Y
7|JUNHO|2002
arto
lindsay|música
É o americano mais brasileiro do planeta. E mais português
também. Admirador de Pessoa, é um cantor suave de bossa-nova e outras
sensualidades sonoras, feitas de experimentação e intuição. “Invoke” invoca a
carne, a luz e a saudade. Arto vai estar em Coimbra no domingo.
arto
lindsay
nas asas do desejo
É diferente, a música de Arto Lindsay, guitarrista com
currículo feito nos Lounge Lizards e em quase tudo o que nasceu em Nova Iorque
sob a égide “downtown”, mas que, a cada novo álbum editado a solo, tem vindo a
despir a pele do conceptualista intelectual para se abandonar ao balanço das
vagas da bossa-nova e de uma estranha mistura de doçura acre e delicada
sensualidade.
Arto é hoje
tão nova-iorquino como brasileiro e português. Produziu álbuns de Caetano
Veloso, Carlinhos Brown, Gal Costa e Marisa Monte. É admirador de Tom Zé, dos
Mestre Ambrósio e do movimento Tropicália, conhecendo a fundo a MPB (Música
Popular Brasileira). Portugal também já o conhece, da direção artística do
festival “Mergulho no Futuro”, que antecedeu a Expo’98. O regresso está marcado
para domingo, dia 9, às 22h, em Coimbra, no Festival 10 de Junho.
“Invoke”
sucede na sua discografia a solo a “Prize”, editado há 3 anos, e nele os ritmos
brasileiros, a bossa-nova (é difícil não descortinar, na sua forma frágil mas
luminosa de cantar, a presença tutelar de Tom Jobim e João Gilberto…) fundem-se
com o groove e a eletrónica em aguarelas impressionistas.
Entre os
convidados contam-se, do lado brasileiro, o guitarrista, cantor e seu amigo de
longa data Vinicius Cantuária e elementos do grupo Nação Zumbi, enquanto do
lado americano a ficha técnica regista os nomes de Peter Scherer, a banda de
Baltimore, Avey Tare and Panda Bear (na orgia de ruídos e “loops” de “In the
city that reads”, o tema mais desestabilizador de “Invoke”…), e, na produção,
Melvin Gibbs, dos Rollins Band. Presença importante em “Invoke” é, ainda, a do
clarinetista e teclista Stephen Barber, também responsável por uma parte dos
arranjos.
intriga.
Mas é Arto Lindsay, figura e voz franzinas capazes, no entanto, de infiltrar a
música com subtis emanações do mesmo tipo de energia que alimentava as “sex
machines” de James Brown e Marvin Gaye, que faz de “Invoke” um álbum com tanto
de intrigante como de intriga. Talvez a explicação resida no facto de grande
parte das vocalizações terem sido gravadas pelo cantor “fechado dentro de um
armário”, em sua casa, como confessou ao Y. Intrigante começa por ser a frase
que se destaca em letras capitais na capa: “I’m a man”. Mas aqui, o músico
explica não se tratar de qualquer manifestação de machismo encapotado, mas de
“um slogan do movimento negro contra a segregação”.
Arto
Lindsay não tem, aliás, a melhor das impressões do seu país, um “país que,
depois das últimas eleições, ficou dividido ao meio, onde se fala muito de
liberdade mas depois não se age em conformidade”. Há uma raiva latente –
“Invoke” é uma canção sobre o desespero, diz – que Arto já tentara exorcizar no
final dos anos 70 quando, em Nova Iorque, integrou o movimento “no wave”,
variante mais intelectualizada mas não menos explosiva do punk, enquanto
elemento dos DNA. Mas mesmo aí a sua costela lusíada já se manifestara. “Nos
DNA fiz uma letra em português a partir das primeiras frases de alguns poemas
de Fernando Pessoa que depois remodelei. Gostava muito de uma frase que ficou
assim, ‘aos deuses peço só meu gesto que destrói’. Costumava gritá-la de uma
forma bem punk nos concertos (risos). Só tinha americano ouvindo, sem entender
nada, e eu ali, sebastianista! (risos)”. Radicalismo e experimentação que este
insuspeito profeta do Quinto Império não abandonou por completo: “De vez em
quando ainda improviso tocando com o John Zorn, Ikue Mori ou Jim O’Rourke. E no
próximo álbum, que será muito mais eletrónico, tenciono usar um ‘laptop’”.
luz.
