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21|SETEMBRO|2001
música|david
sylvian
Uma ampola
de tudo, uma mão cheia de nada
David Sylvian
dá a cara ao paradoxo. Esteta ou “estreta”, pop ou ambiental, pintor do
artifício ou designer da simplicidade, artista do vazio ou apaziguador do caos,
é possível escutar na sua música o zumbido de algo que não tem fundo. O
silêncio pode ser tudo e não conter nada. Vem a Portugal abrir a digressão.
David
Sylvian é, como se costuma dizer, um esteta. Um esteta é alguém que contempla o
mundo através das suas formas. Existem dois tipos de estetas. Um dá sentido ao
termo aristotélico e considera a forma aquilo que faz cada coisa ser exatamente
aquilo que é e a distingue de todas as outras. Existência plena. O outro não
consegue vislumbrar além da casca das coisas, deleitando-se com a sua
aparência. É o esteta-decorador ou esteta da treta, vulgo “estreta”.
O estetoscópio (salvo seja) de David
Sylvian, oscila entre o esquema aristotélico e o papel de parede. Além de que
Sylvian é o que se chama um tipo politicamente correto. E um verdadeiro
neo-renascentista.
Pinta, fotografa, cuida dos filhos,
adora a mulher, Ingrid Chavez, ex-protegida de Prince (o teclado da Macintosh
não dá para escrever o símbolo…), que também pinta e escreve e até dá uma
ajudinha, cantando de vez em quando nos concertos e nos discos do marido,
interessa-se pelo zen e outras matérias esotéricas, é amigo de Ryuichi Sakamoto
(outro esteta, os estetas dão-se bem uns com os outros) e, claro, toca e canta.
Recentemente, o ex-Japan arranjou
mesmo tempo extra para tocar ao vivo. Ao ponto de se abalançar numa nova
digressão que se inicia em Portugal. Já na próxima segunda-feira, em Lisboa,
prosseguindo no dia seguinte, no Porto. O resto da Europa e o Japão vão ter que
esperar.
Além da “tournée”, os aficionados de
Sylvian têm ainda à disposição a coletânea relativamente recente, “Everything
and Nothing”, e a versão remasterizada e remisturada de “Damage”, gravado ao
vivo em 1993, de parceria com o guitarrista dos King Crimson, Robert Fripp. Em
2002 estará disponível uma coletânea de temas instrumentais.
“Everything and Nothing” serviu
igualmente de genérico à presente digressão, o que significa que a maioria dos
temas que David Sylvian irá interpretar faz parte dela. Na Internet ferve-se de
impaciência e fazem-se votações com toda a gente a acotovelar-se na tentativa
de pressionar o músico para cantar as canções favoritas de cada um. Segundo as
últimas estatísticas, “Ride” lidera com 423 votos, seguido de “Some kind of
fool”, “The scent of magnolia”, “Cover me with flowers” e “Orpheus”. Quanto a
álbuns, é curioso, “Brilliant Trees”, álbum de estreia de 1984, vai à frente,
seguindo-se “Secrets of the Beehive” e “The first day”.
Em palco, para acompanhar David
Sylvian neste “Tudo ou nada” ao vivo, vão estar o irmão Steve Jansen, antigo
companheiro seu nos Japan, na bateria, Matt Cooper, nos teclados, Tim Young, na
guitarra, e Keith Lowe, no baixo.
Japão com estilo. Mas recordemos a história deste esteta,
ou estreta, ou simplesmente um tipo que ganha a vida a fazer música com estilo
e elegância.
David Sylvian nasceu há 43 anos em
Stone Park, Beckenham, Kent, iniciando-se nas lides musicais (expressão
jornalística idiota bastante vulgarizada) como letrista, compositor e vocalista
dos Japan. A década de 80 arrancava sob o manto de vergonha provocada pelo punk
e era “in” ser “arty”, “poppy” e “stylish”. Os Japan eram tudo isto – uma
mistura de eletropop, romantismo, filosofia oriental e, em jeito de cobertura
de creme, a voz amaneirada de Sylvian. “Tin Drum”, álbum de 1981 dos Japan,
continha a canção “Ghosts”, ilustrativa da face mais ambiental e misteriosa do
grupo e uma das suas melhores de sempre.
Ryuichi Sakamoto, que trocara a veia
pós-Kraftwerk dos Yellow Magic Orchestra pelos fatos Versace, foi sensível à
beleza dos fantasmas. O japonês convidou o músico dos Japan para dar voz a
“Forbidden colours”, uma das canções da banda sonora de “Merry Christmas Mr.
Lawrence”, cuja pauta era assinada pelo próprio Sakamoto. O público adorou e
ofereceu a Mr. Sylvian o seu primeiro grande sucesso internacional.
