CULTURA
TERÇA-FEIRA,
5 JUN 2001
“Folk
models” fecharam Cantigas do Maio
Terminou em beleza a 12.ª
edição do festival Cantigas do Maio que nos dois últimos fins-de-semana
decorreu no Seixal, com organização da Associação José Afonso e câmara
municipal local. Mas em beleza mesmo, com a atuação, musical e visualmente
estimulante, do grupo DD Synthesis, da Macedónia, que no sábado fechou o
certame.
Música das esferas e a presença física estonteante das três
vocalistas, verdadeiras “top models” da “world music”, para quem os olhares,
sobretudo os masculinos, invariavelmente se dirigiam, marcaram a atuação dos DD
Synthesis. Foram elas o foco principal de uma música que levou ao Seixal, não a
tradição pura dos Balcãs, mas a “folk” progressiva do álbum “Swinging
Macedonia”, onde se destacam a sofisticação dos arranjos e o desenvolvimento
grandioso dos temas, com a voz (sim, também a voz…) das três meninas, num
registo característico de “vozes búlgaras”, a conferir-lhe o tom étnico
adequado. Vane Jovcev, no piano e teclados eletrónicos, desempenha nos DD
Synthesis a função de arquiteto sonoro. É sobre os seus alicerces orquestrais
que se ergue a catedral. Goce Dimovski é o solista de serviço, na
gaita-de-foles, kaval (flauta) e zurla (oboé rústico). “Mari mome”, em solo
contínuo de “gaida”, constituiu um dos momentos exaltantes da noite. Mas são as
três cantoras – Aneta Shulankovska, Biljana Ristovska e Mirjana Josheska – que
atraem invariavelmente as atenções. Polifonias vocais de anjos, a pose – misto
de graça e altivez –, e a forma como estes cânticos, que se diriam arrancados
ao cume das mais altas montanhas da Macedónia, se harmonizaram com a energia
rock do combo instrumental, criaram uma atmosfera que ora impelia à elevação
ora explodia numa “feérie” de ritmos pagãos. Uma série de três “encores”, que
obrigaram à repetição de um dos temas, premiaram a passagem majestosa dos DD
Synthesis pelo Seixal.
Luzmila Carpio e o seu grupo atuaram na primeira parte.
Ainda as montanhas, neste caso dos Andes bolivianos. Se os DD Synthesis foram o
fausto de uma corte em dia de banquete, Luzmila brilhou como a luz de uma vela.
A sua música, a sua voz, feita de agudos arrepiantes e graves uterinos,
confundem-se com os contornos da sua alma, mas também com a voz do vento, dos
rios e dos pássaros. Quem reparasse nos olhos de Luzmila veria neles – se tivesse,
por sua vez, olhos para ver – uma cintilação que arde de muito longe e de muito
alto, nas asas de um sonho. Música de outro mundo, terá escapado a alguns e
deixado marcas profundas noutros.
Na véspera, duas prestações de sinal contrário rasgaram o
Cantigas do Maio no seu melhor e no seu pior: Quem se dignou ou pôde ou soube
entrar no mantra desenhado pelos Ghazal Ensemble (na foto), Shujaat Husain
Khan, no sitar, Kayan Kalhor; no kamachech (parente do violino) e Sandeep Das,
nas tablas, não saiu de lá igual a como quando lá entrou. Penetrar no âmago do
raga, condição, aliás, necessária para uma sua eficaz “apreensão”, é aceder a
uma dança sem limites nem fim. Tocaram “apenas” três temas, correspondentes a
outros tantos estados de espírito, bilhetes de passagem para deslumbrantes
paisagens do espírito. Mesmo quem permaneceu em terra intuiu a chama desta
música, mantendo um silêncio de recolhimento. Silêncio e clamor foram, de
resto, o centro e a forma da música dos Ghazal Ensemble. Paradoxo apenas para
quem não soltou no mar a âncora da razão.
Cruel tarefa tiveram os israelo-árabes Between Times, de dar
continuação ao infinito. Mesmo assim, esperar-se-ia melhor do que o arrazoado
politicamente correto dispensado por uma formação chocha em que muitos viram um
grupo de amigos provavelmente mais vocacionados para a animação de um casamento
burguês ou para uma prestação exótica no Festival da Eurovisão, do que para
participar num festival com a dimensão do Cantigas do Maio. Havia um tipo a
percutir tablas que, ao lembrar-se do mestre indiano que tocara imediatamente
antes, deveria estar a sentir-se envergonhado, outro a cantar (?) com voz de
espantalho, e uma rapariga a dedilhar uma harpa com alguma graça. Mas o que se
poderia ser uma fusão interessante de culturas tão antagónicas como vizinhas,
resultou num tom de “folclore bonito para turista levar para casa como
recordação” que levou parte da assistência a abandonar a sala a meio da atuação
dos Between Times.
A festa prosseguiria, porém, depois dos concertos, na tenda
de convívio, animada pelos galegos Ardentía. Exultaram a gaita-de-foles, o
acordeão, os tambores e a pandeireta. Baile efusivo como só a música da Galiza
sabe ser. E quando as três beldades dos DD Synthesis fizeram a sua aparição,
dançando como deusas carnais ao ritmo da muiñeira, a noite ficou ainda mais
ardente…
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