seu companheiro. Estava criado um momento único, de comunhão coletiva, como raramente acontece. Corpos ondulando em uníssono, uma batida que parecia infinita, o tempo a esfumar-se na dimensão de uma “egregora” (igreja) tribal.
Depois, a magia quebrou-se para se instalar a festa, mais prosaica, do mapal, do merengue, da puya e da salsa, com o combo já aumentado de um contrabaixo, guitarras e secção de metais. Dançou-se mais com os pés na terra, os ritmos sul-americanos que constam no manual dos hábitos auditivos da grande cidade. Mas uma última chispa de loucura estava ainda guardada na gaveta das surpresas, quando, já terminado o concerto “oficial”, alguns dos músicos decidiram saltar para o meio da assistência, aí continuando a tocar numa orgia “non stop” improvisada. Procissão carnavalesca, confusão de tuba, tambores, holofotes e gente em delírio, misturados numa massa onde as cores e os gestos se confundiam com as notas de música e os gritos da multidão.
Um final inolvidável a preparar o terreno para o próximo fim-de-semana das Cantigas, que começará na quinta-feira com o armeno Djivan Gasparyan, prosseguirá na sexta com os iranianos Ghazal Ensemble e os israelo-árabes Between Times, e se concluirá no sábado com a boliviana Luzmila Carpio e os macedónios DD Synthesis.

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