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3|MAIO|2002
música|electro
Quando o artifício se torna futilidade, a revolta irrompe.
Na pop a revolução chegou como um terramoto. Hoje o que sobrou dela serve para
dançar. Mas quando as alavancas se moveram para triturar, fez doer.
A
revolução industrial
A pop, como tudo o que nasce, cresce e morre, é dialética.
Avança, para ou recua, por ações e reações, sínteses e recusas, não sei quantas
revoluções por década, ano, mês, hora, dia minuto, segundo. No final dos anos
70, estava exangue. Em apenas sete anos, de 1970 a 1977, viu passar-lhe por
cima o rock progressivo e o cutelo do punk. Mas a verdadeira violência, a
genuína revolução, viria no estertor da década e tinha outro nome: música
industrial.
Três
fatores determinaram a morte e enterro do punk e eclosão do novo movimento: a
história, a geografia e a tecnologia. É que se os primeiros sintetizadores
Moog, Korg e ARP, com o seu emaranhado de cabos e botões, eram espaciais que
convidavam à exploração das estrelas, tocados como um instrumento tradicional, os novos modelos, mais compactos,
Hoje
as fábricas continuam a funcionar.
Lá
dentro trabalha, infatigável, uma horda de operários-fantasma.
apostavam nos automatismos, o
que, desde logo, sugeria um outro tipo de utilização, mais concentrada nos
ritmos sequenciados (robóticos), na programação e nos timbres metálicos.
óleos
pesados. A música industrial “nasceu” (ou não, como veremos…) em
Inglaterra através de grupos como Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire e Hula e,
com outro enfoque, nos EUA (Suicide), Chrome), ganhando ramificações na
Alemanha (Einsturzende Neubauten), Austrália (SPK) ou Polónia (Holy Toy). Como
reação, por um lado ao niilismo “no future”, dos rebeldes sem causa, do punk, e
por outro ao artificialismo da nova vaga glam dos “novos românticos” (Spandau
Ballet, Classix Nouveau, Visage…) que por volta de 1979 já infestavam as
“charts” britânicas.
A uns e
outros os “industriais” responderam com ideias e óleos pesados, introduzindo
uma filosofia, por mais ambígua e terrífica que se viesse a revelar, e uma
estética, no vazio promulgado pelas fações do alfinete na orelha e do rímel nas
pestanas.
Inevitavelmente,
o terramoto teve o epicentro nas cidades industrializadas. Sheffield,
Inglaterra. Akron e Pensilvânia, EUA. Se em Inglaterra o punk se tornou golpe
de marketing nas mãos de Malcolm McLaren (os The Clash terão sido a única banda
politizada do movimento, da mesma maneira que os Wire podem ser encarados como
percursores da “cold wave”), nos EUA a new wave, personificada por bandas como
Pere Ubu, Residents, Devo, Wall of Voodoo ou Talking Heads, assimilara já os
fundamentos – uma urbanidade psicótica, a angústia do “overloading” da
informação, misturados com uma atitude rock que vinha de trás, dos Velvet, MC5
ou Stooges –, que viriam a extremar-se na música industrial propriamente dita,
em particular na obra-prima de estreia assinada em 1977 pelos Suicide.
Enquanto
isso, em Inglaterra havia quem, embora continuasse a retocar a maquilhagem,
abrisse já os olhos para a nova e fria realidade. Bowie chegou a Berlim, ainda
ressacado de cocaína, para, sob a influência dos Kraftwerk, Neu! e Cluster, e
do Brian Eno de “Before and After Science”, gravar a trilogia
“Low”/”Heroes”/”Lodger”. Também os Human League, antes de se converterem às
delícias da electropop, bateram na bigorna do “industrial” no EP “The Dignity
of Labour”, metal, eletrónica e minimalismo que aproveitaram da melhor maneira
nos dois grandes álbuns do grupo, “Reproduction” (1979) e “Travelogue” (1980).
Fad Gadget (recentemente falecido) e os Tubeway Army, de Gary Numan, conferiram
um esgar humanista a uma “cold wave” que viria a acelerar em alta velocidade
para o industrialismo puro e duro.
