Y
17|MAIO|2002
roteiro|discos
MEIRA ASHER &
GUY HARRIES
Infantry
Sub Rosa, distri. Ananana
10|10
meira
asher abominação
Por mais que se tente assobiar e olhar para o lado, Meira
Asher não deixa. A cantora/performer israelita é uma chaga de pus cravada na
alma, uma ferida que não sara, uma voz e uma música incómodas a avisar-nos de
que o mundo não é um lugar saudável para se viver. Depois de “Dissected” e
“Spears into Hooks”, “Infantry” carrega de novo na tecla do horror. O
aviso vem carimbado na capa: “‘Infantry’ is about child manipulation and child
soldiers”. Com base
em relatos de crianças-soldados de Burma, Israel, Libéria, Líbano, Filipinas e
Uganda. Não vale a pena citá-los. A dor é real e Meira faz questão de não
omitir os pormenores mais sórdidos nesta exposição cruel da miséria da condição
humana. Tortura física e psicológica, palavras e corpos estropiados, o
pesadelo. “Infantry” é o disco de confronto, olhos nos olhos, com a realidade
mais abominável. Se a arte, como alguém disse, não deve ser um espelho mas um
martelo, “Infantry” faz de nós bigornas. Sai-se da audição num farrapo, a
querer fugir, a querer iludir a questão e fingir que se trata apenas de “música
pop”. Mas não é possível. Daqui ninguém sai ileso.
Se
“Dissected” manipulava o ideário religioso segundo uma apropriação clínica da
“world music” e “Spears into Hooks” vomitava excrescências digitais congeladas
na música industrial, “Infantry” é o “close up”, a imagem ensanguentada do que
não queremos ver. Meira Asher não canta, declama relatórios, com a voz
incendiada pela raiva e a impotência, sobre a malha eletrónica tecida pelas
programações, igualmente desprovidas de humanidade, de Guy Harries. “Airplane
quiz” atira-nos para o meio do combate e para o interior de um “cockpit”,
apertando-nos contra o corpo de um piloto que é a morte. Teste de simulação ou
dilúvio nucelar, “Airplana quiz” dispara rajadas de metralhadora enquanto as
bombas explodem no solo e os gritos aumentam de intensidade. É preciso desligar
a aparelhagem, detonar o avião, destruir o leitor de CD quanto antes, a bem da
sanidade mental. E de súbito, como um raio de gelo, no tema seguinte, “The
school”, a cacofonia é interrompida por uma recrudescência “easy listening”.
Ouvem-se pássaros a chilrear, amenizando o azul do céu de um dia sem história.
Uma criança, Marwan, atravessa a rua, a caminho da escola. “Bye
mummy, bye daddy, it is so nice and quiet on the street in the morning”, pensa
Marwan para si própria “quando uma bala atravessa a sua cabeça”. Dura poucos segundos. Fere como
uma eternidade passada no inferno. Reata-se a carnificina, os gemidos e as
programações sem piedade. “Abduction” e “Torture A-B-C” descrevem em detalhe a
besta chamada “ser humano” a torturar as suas vítimas, é preciso passar
adiante, em busca de alívio, uma pausa, um silêncio, mas o que vem a seguir é
pior: “Childsoldier list”, espaço fechado, a ausência, olhos glaucos, incapazes
já de apontar o dedo ao carrasco. E “Box”, um dos temas mais assustadores de
“Infantry”, um pátio de recreio camuflado, a cena do crime onde algozes
disformes atravessam este lugar de infância disparando ao acaso, matando,
rasgando o espírito e a carne com as suas mandíbulas, espalhando o caos e a
morte, amontoando cadáveres. Melodias infantis são serradas e cortadas ao meio.
Professores berram, pais tresloucados alucinam, podridão, ódio. “Clic” na
cabeça: tudo se confunde – ruídos, explosões, vozes – e gira como um pião.
Stop.
“Infantry”
é algo mais do que um simples disco mas talvez seja preferível não dar nome a
este “algo mais”. Que a “classificação” que atribuímos a este disco, mais do
que qualquer valorização de ordem estética, possa servir como outra forma de
alerta.
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