“Sebastianista” é o adjetivo que menos se esperaria ouvir da boca de um cidadão
americano. Mas Arto, nunca é demais repeti-lo, confunde as expetativas e ilude
os lugares-comuns. Depois dos EUA e do Brasil, Portugal é a sua terceira
pátria. Arto conhece bem a luz de Lisboa. Uma luz que, se analisarmos com
atenção, brilha em “Invoke”. Um dos temas do álbum, “Uma”, inspirou-se numa
canção dos Ambitious Lovers (outro dos grupos que integrou), “More light”, que
por sua vez se baseou nos últimos momentos de vida de Goethe, que
“supostamente, na hora da morte, terá exclamado: ‘mais luz, mais luz’. Ninguém
percebeu se ele queria mais luz ou se estava a ver mais luz”.
Da luz de
Lisboa reteve o músico nova-iorquino outra nuance, nas sombras de um
alfarrabista, “quando andava a passear pela parte alta” da cidade. “Entrei numa
loja de antiguidades, na companhia de um amigo americano, à procura de
exemplares originais da revista Orfeu. O cara da loja apresentou um par de
óculos, garantindo serem os óculos do Fernando Pessoa. Claro que não comprámos
nada!” (risos).
Óculos e
visão. Carne e espiritualidade. “Invoke” informa esta dicotomia, sintetizando-a
em momentos de eternidade nos quais está presente “uma tristeza, uma saudade
sensual que resulta da relação com uma força maior”.
“O
materialismo tem, por outro lado”, diz, “um aspeto luminoso que leva a outro
tipo de pensamentos, a uma exibição da liberdade. Na música popular dos EUA,
existe uma ligação entre gospel e a música profana em Marvin Gaye, Prince, Al
Green… Eu sempre tive um certo receio, a minha formação não é religiosa. Embora
o meu pai fosse missionário, rejeitei desde muito cedo a religião”. Apesar
disso, confessa que “Invoke”, a canção, “também remete para os rituais do
candomblé”.
Portugal e
o Brasil voltam a atravessar-se no seu discurso, ainda para falar do espírito e
da carne, mas também da linguagem e da incapacidade que sente em explicar as
razões que o levam umas vezes a escrever em inglês e outras em português. “A
Bíblia formalizou, de alguma forma, a língua inglesa moderna, através da
chamada ‘King James version of the bible’, tradução comentada por um monarca do
século XV, da mesma forma que Camões enformou o português. Quando me meto a
escrever, muitas vezes essas imagens aparecem. Escrever em português é uma
dificuldade que encaro como um desafio”.
Dessa
vivencia dupla da língua nasceu a inovação, que chama o desespero, a magia, as
sombras e a luz nos sons de uma bossa-nova “tão triste como o fado”, nascidos
da absoluta assimilação da cultura luso-brasileira. “A sensualidade ligada à
espiritualidade é um fenómeno brasileiro mas também muito ibérico. Portugal e
Espanha têm uma forma de cristianismo muito particular, influenciada pelos
romanos, é uma vivência extrema”.
“Invoke” –
que é também o exercício industrial do tema “In the city that reads”, evocativo
das descargas de uns This Heat (grupo que Arto conhece bem) – termina, porém,
da forma mais leve, mas também mais ambígua, com “O beijo”, “uma música muito
antiga, com uma letra cheia de delicadeza. A delicadeza que encontro no Brasil,
algo que as canções americanas não têm – quando falam de sexualidade são em geral
mais descaradas”.
Que é,
finalmente, “Invoke”? Invocação de anjos ou de demónios? Arto Lindsay propõe um
“claroescuro”, “sem auto-censura”, na tentativa de explicar essa oscilação de
estados de espírito que é a mesma das ondas do mar. Ou será um “Pretty ugly”,
título do álbum que Arto gravou de parceria co Peter Scherer, para a Made to
Measure, em 1990? “É uma variação de um título de Thelonious Monk, ‘Ugly
beauty’. ‘Pretty’ quer dizer não só ‘bonito’, como ‘bastante’”…
Frank Zappa
perguntou uma vez numa das suas canções: “What’s the ugliest part of your body”
(“qual é a parte mais feia do teu corpo?”). Depois de passar em revista a
anatomia humana, a resposta veio, mortífera: “I know it’s your mind” (“sei que
é a tua mente”). Arto ri-se: “Não sei se a perversidade é a parte mais feia do
ser humano… Acho que é a violência, mas mesmo este termo é ambíguo, a violência
é necessária, tem a ver com a vontade, ‘the will’. O diabo, se existe, está
dentro da cabeça”.
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