Mas o melhor estava para vir. No ano
seguinte, ainda fresco das “charts”, surge “Brilliant Trees”. Gravado em
Berlim, aconteceu-lhe o que geralmente acontece quando um artista vai gravar a
Berlim (como fez Bowie em “Low” e “Heroes”) – chega a ser brilhante. Também na
admira, com uma lista de convidados de calibre que incluía os trompetistas Jon
Hassell, Kenny Wheeler e Mark Isham, o ideólogo dos Can, Holger Czukay, o
contrabaixista pau-para-toda-a-obra, Danny Thompson, o inseparável par dos
Japan, Steve Jansen e Richard Barbieri e, previsivelmente, Ryuichi Sakamoto.
“Brilliant Trees” é pop ambiental com textura de veludo, delicada filigrana de
palavras polvilhada por sons e cores multiétnicos.
Já artista completo e diplomado,
Sylvian transita do microfone para a fotografia em Polaroid, publicando um
livro, “Perspectives”, com montagens e bonecos. Segue-se um vídeo e as
primeiras colaborações extra-Sakamoto. Em trio com Robert Fripp e Kenny
Wheeler, grava o EP “Steel Cathedrals”, que inclui o instrumental “Words with
the shaman”, com Jon Hassell na trompete. O shaman poderia bem ser Robert
Fripp, o guitarrista discípulo de Lúcifer.
Elogio da preguiça. À medida que ganha confiança, David
Sylvian vai prolongando a duração dos temas. Mas o que, num ambientalista de
génio como Brian Eno, se aceita como emanação de uma zona tão inóspita como
luminosa do espírito, em David Sylvian aparenta mais o colorido de um rebuçado
enjoativo que leva eternidades a derreter. “Gone to Earth”, de novo com Fripp,
e contando com a presença de um segundo guitarrista, Bill Nelson, outro
“artista”, com selo de origem nos Red Noise, estende-se preguiçosamente por
dois álbuns. “Ambient” soporífera ferida pelas “frippertronics” do “Rei
Carmesim”. “Secrets of the Beehive”, de 1987, mexe-se um bocadinho mais e
contém “Forbidden colours”, uma das mais expressivas canções dos Japan.
O convívio com Holger Czukay deixara,
entretanto, as suas marcas e, de Berlim para Colónia, Sylvian dá o braço ao
homem dos Can para com ele fazer os sintetizadores ressonar no par “Plight
& Premonition” (1988) e “Flux & Mutability”. Ambos preenchidos por
instrumentais looooooooongos que almejavam, em vão, aflorar as zonas sagradas
do silêncio que Czukay lograra registar, duas décadas antes, em “Cannaxis”.
1989 é o ano da caixa “Weatherbox”, com
“design” do já desaparecido Russell Mills, outro esteta, que costumava trabalhar
com Brian Eno. Com os seus antigos companheiros dos Japan enceta o projeto Rain
Tree Crow o qual, em comparação com os bocejos anteriores, é um toque de
despertador. “Ambient” elegante, recupera algum do mistério perdido pelos
Japan. Michael Brook, parceiro habitual de Brian Eno, é um dos participantes.
Curiosamente Eno e Sylvian nunca chegaram a trabalhar juntos…
O silêncio, tão próximo… Seguem-se novas e antigas colaborações.
Ingrid Chavez, Bill Frisell, Robert Fripp, Sakamoto, Trey Gunn (outro King
Crimson, de uma formação mais tardia). Sylvian aproveita para casar com Ingrid
e gravar um novo álbum com Fripp, “The First Day”. O que poderia ter acontecido
se tivesse sucedido o inverso, jamais o saberemos.
“The First Day” é mais Fripp que Sylvian,
daí o seu ar de ameaça. Mas Sylvian encaixa bem com o homenzinho de estatura
pequena mas cérebro descomunal que é Robert Fripp. Um adequado “nervous
breakdown” tornou-o digno de emparceirar com o autor de “21st century schizoid
man”… O zen ajudou a harmonizar a sua vida.
Já nos anos 90, Sylvian lança “Damage”,
ao vivo, com Fripp, e mais dois álbuns a solo, “Dead Bees on a Cake” e
“Approaching Silence”. O título deste último diz tudo. A música ambiental
desliza sombria, provocando no ouvinte, consoante a sua disposição, o sono ou a
meditação.
Tudo esta calmo agora. David Sylvian vive
em Nova Inglaterra com a mulher, as duas filhas, o enteado e o I-Ching. Cessou
contrato com a Virgin e está a transformar a sua casa em estúdio privado. Tudo
está bem quando acaba bem. É muito? É pouco! A resposta pode ser dada estalando
uma ampola de haiku (poema zen de três versos, contendo um paradoxo logico
tendente a provocar o “satori”, a iluminação instantânea): “Everything and
nothing”. Tudo e nada.
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