CULTURA
SEGUNDA-FEIRA,
28 MAI 2001
Transe
totó
Festival
Cantigas do Maio
Fábrica
Mundet, Seixal25 e 26 de Maio, 22h
Lotação esgotada
Carlos Nuñez e Totó la
Momposina foram os primeiros triunfadores do 12º Festival Cantigas do Maio, que
este fim-de-semana teve início no Seixal. Na sexta-feira, o gaiteiro e
flautista galego mostrou que a sua música não está afinal tão como o seu último
álbum, “Mayo Longo”, fazia crer. No sábado, a cantora colombiana demonstrou que
a idade não lhe pesa, transtornando positivamente o público com uma sessão
história de “cumbia” que teve laivos de cerimónia tribal.
Membro de pleno direito do European Forum of Worldwide Music
Festivals, o Cantigas do Maio estará a atravessar a sua primeira crise de
crescimento. A tenda Chapitô onde decorre a maioria dos concertos já não chega
para albergar a mole humana que, na sexta e no sábado, encheu, até transbordar,
o recinto. Não só de entusiasmo, como de suor, fumo e encontrões, criando uma
atmosfera pesada que, por vezes, impede de apreciar condignamente a ótima
música que se tornou timbre do certame.
Tudo começou em calmaria, com a música de câmara para quatro
concertinas seletas dos Danças Ocultas. Durante cerca de uma hora, Artur
Fernandes e os seus três companheiros criaram climas em deriva por um
romantismo de valsa musette, tremores piazollianos, conjugações mais complexas
com o minimalismo e a “naïveté” desestruturalista de Pascal Comelade e, mais do
que é costume, floreados folk de proveniência europeia, portuguesa mas também
da França e dos Balcãs. A apontar apenas alguma prisão de movimentos – houve
respirações dos foles que pareceram curtas…
Carlos Nuñez e a sua banda, pelo contrário, explodiram. Ou
melhor, sobretudo ele, Carlos, um dos maiores solistas do momento, não só da
gaita-de-foles galega, como de uma panóplia imensa de flautas de bisel, “tin
whistles”, ocarinas, etc., parecia ser maior que a própria música. “Showman”
assumido, fez acompanhar com gestos largos todo o seu virtuosismo, demorando-se
pouco no lirismo das baladas, para disparar em loucas correrias de tecnicismo.
Muiñeiras galegas, jigs irlandeses ou, no derradeiro encore,
um “Music for a found harmonium” tocado em “mach 3” (três vezes a velocidade do
som…), tudo serve para Carlos Nuñez testas os limites da sua febre. Destaque
ainda para a cantora Anabela – excelente a voz, um pouco despropositado o tom
de fado que emprestou a uma balada da Galiza –, que interpretou o mesmo par de
temas aos quais dá voz em “Mayo Longo” e para as duas encantadoras violinistas
do grupo, Paloma Trigas e Begoña Riobo, com o seu ar de celtas chiques.
Desgraçadamente, uma delas, a loura, foi utilizada para substituir Roger
Hodgson, dos Supertramp, que canta um dos temas de “Mayo Longo” de forma
horripilante. O único elogio que se pode fazer à menina é que conseguiu ser tão
horripilante como o seu homólogo masculino.
Já no final, com o público e os músicos em euforia,
juntou-se à companhia galega o grupo vocal feminino português Segue-me à
Capela, para interpretar um tema de José Afonso.
Euforia “cumbia”
Sábado, a alegria instalou-se mesmo antes dos concertos, com
a passagem ribombante do grupo de Zés Pereiras e gigantones, Ida e Volta. Um
tom popular que prosseguiria com a atuação das três irmãs madasquenhas,
Tiharea. Trajadas a rigor com vestes tradicionais, alternaram harmonias vocais
“a capella”, marcadas por percussões no corpo e por guizos atados aos
tornozelos, com outras apoiadas em tons percussivos mais fortes. Não tiveram a
sofisticação de umas Zap Mama, mas a força e genuinidade das suas histórias
mantiveram aceso o interesse da assistência.
A fechar este primeiro fim-de-semana das Cantigas, Totó la
Momposina e a sua banda de colombianos vestidos de gaúchos deram uma verdadeira
lição prática de história dos ritmos que construíram a tradição da “cumbia”,
género híbrido onde confluem o batuque africano e as flautas índias.
Toda a primeira parte foi preenchida pelas raízes africanas,
correspondente ao período rural em que “cumbia” vivia da percussão e do canto.
Um festim de percussões que roçou o cerimonial de transe. Totó, septuagenária
sem idade, dançou e cantou, possuída pelo frenesim da dança. A certa altura,
juntou-se-lhe um dos músicos, num ritual com velas que transformou a tenda em
local de cerimónia religiosa. Dois elementos da assistência, um de cada sexo,
saltaram por seu lado para o palco, dançando à vez com Totó e o seu
companheiro. Estava criado um momento único, de comunhão coletiva, como
raramente acontece. Corpos ondulando em uníssono, uma batida que parecia
infinita, o tempo a esfumar-se na dimensão de uma “egregora” (igreja) tribal.
Depois, a magia quebrou-se para se instalar a festa, mais
prosaica, do mapal, do merengue, da puya e da salsa, com o combo já aumentado
de um contrabaixo, guitarras e secção de metais. Dançou-se mais com os pés na
terra, os ritmos sul-americanos que constam no manual dos hábitos auditivos da
grande cidade. Mas uma última chispa de loucura estava ainda guardada na gaveta
das surpresas, quando, já terminado o concerto “oficial”, alguns dos músicos
decidiram saltar para o meio da assistência, aí continuando a tocar numa orgia
“non stop” improvisada. Procissão carnavalesca, confusão de tuba, tambores,
holofotes e gente em delírio, misturados numa massa onde as cores e os gestos
se confundiam com as notas de música e os gritos da multidão.
Um final inolvidável a preparar o terreno para o próximo
fim-de-semana das Cantigas, que começará na quinta-feira com o armeno Djivan
Gasparyan, prosseguirá na sexta com os iranianos Ghazal Ensemble e os
israelo-árabes Between Times, e se concluirá no sábado com a boliviana Luzmila
Carpio e os macedónios DD Synthesis.
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