14/03/2016

Meira Asher & Guy Harries - Infantry

Y 17|MAIO|2002
roteiro|discos

MEIRA ASHER & GUY HARRIES
Infantry
Sub Rosa, distri. Ananana
10|10 
meira asher abominação

Por mais que se tente assobiar e olhar para o lado, Meira Asher não deixa. A cantora/performer israelita é uma chaga de pus cravada na alma, uma ferida que não sara, uma voz e uma música incómodas a avisar-nos de que o mundo não é um lugar saudável para se viver. Depois de “Dissected” e “Spears into Hooks”, “Infantry” carrega de novo na tecla do horror. O aviso vem carimbado na capa: “‘Infantry’ is about child manipulation and child soldiers”. Com base em relatos de crianças-soldados de Burma, Israel, Libéria, Líbano, Filipinas e Uganda. Não vale a pena citá-los. A dor é real e Meira faz questão de não omitir os pormenores mais sórdidos nesta exposição cruel da miséria da condição humana. Tortura física e psicológica, palavras e corpos estropiados, o pesadelo. “Infantry” é o disco de confronto, olhos nos olhos, com a realidade mais abominável. Se a arte, como alguém disse, não deve ser um espelho mas um martelo, “Infantry” faz de nós bigornas. Sai-se da audição num farrapo, a querer fugir, a querer iludir a questão e fingir que se trata apenas de “música pop”. Mas não é possível. Daqui ninguém sai ileso.
            Se “Dissected” manipulava o ideário religioso segundo uma apropriação clínica da “world music” e “Spears into Hooks” vomitava excrescências digitais congeladas na música industrial, “Infantry” é o “close up”, a imagem ensanguentada do que não queremos ver. Meira Asher não canta, declama relatórios, com a voz incendiada pela raiva e a impotência, sobre a malha eletrónica tecida pelas programações, igualmente desprovidas de humanidade, de Guy Harries. “Airplane quiz” atira-nos para o meio do combate e para o interior de um “cockpit”, apertando-nos contra o corpo de um piloto que é a morte. Teste de simulação ou dilúvio nucelar, “Airplana quiz” dispara rajadas de metralhadora enquanto as bombas explodem no solo e os gritos aumentam de intensidade. É preciso desligar a aparelhagem, detonar o avião, destruir o leitor de CD quanto antes, a bem da sanidade mental. E de súbito, como um raio de gelo, no tema seguinte, “The school”, a cacofonia é interrompida por uma recrudescência “easy listening”. Ouvem-se pássaros a chilrear, amenizando o azul do céu de um dia sem história. Uma criança, Marwan, atravessa a rua, a caminho da escola. “Bye mummy, bye daddy, it is so nice and quiet on the street in the morning”, pensa Marwan para si própria “quando uma bala atravessa a sua cabeça”. Dura poucos segundos. Fere como uma eternidade passada no inferno. Reata-se a carnificina, os gemidos e as programações sem piedade. “Abduction” e “Torture A-B-C” descrevem em detalhe a besta chamada “ser humano” a torturar as suas vítimas, é preciso passar adiante, em busca de alívio, uma pausa, um silêncio, mas o que vem a seguir é pior: “Childsoldier list”, espaço fechado, a ausência, olhos glaucos, incapazes já de apontar o dedo ao carrasco. E “Box”, um dos temas mais assustadores de “Infantry”, um pátio de recreio camuflado, a cena do crime onde algozes disformes atravessam este lugar de infância disparando ao acaso, matando, rasgando o espírito e a carne com as suas mandíbulas, espalhando o caos e a morte, amontoando cadáveres. Melodias infantis são serradas e cortadas ao meio. Professores berram, pais tresloucados alucinam, podridão, ódio. “Clic” na cabeça: tudo se confunde – ruídos, explosões, vozes – e gira como um pião. Stop.

            “Infantry” é algo mais do que um simples disco mas talvez seja preferível não dar nome a este “algo mais”. Que a “classificação” que atribuímos a este disco, mais do que qualquer valorização de ordem estética, possa servir como outra forma de alerta.

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