Casos mais
sérios eram os dos Throbbing Gristle, de Genesis P. Orridge, o anti-cristo da
pop, e dos Cabaret Voltaire. “Second Annual Report” ou “D.O.A.” (“Deado n
Arrival” sigla usada para classificar os que chegam mortos aos hospitais), dos
primeiros, e “Mix-up” e “Voice of America”, dos segundos, são gramadas prontas
a explodir na cabeça de quem tiver menos cuidado. Yves Adrien, jornalista
francês da revista “Rock & Folk”, e dos primeiros a teorizar sobre a “cold
wave”, compreendeu-o bem. Num dos seus artigos cita uma conversa tida com
Orridge nas imediações de Auschwitz (“preparada para voltar a funcionar!”, como
fez questão de notar o terrorista sónico inglês) em que este confessara a
premissa ideológica que fazia mover os Throbbing Gristle: “A banalização do
horror torna-o vulgar e aceitável”.
Num polo
mais estetizante da música industrial inglesa, os Test Dept eram festivos, com
a sua proposta globalizante de percussões metálicas, ritmos tecno e
gaitas-de-foles guerreiras. Foram eles os Wagners da “industrial”, dos grandes
rituais multimédia, embora um dos seus primeiros e mais traumáticos trabalhos se
intitulasse “The Unacceptable Face of Freedom”…
A música
dos Throbbing Gristle e dos Cabaret Voltaire soava como uma orgia de dor e de
ruído, cacofonia de sons e imagens aterradoras arrancadas a um quotidiano feito
de loucura, alienação, pornografia, tortura e morte. O paganismo e a
experimentação em torno do tridente magia negra/tecnologia/técnicas de
propaganda, viria como consequência lógica, protagonizados por alguns dos
elementos dissidentes dos TG ao encetarem todo um movimento que viria a ter como
“gurus” os Psychic TV, Coil e Chris & Cosey. Movimento do qual os Current
93 e os Death in June se apropriaram, conferindo-lhes tonalidades fascizantes.
o
suicídio como arte. Na margem de lá do Atlântico, Alan Vega e Martin Rev,
os dois Suicide, produziram a banda-sonora da paranóia, juntando os fantasmas
do rock ‘n’ rol e de Elvis Presley a um gigantesco rolo compressor de
eletrónica minimalista que feriu de morte a alma de Nova Iorque. Nos
espetáculos, o público agredia invariavelmente os músicos e estes retribuíam à
letra, com violência física e slogans dignos de um “Clube de Combate”: “antes o
ódio que a indiferença” ou “a agressão é uma derradeira prova de amor”. Mais
discretos, outra dupla, os Chrome, de Damon Edge e Helius Creed, nadavam num
universo de ficção-científica tribal e combinavam vozes abafadas pelo ácido,
maquinaria pesada e eletricidade fantomática em “Half Machine Lip Moves” e “Red
Exposure”.
Na
Alemanha, os Einsturzende Neubauten tocavam percussão em pontes, destruíam os
palcos por onde passavam e divertiam-se a ver um dos seus amigos mais ativistas
a dinamitar cavalos vivos nos areais de praias cosmopolitas, espalhando horror,
vísceras e sangue pelos veraneantes em pânico.
Sim, na
Alemanha é-se sempre um bocadinho mais radical e foi lá que a música Industrial
teve o seu berço, ainda o Progressivo era uma criança. Conrad
Schnitzler, ex-Tangerine Dream (em “Rot”, 1972), Cluster (“Cluster, 1971, e
“Cluster II”, 1972), Kraftwerk (“Kraftwerk”, 1970, e “Kraftwerk 2”, 1971), Neu!
(“Neu!”, 1972, e
“Neu!2”, 1973) ligaram os geradores. Foi em Berlim e Dusseldorf que as fábricas
abriram antes que as outras. Hoje, como em Auschwitz, os maquinismos continuam
imperturbáveis o seu funcionamento. Parecem vazias. Mas lá dentro trabalha,
infatigável, uma horda de operários-fantasma.
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